Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0326196
Nº Convencional: JTRP00036485
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
Nº do Documento: RP200401200326196
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J MACEDO CAVALEIROS
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Sinais visíveis e permanentes são exigidos a uma servidão de passagem para ser adquirida por usucapião.
II - O requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais, admitindo-se a sua substituição ou transformação.
III - Também não se torna necessário que toda a obra ou todos os sinais estejam à vista. Basta que a parte visível seja suficiente para revelar aos olhos do observador o exercício da servidão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

A Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Delfim....., representada pelos herdeiros Iria....., Maria..... e marido Francisco....., Conceição..... e marido Alberto....., Filomena....., Beatriz....., Fernanda..... e marido Henrique....., Cesaltina..... e marido Abel....., Francelina..... e marido Júlio....., Isabel..... e marido João....., intentou no Tribunal Judicial da Comarca de..... acção declarativa com processo sumário contra Fátima..... e marido Fernando....., todos melhor identificados a fls. 64 e 65 dos autos, pedindo que os réus sejam condenados a:
1) Reconhecerem o direito de propriedade à herança indivisa, representada pelos herdeiros, sobre o prédio rústico com o art.º ..., identificado em 6º da petição inicial;
2) Reconhecerem a existência de uma servidão de passagem com cerca de 3 m de largura em toda a sua extensão, partindo do caminho público a norte dos prédios dos réus, artigos 001 e 000, através destes, até ao prédio dos autores, passando pelos pontos A, B, E e F de acordo com os art.ºs 18º e 19º da p.i. e conforme doc. n.º 7;
3) Desobstruírem a passagem da seguinte forma:
a) Retirar os portões de ferro colocados no início da passagem junto ao caminho público ou, em alternativa, fornecer aos representantes da herança uma chave dos mesmos, a fim de se servirem da passagem, sempre que o necessitem, para se dirigirem de e para o seu prédio (art.º...);
b) Retirar o arame colocado pelos réus que se encontra na estrema entre o prédio com o art.º 000 e o da herança (art.º...), no ponto F e na largura de 3 metros, pois era esta a largura da passagem, conforme indicado no doc. n.º 7;
c) Deixarem de lavrar o leito da passagem identificada em 2 do pedido;
4) Pagarem aos representantes da herança a título de prejuízos sofridos no ano agrícola de 2002 a quantia de 250 € e nos restantes anos que seguem os que vierem a apurar-se em liquidação de sentença.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
É proprietária do prédio rústico sito no..... ou ....., com a área de 600 m2, inscrito na matriz da freguesia de..... sob o art.º..., por o ter adquirido por usucapião.
O acesso a esse prédio tem sido feito, desde há mais de vinte anos, através de um caminho com cerca de três metros de largura que se desenvolve pelos prédios dos réus inscritos na matriz sob os art.ºs 000 e 001, tendo adquirido o direito de por ali passar com base na usucapião.
Entre os dias 11 e 17 de Fevereiro de 2002, os réus colocaram, no início da passagem, junto ao caminho, um portão que fecharam à chave e vedaram com arame a estrema do seu prédio 000, bem como lavraram, nos dias seguintes, o leito da passagem, assim impedindo os representantes da autora de passar, causando-lhes prejuízos.
A ré contestou impugnando a versão da autora e negando-lhe o direito de passagem pelos seus prédios, dizendo que o acesso ao prédio desta sempre foi feito por outro lado. Concluiu pela improcedência da acção.
Na resposta, no essencial, reafirmou o que havia dito e concluiu como na petição inicial.
Foi proferido o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto de que reclamou, com êxito, a autora.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi decidida a matéria de facto controvertida como consta do douto despacho de fls. 168 a 171, de que não houve reclamações.
Seguiu-se douta sentença que, na procedência parcial da acção, decidiu condenar os réus a reconhecer que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de..... sob o n.º .../..., da freguesia de....., e inscrito na matriz rústica da mesma freguesia sob o art.º... pertence, em comum, a Iria....., por si e enquanto herdeira de Delfim....., e aos demais herdeiros deste e que são Maria....., Conceição....., Filomena....., Beatriz....., Fernanda....., Cesaltina....., Francelina..... e Isabel....., absolvendo-os do demais peticionado.
Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou, oportunamente, a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- A Autora ora apelante requereu, além do mais, fosse reconhecida a existência de uma servidão de passagem com cerca de três metros de largura em toda a sua extensão, partindo do caminho público a norte dos prédios dos R.R., artigos 001 e 000, através destes, até ao prédio da Autora, passando pelos pontos A; B; E e F , de acordo com os n° 18 e 19 e doc. n.º 7 da petição inicial.
2- Sobre tal pedido o Meritíssimo Juiz em primeira instância proferiu em síntese a seguinte decisão: “... não se tendo provado, ao contrário do alegado pela Autora, que a passagem estava toda trilhada, antes se tendo provado que, saindo do caminho (distância entre os pontos A e E), deixava de haver qualquer trilho, ...é evidente que este pedido não pode proceder”, ora
3- Tendo o caminho trilhado a extensão de 236 m e o não trilhado a escassa extensão de 40/41 m, certo é que
4- O prédio da Autora desde a data da aquisição, 25/30 anos, sempre foi lavrado, adubado e colhidos os frutos que o mesmo produz, utilizando para o efeito a passagem através dos prédios dos R.R., artigos 001 e 000, conforme peticionado na P .I. e resposta aos quesitos n°s 11 e 12.
5- O facto de não se ter provado a existência de trilhos na escassa distância de 40/41 metros da alegada passagem peticionada pela Autora, (entre os pontos E e F, doc. n.º 7 da P .I.), tal indicia aos olhos do homem médio a existência da servidão de passagem a favor do prédio da Autora, onerando os prédios dos R.R., dado se ter provado a existência de posse.
6- Assim, deverá como tal o pedido do reconhecimento da servidão de passagem ser julgado procedente por esse Tribunal da Relação,
7- Devendo em conformidade ser julgada nula nesta parte a sentença proferida em primeira instância.
Ou, em alternativa, pelo menos,
8- Seja a dita sentença alterada, no sentido de ser reconhecida a servidão de passagem constituída por usucapião a favor do prédio da Autora (artigo ...), onerando os prédios dos R.R. (artigos 001 e 000), numa extensão de cerca de 236 metros, ou seja, entre os pontos A; B e E, de acordo com doc. n.º 7 da P .I..
9- Julgando-se em consequência procedentes os demais pedidos formulados nos pontos 3, 4 e 5 da Petição Inicial.
10- Isto, porque a douta sentença proferida contra a apelante está em nítida contradição, ou nítida oposição com os seus fundamentos.
11- A douta sentença recorrida, violou assim o disposto nos artigos 668º n.º 1 alínea c) do C.P.C.; 1251º, 1297º, 1269º, 1256º, 1543º, 1544º, 1547º e 1548º, todos do C. Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Sabido que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1, ambos do CPC), as questões a decidir consistem em saber:
a) Se a sentença é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão;
b) Se pode ser reconhecido o direito de servidão de passagem, no todo ou em parte, a favor do prédio da autora;
c) E se devem proceder os restantes pedidos formulados.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. De facto.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 13/03/1989, faleceu Delfim....., no estado de casado com Iria....., desde 04/10/1947, sem convenção antenupcial, deixando como únicos herdeiros Iria....., viúva, e Maria....., Conceição....., Filomena....., Beatriz....., Fernanda....., Cesaltina....., Francelina..... e Isabel....., filhas (alínea A dos factos assentes);
2. Está descrito na Conservatória do Registo Predial de..... sob o n°.../..., freguesia de....., o seguinte prédio: rústico, sito no....., composto de terra para centeio cada oito anos com castanheiros, área de 600 m2, a confrontar de norte com caminho, sul com Joaquim....., nascente com José..... e poente com António....., e que está inscrito na matriz rústica de..... sob o art.º... (alínea B);
3. O prédio aludido em B) está aí inscrito, sem determinação de parte ou direito, a favor dos herdeiros aludidos em A) (alínea C);
4. O prédio aludido em B) confronta, a norte/poente, com o seguinte prédio: terra para centeio cada oito anos com onze castanheiros, sita no....., inscrito na matriz rústica da freguesia de..... sob o art.º 000, com a área de 2500 m2, constando que confronta a norte com Manuel....., nascente com José....., sul e poente com António..... (alínea D);
5. Por seu turno, este prédio confronta, a poente, com o seguinte: terra com duas figueiras e um castanheiro em criação, sita nas....., inscrito na matriz rústica de..... sob o art.º 001, constando que confronta de norte e nascente com António....., sul com Manuel B..... e poente com Manuel....., área de 80 m2 (alínea E);
6. Os réus são donos dos prédios aludidos em D) e E) (alínea F);
7. Em Janeiro/Fevereiro de 2002, os réus colocaram um portão no topo norte do prédio aludido em E) (alínea G);
8. O prédio aludido em E) confronta a norte com o caminho público (alínea H).
9. A Iria..... e falecido Delfim, há 25/30 anos, declararam comprar a Alberto M....., que declarou vender-lhes, verbalmente, o prédio aludido em B) (resposta ao quesito 1º);
10. Desde tal data que a Iria e Delfim, e depois a Iria e os demais herdeiros, aludidos em A), vêm agricultando tal prédio, plantando e podando oliveiras, adubando-o, lavrando-o e colhendo os frutos respectivos (resposta ao quesito 2º),
11. E pagando as contribuições (3º);
12. Á vista de toda a gente (4º)
13. Sem oposição (5º);
14. Na convicção de exercerem um direito próprio (6º)
15. E de que não lesavam ninguém (7º).
16. O prédio aludido em B), não confronta nem comunica com a via pública (8º);
17. Os herdeiros do falecido Delfim, e antes da morte deste, este e a Iria, para acederem ao prédio aludido em B, utilizam um caminho que partindo do caminho público, começa no topo norte do prédio aludido em E, e daí segue, dentro deste último prédio, em linha recta, e com o comprimento de 236 m (respostas aos quesitos 9º e 10º);
18. Ao chegarem ao fim desse caminho, os herdeiros do falecido Delfim, e antes da morte deste, este e a Iria, saíam do mesmo, e seguiam para nascente, atravessando primeiro o prédio aludido em E e depois o prédio aludido em D, até entrarem no prédio aludido em B (respostas aos quesitos 11º e 12º);
19. O caminho aludido nas respostas aos quesitos 9º e 10º tem a configuração constante do croquis de fls. 70, pontos A a E, com o comprimento de 236 m e a largura de cerca de 3 m (respostas aos quesitos 13º e 14º);
20. O caminho aludido nas respostas aos quesitos 9º e 10º apresentava trilhos, mas não havia quaisquer trilhos a atravessarem os prédios aludidos em E e D (resposta ao quesito 15º);
21. O perguntado em 9 a 13 era feito a pé, com animais à rédea e com tractores (16º)
22. E ocorre há mais de 20 anos (17º);
23. Á vista de toda a gente (18º);
24. Sem oposição (19º);
25. Na convicção de exercerem um direito próprio (20º);
26. E de que não lesavam ninguém (21º).
27. O portão aludido em G) foi colocado à entrada do caminho, perguntada em 9 (22º);
28. O portão foi chumbado a dois pilares que os réus lá colocaram (23º);
29. O portão é de ferro, tem 4,14 m de largura e 1,72 m de altura (24º);
30. Portão do qual os herdeiros não têm a chave (25º);
31. Os réus colocaram arame liso na estrema do seu prédio, aludido em D, na parte em que o mesmo confina com o aludido em B (26º);
32. Na mesma altura em que colocaram o portão, os réus lavraram o caminho aludido nas respostas aos quesitos 9º e 10º (27º);
33. Por causa do perguntado em 22 a 26, os herdeiros estão impedidos de utilizarem o caminho aludido nas respostas aos quesitos 9º e 10º, de atravessarem os prédios aludidos em E e D e de assim acederem ao seu prédio (28º e 29º);
34. Por isso, não puderam proceder à poda, lavra e adubação das oliveiras (30º);
35. O que levou à degradação do olival (31º);
36. Por causa do perguntado em 30 e 31, a autora teve um prejuízo de 250,00 em 2002 (32º).

2. De direito.

Aplicando o direito aos factos tendo em vista a resolução das supra mencionadas questões:

2.1. Da nulidade.

Dispõe o art.º 668º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil que a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Esta nulidade reside, tal como resulta da letra da lei, na oposição entre a decisão e os fundamentos em que ela repousa.
Refere-se à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de mero erro material, quer na fundamentação, quer na decisão.
Nos casos abrangidos pela citada alínea, há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou direcção diferente (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, págs. 689 e 690).
No caso em apreço, não se verifica a apontada nulidade, já que não existe contradição real entre os fundamentos e a decisão por seguirem no mesmo sentido.
Quando muito, poderia falar-se em omissão de determinados pontos da matéria de facto, relativamente aos sinais visíveis e permanentes, mas não é isso que está em causa na apreciação desta questão.
É que esta causa de nulidade da sentença nada tem a ver com o julgamento de mérito, mas com uma questão meramente processual que respeita à construção do silogismo judiciário, exprimindo uma preocupação na elaboração das decisões judiciais por forma a que elas sejam logicamente irrepreensíveis e constituam actos declarativos e injuntivos coerentes, isto é, conformes às leis do raciocínio.
Aqui e agora, importa somente ter em consideração os fundamentos e a decisão. E, entre eles, não se vislumbra tal contradição.
O julgador da 1ª instância, depois de fazer uma referência às disposições legais aplicáveis e uma citação dos autores Pires de Lima e Antunes Varela, fundamentou deste modo a decisão na parte que se diz viciada:
“E resulta da resposta ao quesito 15 que inexistiam quaisquer trilhos a atravessarem os prédios dos réus.
Ora, não se tendo provado, ao contrário do alegado pela autora, que a passagem estava toda ela trilhada, antes se tendo provado que, saindo-se do caminho, deixava de haver qualquer trilho, e não tendo sido alegado, e muito menos provado, qualquer outro sinal visível e permanente, é evidente que este pedido não pode proceder.
... Competia, pois, à autora, alegar e provar os necessários requisitos, supra referidos, para que o pedido pudesse proceder, e não o fez, antes se tendo provado a ausência de trilhos, na parte que interessa.
Por ser assim, não se mostra constituída a servidão por usucapião e, consequentemente, deixam de ter fundamento os vários pedidos formulados em 3, a) a c)”.
E, a propósito do pedido de indemnização, escreveu “... não tendo a autora logrado provar que tinha um direito real de servidão de passagem – ou seja, que tinha o direito de passar pelos prédios dos réus – os actos praticados pelos réus, e constantes dos factos G), 22 a 25, 26 e 27 não são ilícitos”.
E concluiu pela improcedência desses pedidos.
Ao decidir assim, foi coerente no seu raciocínio, pelo que não existe a apontada nulidade.
Improcede, deste modo, a arguida nulidade.

2.2. Da servidão.

O art.º 1543º do Código Civil define servidão predial como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.
Esta noção genérica de servidão evidencia o seguinte:
a) a servidão é um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade;
b) o encargo recai sobre um prédio (o onerado ou serviente);
c) o mesmo aproveita exclusivamente a outro prédio (o dominante);
d) os prédios devem pertencer a donos diferentes (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., págs. 613 a 617).
Sobre a sua constituição, rege o art.º 1547º do mesmo Código, cujo n.º 1 dispõe que “as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família”.
Relativamente à constituição por usucapião, estabelece o art.º 1548º daquele Código que:
1. “As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.
2. Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes”.
Sabe-se que a exigência de sinais visíveis e permanentes para a constituição de uma servidão por usucapião visa afastar a aquisição do respectivo direito com base em actos de mera tolerância e clandestinos praticados pelo proprietário do prédio pretensamente dominante sobre o serviente e facilitar as relações de boa vizinhança.
Com aquela norma, o legislador quis eliminar os títulos precários e passou a exigir para a constituição da servidão sinais visíveis (destinados a garantir a não clandestinidade) e permanentes (por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão).
Assim, para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente.
Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras.
Indispensável é apenas a permanência de sinais, admitindo-se a sua substituição ou transformação.
E também não se torna necessário que toda a obra ou todos os sinais estejam à vista. “Pode bastar perfeitamente que esteja visível uma parte apenas da obra ou do sinal, desde que suficiente para revelar aos olhos do observador o exercício da servidão” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 630 e 631).
A própria lei não exige a verificação de todos os sinais correspondentes à servidão.
Essencial é que haja um sinal que revele o exercício do direito de servidão.
A avaliação desse sinal terá que ser feita de harmonia com a extensão do direito que se pretende fazer valer, sendo que, uma vez demonstrados os restantes elementos de que depende a constituição da servidão por usucapião, basta que aquele aponte para uma confirmação mínima da realidade jurídica que se pretende ver declarada, tal como o impõem os princípios de justiça material e a ratio legis do citado art.º 1548º (cfr., neste sentido, o Ac. da RC de 21/10/2003, in http://www.dgsi.pt/processo n.º 2401/03).
Por outro lado, dispõe o art.º 1287° do CC que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
O antigo Direito chamava-lhe prescrição aquisitiva e porque o registo predial não era obrigatório nem hoje é, em regra, constitutivo, quase sempre as questões de titularidade do direito se resolviam por apelo à usucapião, forma de aquisição originária do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo.
É aqui que mais ressalta a função pacificadora e de segurança da posse, transformando, pelo decurso do tempo, a situação provisória que é a posse na situação definitiva que é o direito de propriedade ou outros direitos reais de gozo que durante anos se possuíram.
Daquela disposição legal depreende-se que a usucapião vive da união destes dois elementos nucleares que são a posse e o decurso do tempo.
A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.
A posse boa para usucapião há-de ter as características de posse verdadeira e própria, não sendo, por isso, usucapíveis direitos que, embora dotados de tutela possessória, se reconduzem a situações de mera detenção. Outros casos há em que a lei, porque não é clara a situação de posse, não admite a usucapião, como acontece com as servidões prediais não aparentes e com os direitos de uso e habitação (art.º 1293°).
Tal posse há-de ser, pelo menos, pública e pacífica, já que a posse violenta ou tomada a ocultas não merece a tutela do direito, sofrendo antes a sua reprovação: se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art.º 1297°).
Nos art.ºs 1294° a 1296° estão regulados os vários prazos, mais ou menos longos de acordo com a natureza da posse, de usucapião de imóveis. Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (art.º 1296° do CC).
A usucapião retroage à data do início da posse em nome próprio, altura em que se inicia uma posse boa para usucapião (art.º 1288°).
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real (corpus) e o faz com a intenção de agir como titular desse direito (animus) - art.º 1251° CC.
Por detrás da actuação do possuidor pode não haver qualquer direito que a legitime ou justifique, traduzindo-se a posse numa simples situação de facto a que a ordem jurídica, todavia, reconhece vários efeitos, que podem consistir, quando a situação possessória se prolongue por certo período de tempo, na sua conversão ou transformação numa situação jurídica definitiva, pela via da usucapião. Fala-se, a tal respeito, em posse formal ou ius possessionis.
Segundo a doutrina tradicional, a posse é constituída pelo corpus - ou poder de facto, o exercício, a prática ou possibilidade de prática de actos materiais, virados para o exterior, visíveis por toda a gente; e pelo animus, elemento psicológico, vontade, intenção de agir como titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados.
Embora não expressamente dito na lei, é pelo animus que se distingue as situações de posse verdadeira e própria das de mera detenção – art.º 1253° - tal como é pelo animus que se sabe que direito é possuído.
O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.
Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n.º 2 do art.º 1252° do C. Civil uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).
E porque a posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem – art.º 1252° - e se mantém enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de continuar essa actuação (art.º 1257°, n° 1), sentiu a lei necessidade de estabelecer as presunções do n° 2 dos art.ºs 1252° e 1257°, segundo as quais se presume a posse naquele que exerce o poder de facto (art.º 1252°, n.º 2) e que a posse continua em nome de quem a começou (art.º 1257°, n.º 2).
Divergências de interpretação destas normas levaram ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 14/5/96, publicado no D.R. n.º 144, de 24/6/96, segundo o qual «podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa».
Mota Pinto já ensinara, há muito, que o exercício do corpus faz presumir o animus, presunção que corresponde à normalidade das coisas, ao quod plerumque accidit.
A posse diz-se titulada quando se funda em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (art.º 1259°). Nenhum vício de fundo afasta hoje categoricamente a titularidade da posse. A lei prescinde apenas da validade substancial do negócio jurídico. Se o acto é nulo por vício de forma, como se, por exemplo, se compra um prédio por escrito particular, ou verbalmente, a posse que daí deriva não é titulada.
A posse diz-se de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a posse não titulada (art.º 1260°). Consagrou aqui a lei o conceito psicológico de boa fé, bem podendo uma posse não titulada ser de boa fé.
Posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art.º 1261°) e considera-se violenta a posse obtida por coacção física ou moral, tanto contra as coisas como contra as pessoas.
Apenas interessa a violência exercida no início da posse, pois neste caso só se inicia a posse a partir da cessação da violência (art.ºs 1261°, n.ºs 1 e 2, 1267°, n.º 2, in fine e 1297°).
Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art.º 1262°). Não é necessário que a posse seja exercida à vista dos interessados, basta que o seja de forma a poder ser deles conhecida.
A posse adquire-se, além do mais, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito (art.º 1263°, al. a)). No caso da servidão de passagem, a posse inicia-se pelo acto de passar por um determinado local, de forma visível e permanente, e exerce-se, continua, enquanto o caminho se mantiver apto a proporcionar as utilidades próprias da servidão (art.ºs 1257°, n° 1, 1544° e 1564° do CC).
No caso dos autos, tal como consta dos factos provados, os quais não foram postos em causa, convém lembrar que:
“Os herdeiros do falecido Delfim, e antes da morte deste, este e a Iria, para acederem ao prédio aludido em B, utilizam um caminho que partindo do caminho público, começa no topo norte do prédio aludido em E e daí segue, dentro deste último prédio, em linha recta, e com o comprimento de 236 m” (n.º 17 da fundamentação de facto);
“Ao chegarem ao fim desse caminho, os herdeiros do falecido Delfim, e antes da morte deste, este e a Iria, saíam do mesmo e seguiam para nascente, atravessado primeiro o prédio aludido em E e depois o prédio aludido em D, até entrarem no prédio aludido em B)” (n.º 18 da fundamentação de facto);
Faziam-no “a pé, com animais à rédea e com tractores, ... há mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam ninguém” (n.ºs 21 a 26 da fundamentação de facto);
O caminho referido no item 17 tem a configuração constante do croquis de fls. 70, com o comprimento de 236 m e a largura de cerca de 3 m e apresenta trilhos até ao ponto E (n.ºs 19 e 20 da fundamentação de facto).
Este caminho, com trilhos numa extensão de 236 m, é bastante para consubstanciar a existência de sinal visível e permanente, mostrando-se inequivocamente reportado ao exercício da servidão, considerando os actos praticados pelos representantes da herança autora e, antes, pelo seu titular.
Note-se que estes sempre utilizaram o aludido caminho, desde há mais de 20 anos, para aceder ao seu prédio, a pé, com animais e com tractores, na convicção de que exerciam um direito próprio.
Do mesmo modo, atravessavam os prédios dos réus, desde o fim daquele caminho até alcançarem o seu prédio, pois este nem sequer comunica ou confronta com a via pública.
Esta factualidade provada permite presumir que o mencionado caminho estava afecto ao exercício da servidão, tanto mais que não consta dos autos que fosse utilizado por mais alguém, a não ser os réus.
Mas a utilização, eventualmente, dada por estes não justifica, por si só, a existência de tal caminho.
E é irrelevante a ausência de trilhos no espaço que medeia entre a extremidade do aludido caminho e o prédio da autora, numa extensão de 40 m.
Por um lado, porque está provado que os representantes da herança e o seu titular também utilizavam esse espaço para acederem ao seu prédio, como já se referiu.
Por outro, porque a falta de trilhos se ficará a dever ao facto de os réus terem lavrado o terreno correspondente, como resulta do facto dado como provado no item 32 e consta da decisão sobre a fundamentação da matéria de facto, onde se fez constar, a propósito do depoimento da testemunha Manuel M....., que “todos os anos, os réus lavravam o sítio por onde ele passava (após sair do caminho)”, o que também foi referenciado pela testemunha Paulo...... Ali, em jeito de conclusão e reportando-se ao animus, o Sr. Juiz escreveu, ainda, que a sua prova se ficou a dever ao tempo de passagem pelos prédios dos réus sem autorização e ao “facto de, mesmo sendo lavrado todos os anos o sítio por onde se passava, depois do caminho, os autores por si e outrem não deixarem de passar por ali, o que só poderá significar, quanto a nós, que entendiam terem o direito de passar”.
Constatada a existência daqueles vestígios e apontando os factos provados para o exercício de um direito de servidão através do corpus, traduzido nos actos materiais correspondentes, e o animus, revelado na convicção de que exerciam um direito próprio, afigura-se-nos que estamos perante uma servidão aparente, como tal, susceptível de ser constituída por usucapião.
E mostrando-se provado que os representantes da autora, e os seus antecessores, desde há mais de vinte anos, vêm acedendo ao seu prédio, identificado no item 2 dos factos provados, através de um caminho que parte do caminho público, no topo norte do prédio identificado no item 5, e se prolonga por esse prédio, em linha recta com o comprimento de 236 m, após o que viram para nascente, atravessando o mesmo prédio e outro referido em 4, ambos pertencentes aos réus, a pé, com animais e com tractores, à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam ninguém, verificados estão todos os requisitos necessários à constituição e ao reconhecimento de uma servidão de passagem por usucapião, nos termos peticionados na acção.
Aliás, a mesma só foi negada na sentença recorrida por não haver “trilhos” a atravessar os prédios dos réus, mas, como se disse, erradamente.

2.3. Da violação/reparação.

Os réus colocaram um portão na entrada do dito caminho e arame na estrema do seu prédio, na parte em que confina com o da autora, bem como lavraram o leito daquele caminho, assim impedindo os herdeiros de utilizarem o mesmo caminho para acederem ao seu prédio, pelo que não puderam fazer a poda, lavra e adubação das oliveiras, o que causou àquela 250,00 € de prejuízo em 2002 (cfr. factualidade provada nos itens 7 e 27 a 36).
Ao procederem deste modo, os réus violaram, dolosa e ilicitamente, o direito de servidão de passagem da autora, o que os constituiu na obrigação de a indemnizar pelos danos resultantes dessa violação (art.º 483º, n.º 1 do C. Civil).
Além de terem que repor a situação anterior à lesão, estão obrigados a indemnizar a autora, por forma a reconstituir a situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.ºs 562º, 563º e 566º, todos do C. Civil).
O montante devido é de 250 €, único dano apurado, relativo ao ano agrícola de 2002.
Não há que condenar no que se liquidar em execução de sentença, visto que nenhum dano se provou, nem sequer foi alegado, relativamente aos anos agrícolas posteriores.
É que do cotejo do art.º 661º, n.º 2 do CPC com os art.ºs 565º e 566º n.º 3 do Código Civil resulta que só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove, em acção declarativa, a sua existência, não existem os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade.
Para a liquidação é essencial que esteja provada a existência dos danos, dispensando-se apenas a prova do respectivo valor.
Só quando o tribunal verificar a existência de um dano e não dispuser de dados que possibilitem a sua quantificação, em sede de acção declarativa, é que pode e deve relegar para execução de sentença a fixação do seu montante.
A existência do dano, como pressuposto da obrigação de indemnizar, tem de ser provada na acção declarativa, apenas se podendo deixar para a execução de sentença a determinação meramente quantitativa do seu valor (cfr., neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 3/12/98, no B.M.J. n.º 482, pág. 179, de 14/10/97 e de 27/10/98, em http://www.dgsi.pt/jstj, processos n.ºs 97A292 e 98A866, da RE de 19/2/87 e da RC de 24/6/86, na CJ, 1987, I, 303 e 1986, III, 76, respectivamente).

Com excepção da nulidade e da indemnização atinente aos danos posteriores a 2002, procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação e, com ela, parte da acção, mais precisamente, no que concerne aos pedidos formulados sob os n.ºs 2 a 4, não se apreciando os restantes por não terem sido objecto do recurso, pelo que, nessa parte, transitou em julgado a sentença recorrida (art.º 684º, n.º 4 do CPC).

III. Decisão

Por tudo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, pelo que se revoga a sentença na parte impugnada e, em consequência, condenam-se os réus a:
1. Reconhecer que se encontra constituída uma servidão de passagem por usucapião sobre os seus prédios identificados nos itens 4 e 5 dos factos provados e a favor do prédio identificado em 2, também dos factos provados, com três metros de largura em toda a sua extensão, a qual parte do caminho público a norte daqueles prédios, junto ao ponto A do croquis de fls. 70 e passa pelos pontos B, E e F, ali assinalados, até atingir este último prédio.
2. Desobstruir a dita passagem, devendo para o efeito:
a) Retirar o portão referido em 7 e 27 a 30 dos factos provados ou, em alternativa, entregar aos representantes da autora uma chave do mesmo, a fim de se poderem servir da passagem sempre que necessitem para aceder ao seu prédio;
b) Retirar o arame mencionado em 31 dos factos provados, numa largura de três metros;
c) Deixar de lavrar o leito da passagem supra identificada em 1.
3. Pagar à autora a quantia de 250 €, a título de indemnização pelos danos sofridos no ano agrícola de 2002.
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Custas da acção e da apelação pela autora/apelante e pelos réus/apelados, na proporção de 1/10 e 9/10, respectivamente.
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Porto, 21 de Janeiro de 2004
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge