Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0220746
Nº Convencional: JTRP00034805
Relator: CÂNDIDO DE LEMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACTO DE GESTÃO PÚBLICA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP200206040220746
Data do Acordão: 06/04/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CIV GONDOMAR
Processo no Tribunal Recorrido: 1/02
Data Dec. Recorrida: 05/07/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional: ETAF84 ART3 ART51 N1 H.
DL 48051 DE 1976/11/21 ART2 N1 ART3.
Sumário: Se a obra, alegadamente violadora do direito de propriedade privada do autor, é fruto de uma deliberação camarária e se destina ao uso público, inserindo-se na âmbito de actos de gestão pública da Câmara Municipal, é competente para conhecer da responsabilidade civil dela emergente o tribunal administrativo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

No Tribunal Judicial de....., -.º Juízo Cível, António....., solteiro, maior, residente na Rua....., em....., da comarca, move o presente procedimento cautelar de embargo de obra nova contra S....., S. A., com sede na Rua....., ....., Adelino....., residente em Outeiro, ....., ......, e Câmara Municipal de....., pedindo que, na procedência dos embargos, serem os requeridos condenados a suspenderem todas as obras levadas a cabo no local onde está localizado o terreno do requerente.
Para tanto alega, em síntese, que é único proprietário de um prédio denominado “B.....”, composto por bouça de terra e mato com pinheiros, sito no lugar da....., freguesia de....., a confrontar do nascente com o Rio..... e com o Dr. Guilherme....., do poente acaba em ponta aguda, do Norte com a linha férrea e do Sul com Manuel....., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória de Registo Predial de..... sob o n.º ...., a fls. .. do Livro ..-..; com o decurso dos anos foi dado um caminho de servidão mesmo junto à margem do Rio....., para passagem para um outro prédio rústico existente no lado Sul do prédio do requerente; o limite nascente sempre foi, pois, a margem do Rio....., com um pequeno caminho de servidão junto à mesma; há cerca de quinze dias apercebeu-se que a mando da Câmara, os dois primeiros requeridos vêm desenvolvendo a obra de arranjo urbanístico da Quinta....., que passa pela cobertura do Rio.....; para tal avançaram com a remoção de terras junto ao leito do rio, em pleno terreno do requerente, iniciando algumas infra-estruturas em betão, eventualmente destinada a passagem para peões; as obras retiraram 900 m2 do terreno do requerente, deixando-o encravado, sem comunicação com a via pública.
Ouvidos os requeridos, pronunciaram-se a Sociedade de Construções e a Câmara Municipal.
Aquela alega que executa a obra que lhe foi adjudicada em empreitada pública e sobre terrenos disponibilizados pela Câmara e da sua propriedade; a paragem da obra provoca maior prejuízo do que os danos eventualmente causados.
Por sua vez a Câmara Municipal de..... alega a incompetência absoluta do tribunal, porquanto a obra decorre de um acto administrativo, praticado pelo órgão da Administração no exercício de um poder público, “acto de gestão pública”. Concretamente a obra é a empreitada “Recuperação e Revalorização da Quinta..... - .....- Infra-estruturas (2.ª fase)”; também a obra não poderá ser embargada face ao disposto no art. 414.º do CPC; no mais impugna a versão do requerente quanto a áreas e acessos.
É então proferido o despacho de fls.57 e 58 que julga procedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria, absolvendo os requeridos da instância.
Inconformado o requerente apresenta este recurso de agravo.....
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Ao factos a ter em consideração para a decisão são os que constam do antecedente relatório.
Temos, assim, que um particular pretende reagir pelo embargo de obra nova contra a obra mandada executar por deliberação de 19/4/2001 da Câmara Municipal de....., invocando que a execução da mesma invade a sua propriedade, lhe retira 900 m2 e inibe o seu acesso à via pública. O processo é dirigido contra o dono da obra e contra os indicados ditos executores. A decisão impugnada declara a incompetência do tribunal comum e a competência do tribunal administrativo.
Cumpre conhecer do objecto do recurso, delimitado como está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684.º n.º3 e 690.º n.º1 do CPC).
Duas questões nos são colocadas:
1.ª- Nulidade da sentença; e
2.ª- Competência material para a providência.
-- I --
Vem invocada a nulidade da alínea b) do n.º1 do art. 668.º do CPC.
Parece pretender-se que a falta de oposição do requerido Adelino....., que é dito ser executor da obra, tinha de ser apreciada no despacho posto em crise. Mais parece entender-se que o seu silêncio terá o significado de procedência do embargo contra si...
Puro equívoco do agravante.
O Tribunal exclusivamente se declarou incompetente para a acção, conheceu unicamente daquilo a que se chama excepção dilatória de competência em razão da matéria (art. 493.º e 494.º do CPC).
Pela própria noção, esta obsta a que se conheça do mérito da causa. Aliás não faria sentido que o tribunal se declarasse incompetente para a acção e ao mesmo tempo tomasse posição sobre qualquer questão em causa nos autos. O mesmo é referido pelo n.º1 do art. 660.º do CPC.
Improcede totalmente a primeira questão.
-- II --
Voltemos agora à questão essencial: a competência material.
Em causa, pois, um pedido de embargo de obra nova por violação do direito de propriedade privada, em virtude de obras ordenadas por deliberação camarária de 19/4/2001, atinentes à obra “Recuperação e Revalorização da Quinta.....- .....- Infra-estruturas (2.ª fase)”.
A primeira instância entendeu ser a causa do foro administrativo; o autor entende dever ser o foro comum.
Mantém-se a discussão, tanto na doutrina como na jurisprudência, não existindo entendimento uniforme no tratamento da questão.
Uniformidade existe no sentido em que a competência se afere pelo pedido do autor e que, não cabendo uma causa na competência de outro Tribunal, ela é da competência do Tribunal Comum (ver Ac. do STJ de 3/2/87 in BMJ, 364.º-591 e doutrina aí indicada).
A competência residual tem consagração no art. 213.º n.º1 da Constituição; arts.13.º, 14.º e 56.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e arts. 66.º e 67.º do CPC.
Por seu turno dispõe o art.3.º do DL n.º129/84 de 27 de Abril (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) que “incumbe aos Tribunais Administrativos e Fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Acrescenta o art. 51.ºn.º1, alínea h) do mesmo diploma, que compete aos Tribunais Administrativos de Círculo conhecer ”das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”
Por outro lado o DL n.º48.051 de 21/11/87(que alterou os arts.366.º e 367.º do Código Administrativo de 1940) dispondo sobre normas destinadas a regular, em tudo o que não esteja previsto em leis especiais, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública, preceitua no art.2.ºn.º1: “o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das funções e por causa desse exercício”.
A solução do problema estará, pois, no entendimento que se tenha de gestão pública - gestão privada, como bem o afirmam, tanto o Tribunal como o agravante.
E tal entendimento não tem sido uniforme na doutrina, como já se afirmou.
Marcello Caetano (Manual de Dto. Administrativo, 9.ªed., 1972, pg.442) entende: “o emprego das expressões gestão privada e gestão pública tem, por conseguinte, de fazer-se apenas que no primeiro caso a administração procede segundo as normas de direito privado e no segundo à luz do direito público, quer neste último caso utilize ou não os seus poderes de actos definitivos e executórios”.
Antunes Varela (RLJ,124.º-59) ensina que “ tem-se entendido a este propósito, embora com formulações nem sempre claras e rigorosamente coincidentes, que actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania próprio de pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característica do direito público. Simplesmente, nem sempre todos os actos que integram a gestão pública representem o exercício imediato do jus imperii ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas colectivas.... Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destina a realizar um fim típico ou específico dele, com meios e instrumentos também próprios do agente público”.
Vaz Serra (RLJ, 110.º- 315) diz que” se um órgão ou agente da administração, no exercício de uma função pública dotada de poderes de autoridade e por causa desse exercício, pratica um acto ilícito ofensivo de direitos de terceiro ou de uma disposição legal destinada à protecção desses interesses de terceiro, o acto entra no âmbito dos actos de gestão pública”.
E o mesmo, apontando directamente à distinção, no comentário ao Ac. do STJ de 16/5/69 in RLJ,103.º- 350, refere: “ Parece que tal distinção deve fazer-se atendendo a se o acto se integra ou não numa actividade de direito público da pessoa colectiva pública; se ele (acto) se compreende numa actividade de direito privado da pessoa colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida por um particular, o caso é um acto praticado no domínio dos actos de gestão privada; se, pelo contrário, o acto é praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de função pública, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o caso é de acto praticado no domínio dos actos e gestão pública”.
De igual modo, a jurisprudência se tem dividido, parecendo-nos mais nítidas três linhas de orientação.
Para uma primeira, o acto, para ser considerado de gestão pública, exigiria que a entidade pública agisse ao abrigo do «jus imperii». Nesse sentido parece ser a orientação do Tribunal de Conflitos de 15/2/92, in BMJ, 422.º- 77; Ac. Relação do Porto de 16/6/72 in BMJ, 218.ª- 314; Ac. Rel. Coimbra de 2/7/96 in CJ, Ano XXI, T3, pg. 25 e Ac. STJ de 17/2/94 in CJSTJ, Ano II, T1, pg. 114.
Para uma segunda, não é necessário o «jus imperii», sendo de considerar como acto de gestão pública quando para aí aponte a natureza funcional do acto. Nesse sentido o Ac. do STJ de 217/11/89 in BMJ, 391.º-295, Ac. R.C. de 22/10/91 in CJ, Ano XV, T3, 282; Ac. R. E. de 22/5/86 in CJ, Ano XI, T3, 251; Ac. R. E. de 20/11/80 in BMJ, 304.º-480; Ac. T. Conflitos de 10/12/87 in AD 317.º-671; Ac STJ de 16/12/87, agravo 70-450 (com voto de vencido no sentido da posição anterior); Ac. RC de 13/11/84, in BMJ, 341.º-479; Ac STJ de 22/1/97 in CJSTJ, Ano V, T1, 65; Ac RP de 9/7/98 in agravo 736/98- 5.ª Sec; Ac RP de 3/11/98 in agravo 966/98- 2.ª Sec.
Para uma terceira posição apontam os que defendem que são actos de gestão privada aqueles em que o Estado ou ente público actua despido do poder público. Nesse sentido vem o Ac do STJ de 13/1/87, BMJ , 363.º-291 e Ac do T. Conflitos de 15/12/92 in BMJ, 422.71, já citado.
E é no comentário a este que se escreveu: “ o método para determinar a conexão de um litígio ao foro administrativo ou ao foro comum, consiste em averiguar a natureza do acto ou da coisa, actividade ou serviço a que se encontra afecto o facto gerador da responsabilidade. Se se tratar de um acto administrativo, ou de um facto que se enquadra na esfera de actividade de um serviço público administrativo, ou que seja imputável a uma coisa do domínio público, a competência é, em princípio, do Tribunal Administrativo”.
Aproxima-se, pois, da posição defendida por A. Varela, mas sobretudo da de Vaz Serra, parecendo a que melhor se enquadra nos pressupostos dos arts. 2.º e 3.º do DL 48.051, onde a questão da necessidade do «ius imperii» não é exigida para responsabilizar o Estado. E este diploma veio ao encontro da regularização, em geral, da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública. O Estado ou outras entidades públicas podem praticar causadores de prejuízos aos particulares, sem se encontrarem munidos dum poder de soberania, mas no exercício de funções que, pela sua natureza, assumem as características de actos praticados no exercício duma função de interesse público, como é o caso de alargamento de uma estrada, para melhor servir os utentes.
A obra que está a ser executada consiste na canalização do Rio.... ou do Rio....., como o agravante lhe chama, e arranjo posterior da área que assim é criada, com ajardinamento; o próprio agravante fala em passagem para peões.
Assim, a obra que se diz violar os direitos do requerente é fruto de uma deliberação camarária de 19/4/2001 e, para além disso, destina-se ao uso público.
Em conclusão: os actos que o requerente alega como violadores do direito de propriedade privada inserem-se no âmbito de actos de gestão pública da agravante, pelo que é competente para conhecer da responsabilidade civil deles emergente, o Tribunal Administrativo de Círculo- art.51.ºn.º1, h) do ETAF-DL n.º129/84.
Sendo competente para a acção, é igualmente competente para as providências cautelares atinentes.
Reconhecendo-se que a solução não é pacífica, esta vem sendo a posição do relator e 2.º adjunto, não se vendo razão para a sua alteração (Proc. 120/2000 da 2.ª Sec).
DECISÃO:
Nestes termos se decide negar provimento ao presente agravo.
Custas pelo agravante.
PORTO, 4 de Junho de 2002
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Armindo Costa
Durval dos Anjos Morais