Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0744117
Nº Convencional: JTRP00040782
Relator: MARIA ELISA MARQUES
Descritores: OBJECTO DO PROCESSO
JULGAMENTO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
Nº do Documento: RP200711210744117
Data do Acordão: 11/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 289 - FLS 162.
Área Temática: .
Sumário: Recebida a acusação por crime de condução em estado de embriaguez, o juiz não pode, no início da audiência, invocando a margem de erro dos aparelhos de medição de álcool no sangue, considerar que os factos não integram aquele crime e pôr fim ao processo penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO.
No processo Comum (tribunal Singular) nº ../0GNPRT, do Tribunal Judicial da Maia, o Ministério Público formulou acusação contra o arguido B………., imputando-lhe factos susceptíveis de integrarem a pratica de um crime de condução em estado de embriaguez p.p pelo art. 292 em concurso efectivo com um crime de desobediência p.p pelo art. 348º n.º 1 al.a) do Código Penal com referência ao art. 387º nº 2 do CPP, perpetrados no dia 5 de Fevereiro de 2006 (cf. fls. 36-37).
Distribuído ao .º Juízo Criminal, foi recebida a acusação e designado dia para julgamento (fls. 51).
Na acta de audiência da 1ª data designada (19.4.2007), o Mmº Juiz, exarou despacho considerando as margens de erro dos instrumentos utilizados e por via disso a taxa de alcoolemia inferior em 10 pontos percentuais à efectivamente registada em ambos os testes comprovados nos autos – 1,28 g/l –, e em consequência, que a conduta do arguido deixou de integrar o crime do art. 292º do Código Penal, para passar a ser contra-ordenação, e pela não ocorrência do crime de desobediência, decidindo:
“…considero não haver nenhum dos crimes constantes da acusação, dos quais absolveu o arguido e determinou a extracção de certidão para remeter à DGV a fim de instruir processo administrativo de contra-ordenação …” (fls.82-83).

Dessa decisão interpôs recurso o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (fls. 63-72):
1. Com a prolação do despacho a que alude o artigo 311.° do Código do Processo Penal, com o recebimento da acusação pública pelos factos e qualificação dela constantes, ficou esgotado o poder de cognição do juiz quanto a essa matéria, ficando assim impedido de posteriormente os qualificar de modo diferente, sem a necessária produção de prova em audiência de julgamento.
2. Depois de decidir, no despacho a que alude o artigo 311.° a 313.o do Código do Processo Penal que os factos descritos na acusação integram crime, não pode mais tarde o juiz vir dizer que, afinal não preenchem qualquer tipo criminal.
3. No nosso sistema de acordo com o artigo 32.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o processo penal tem estrutura acusatória, uma estrutura que importa uma clara separação entre os órgãos da acusação e do julgamento. No processo penal a acusação é define o objecto do processo e este não integra factos, mas também uma incriminação.
4.Assim, deveria o Mmo Juiz a quo ter realizado o julgamento, produzindo-se prova, só posteriormente proferido decisão de mérito.
5. Relativamente ao crime de condução em estado de embriaguez, a ser verdade que os alcoolímetros têm uma margem de erro, o legislador ainda não transpôs tal circunstância/realidade para a nossa ordem jurídica.
6. O intérprete e aplicador da lei têm de presumir que o legislador, ao regular a matéria relativa à condução sob o efeito do álcool, conhecia todos os pressupostos das soluções adoptadas, incluindo os mecanismos de determinação das taxas relevantes para efeitos sancionatórios.
7. As orientações e determinações sobre a uniformização dos procedimentos relativos à fiscalização do trânsito não podem "contra legem" prever quaisquer margens de tolerância ou margens de erro relativamente aos resultados obtidos através de mecanismos legalmente previstos.
8. Foi no respeito pelos critérios de legalidade e objectividade que o Ministério Público acusou o arguido pela prática do crime de condução em estado de embriaguez, por de conduzir o veículo ligeiro de mercadorias com uma taxa de 1,28g/l, taxa essa determinada pelo aparelho Drager e é na vinculação a esses mesmos princípios que o Ministério Público entende dever recorrer da decisão do Mmo Juiz a quo que absolveu o arguido da prática desse crime, por considerar que a mesma é "contra legem".
9. Relativamente ao crime de desobediência, este não depende, não tem como condição a prática do crime de condução sem carta.
10. Na verdade, não obstante o artigo 387.0 n.o 4 do Código do Processo Penal referir que “se o arguido não comparecer, é lavrado auto de notícia, o qual será entregue ao Ministério Público e servirá de acusação pelo crime de desobediência, que será julgado conjuntamente com os outros crimes, se o processo mantiver a forma sumária”: daqui não se pode retirar que o arguido apenas poderá ser julgado pelos dois crimes conjuntamente, sendo este condição do outro.
11. Face à letra da lei, nos casos em que o processo não mantenha a forma do processo sumária, deverá ser ordenada a separação de processos, ou seja, um processo pelo crime de desobediência, outro pelo(s) crime(s) que levaram à detenção do arguido. Contudo, nada obsta a que, por razões de economia processual, se proceda à investigação e acusação de tais factos num mesmo processo, como sucedeu neste caso (neste sentido, António Augusto Tolda Pinto, in A Tramitação Processual Penal, pág.477).
12. E, de outra forma não poderia ser, pois estamos perante dois crimes distintos, duas resoluções criminosas autónomas, dois bens jurídicos diferentes, não havendo outra relação entre um crime e o outro que não seja a de que Se o arguido não tivesse sido detido em flagrante delito pela prática do primeiro e de tal detenção ter ocorrido fora do horário normal da secretaria judicial; não teria sido notificado para comparecer perante o Ministério Público, no primeiro dia útil seguinte à hora que lhe for designada, sob pena de faltando incorrer na prática do segundo (crime de desobediência).
13. Para além de que, independentemente de o arguido vir ou não a Ser condenado pelo crime de condução em estado de embriaguez, constavam da acusação todos os factos que consubstanciavam a prática pelo arguido do crime de desobediência, isto é, que agente tinha faltado à obediência devida a uma ordem legítima, regularmente comunicada e emanada da autoridade ou funcionário competentes, de forma consciente e voluntária.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogado o despacho recorrido e, consequentemente determinado se designe nova data para a realização de julgamento do arguido pelos factos de que vinha acusado, assim se fazendo JUSTIÇA.

O arguido não apresentou resposta.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (ver fls. 80-87, sufragando a posição do MP em 1ª Instância e pugnando igualmente pela procedência do recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
II – Face às conclusões apresentadas (que delimitam o objecto do recurso), importa decidir:

- o despacho enferma da nulidade prevista na alínea c), nº 1 do art. 379º do CPP, por na fase processual em que foi exarado o despacho ao juiz era vedado conhecer de mérito sem proceder ao julgamento com a produção de prova;
- a decisão que absolveu o arguido da prática do crime de condução em estado de embriaguez é contra-legem, porquanto as orientações e determinações sobre a uniformização dos procedimentos relativos à fiscalização de trânsito não podem prever quaisquer margens de tolerância ou margens de erro relativamente aos resultados obtidos através de mecanismos legalmente previstos;
- o crime de desobediência, não depende, não tem como condição a prática do crime de condução sem carta.
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II- Fundamentação:
O douto despacho sob escrutínio tem o seguinte teor (transcrição por scaner):
" É certo que as margens de erro dos alcoolímetros são valores meramente indicativos á semelhança dos valores previstos na Portaria nº 94/96, de 26/03 para os crimes de tráfico de estupefacientes no que se refere às doses diárias - quanto ao valor probatório desta tabela, cfr. o Acórdão n.º 534/98, do Trib. Constitucional, de 07/08/98, e o Acórdão n.º 43/2002, do Trib. Constitucional, de 31/01/2002, este último publicado no DR, II-S, de 18/07/2002, os quais defendem o entendimento de que essa tabela consagra valores meramente indicativos, pelo que o artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 15/93, ao remeter para ela a definição dos limites quantitativos máximos para cada dose individual diária, o faz com o valor de prova pericial.
Assim sendo, este Tribunal interpreta aquela margem de erro como tendo o valor probatório equiparado ao da prova pericial.
Nos termos do disposto no art.º 163 do C.P.P., o juízo técnico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, sendo que sempre que este divergir terá de fundamentar a divergência. Não subscrevo o entendimento de alguns magistrados, segundo o qual a margem de erro máxima aplicável deve conduzir à absolvição do arguido com o fundamento no príncipio "in dubio pro reo". Considero, antes, que ela tem valor probatório e nos termos semelhantes ao da prova pericial.
Da mesma forma que a margem de erro máxima aplicável favorece os arguidos que, deduzido esse erro ainda acusam uma taxa criminal, também os arguidos a quem, deduzido esse erro seja imputada uma taxa contra-ordenacional devem beneficiar das margens de erro dos alcoolimetros em homenagem ao princípio da igualdade, pois não faz sentido distinguir as acusações pelo crime de condução em estado de embriaguês quando eles se reportam à pratica de factos ocorridos antes do conhecimento e divulgação pela DGV das referidas margens de erro. O caso é tanto mais pertinente quando a TAS que resulta do alcoolimetro se situa no limiar da TAS criminal, pois isso revela não só para efeitos de determinação da modalidade do dolo (dolo directo ou dolo eventual), como para a descriminalização da conduta, sendo que esta descriminalização não tem o relevo jurídico-criminal a que se refere o art. 2º n.º 2 do C.P. pois resulta apenas de à data em que a pesquisa de alcool no sangue foi efectuada, quer o legislador quer o M.º P.º não terem equacionado a possibilidade dos alcoolimetros também conterem margens de erro.
Assim sendo, entendo ainda que não se verifica o crime de desobediência que se encontra associado em termos de competência funcional porquanto este último crime tem como condição a prática de crime de condução sob efeito de alcool como resulta do disposto no art.2 3872 n.2s 2 e 4 do C.P.P., dito de outro modo, o crime de desobediência que resulta da conjugação das disposições dos art.348º n.º 1 al. a) do C. P. e art. º 387º n. º s 2 e 4 do C. P. P. , pressupõe a prática de um crime a que seja aplicada pena de prisão cujo limite não seja superior a três anos, tendo o arguido sido detido em flagrante delito por autoridade judiciária ou policial art. 381º n.º 1 do C.P.P.), e sempre que a detenção tenha ocorrido fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, pois em tal caso o arguido é sujeito a TIR e notificado para comparecer perante o M.ºP.º no primeiro dia útil seguinte com a consequência de que se faltar incorre na prática de um crime de desobediência (art. 387º n.º 2 do C.P.P.).
Também aqui é oportuno chamar à colacção o princípio da igualdade, uma vez que relativamente a crimes praticados no mesmo contexto temporal e em que houve o cuidado de equacionar a existência de margens de erro dos alcoolimetros, quer por parte do M.º P.º quer por parte das entidades policiais, esses arguidos não foram notificados nos termos do art.º 387º n.º 2 do C.P.P. e foi-lhes antes lavrado um auto pela prática de uma contra-ordenação muito grave, sendo o expediente remetido não para o M.º P.º mas sim para a DGV.
Nos termos e pelos fundamentos expostos considero não haver nenhum dos crimes constantes da acusação, dos quais absolvo o arguido, e determino que se extraia certidão integral do processado, a remeter para a DGV a fim de instruir processo administrativo por contra-ordenação, uma vez que ainda não decorreu o prazo prescricional.
Notifique e deposite”.

Importa ainda considerar que, na mesma diligência, o Mmo juiz proferiu um primeiro despacho sobre a problemática das margens de erro máximo aplicáveis tendo dado a palavra ao MP para se pronunciar sobre essa matéria, nada tendo sido promovido
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Como antes resulta do que acima ficou dito, no momento do despacho previsto no art.311, do CPP, o Sr. Juiz declarou de forma genérica não existirem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e recebeu a acusação nos seus precisos termos, pelos factos e disposições legais invocadas pelo Ministério Público, sendo proferido o aludido despacho no decurso dos actos introdutórios da audiência.
Da estrutura acusatória do processo penal (art.º 32º nº5, do CRP), decorre que é a acusação que define o objecto do processo, dela fazendo também parte a qualificação jurídica.
Recebida a acusação, só na fase de julgamento pode haver uma reapreciação do enquadramento jurídico da factualidade imputada, só podendo alterar-se o objecto do processo definido por aquela, e uma vez que o MP no decurso dos actos introdutórios não se lhe suscitou qualquer dúvida, através dos mecanismos previstos nos arts.358 e 359, do CPP, a que não foi lançada mão no caso em apreço.
Daí que, só após a conclusão da audiência, com produção da prova e encerramento da discussão, podia o tribunal pronunciar-se sobre o mérito da acusação.
No caso, porém, o tribunal optou por uma apreciação de mérito intempestiva, fazendo relativamente a um oficio da DGV um juízo de mérito, com base no qual concluiu que os ilícitos imputados ao arguido não constituem crime de que absolveu o arguido, com o que ultrapassou as normas que regulam o julgamento nomeadamente sobre a produção de prova e alegações orais.
Na realidade, a apreciação de mérito sobre a acusação só é possível após realização integral e plena do acto processual que é o julgamento, cujos procedimentos previstos na lei processual são essenciais para a descoberta da verdade material, o qual terminará com a sentença, peça esta que tem de obedecer aos requisitos previstos no art.374º do CPP.
Em resumo, os factos que definem o objecto do processo são os descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, por essa razão impunha-se que o julgamento perseguisse até ao encerramento da discussão, só após sendo lícito ao julgador fazer a apreciação do mérito da causa.
Procede, pois a primeira questão do recurso, e por via disso prejudicadas ficam as demais.

No entanto, sempre se dirá, a título meramente indicativo, que tem sido entendimento cremos que uniforme desta Relação, que não há que fazer descontos sobre as margens de erro dos alcoolímetros porquanto já foram tidos em conta quando da aprovação dos aparelhos.
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III- DECISÃO:

Face ao exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Porto, acordam:
a) Em dar provimento ao recurso do Ministério Público, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, designando data para continuação do julgamento.
b) Sem tributação.

(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas).

Porto, 21 de Novembro de 2007
Maria Elisa da Silva Marques Matos Silva
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho