Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10545/09.1TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: BUSCA
REVISTA
CRIME MILITAR
Nº do Documento: RP2010111010545/09.1TDPRT.P1
Data do Acordão: 11/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos casos de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, as buscas e as revistas efectuadas por órgãos de polícia criminal não estão sujeitas a prévia autorização ou ordenação por despacho da autoridade judiciária competente.
II - Os crimes de natureza estritamente militar [art. 1.º do CJM] pressupõem uma conexão relevante, não meramente acidental, entre o facto e os interesses militares da defesa nacional.
III - Tal é o caso quando o material de guerra apreendido é uma granada de mão, utilizada para a instrução das Forças Armadas e das forças de segurança e que está associada a actos de guerra, pelo que não tem prevista uma utilização para fins civis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. nº 10545.09.1TDPRT
TRP 1ª Secção Criminal


Acordam os juízes em conferência no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. C. nº 10545.09.1TDPRT, da .ª Vara Criminal do Porto, foi julgado o arguido
B……….

E a final por sentença de 7/7/2010, foi proferida a seguinte:
“Decisão:
Acordam os juízes que constituem este Tribunal Colectivo em julgar procedente por provada a acusação e, em consequência:
Condenar o arguido B………. como autor material de um crime de comércio ilícito de material de guerra, previsto e punido pelas disposições dos artigos 82º e 83º nº1 al. b) do CJM, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão efectiva.”

Inconformado recorreu o arguido, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1. Salvaguardado o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 127.º, CPP, no que tange ao teor dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento e confrontados estes com a restante prova carreada para os autos, considera o aqui recorrente incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto tida por assente:
● “O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não podia ter consigo o referido objecto, por ser material de guerra, e não ter autorização legal para tanto”;
● “Sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida”;
2. Pois, é certo que o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.º, CPP, tanto que a decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (PROF. FIGUEIREDO DIAS, “Direito Processual Penal, vol. I”, 1974, pag. 204);
3. Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, pois como ensinava o PROF. ALBERTO DOS REIS, “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal” – “Código de Processo Civil Anotado – vol. IV”, pags. 566 e segs;
4. Todavia, o art. 127.º, CPP indica-nos como limite à discricionariedade do julgador as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20.03.2006, em www.dgsi.pt);
5. É com base nas regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica que – tendo-se em atenção a factualidade dada como verificada e os suportes técnicos juntos aos presentes autos que a sustentam (CD-ROM) – somos forçados a concluir que não só tal matéria fáctica é manifestamente insuficiente para se ter concluído como o fez o tribunal colectivo, como é mesmo inquestionável ter-se verificado manifesto e incontornável erro na apreciação e na valoração da prova;
6. Analisando o depoimento do arguido B………. (CD-ROM, 11:42:31 a 11:53:35), podemos constatar à saciedade que o arguido transportava consigo a granada, convencidíssimo que se tratava de algo antigo (3:04 – 3:20), não fazendo a mínima ideia de que se tratava de material de guerra (3:45 – 4:31) e unicamente com o intuito de vender a dita granada a um antiquário (7:17 – 8:49);
7. O que aliás pode ser corroborado pelo depoimento das testemunhas C………., Cabo da GNR (2:10 – 2:26, CD-ROM) e D………., Soldado da GNR (4:34 – 4:59, CD-ROM);
8. Sendo do conhecimento geral que as granadas são accionadas pela extracção da uma cavilha de segurança, que accionará um dispositivo disparador de uma espoleta, que, por sua vez, se incendeia, detonando a carga explosiva, e provocando a explosão da granada, só podemos concluir – pela forma como o arguido transportava a granada, debaixo do tapete do condutor, sujeita ao contacto da cavilha com os pés – tratar-se de alguém desconhecedor do funcionamento do mecanismo de uma granada ou das potencialidades letais de tal instrumento bélico;
9. O que, aliás, também acaba por ser reforçado pelo relatório social, que descreve o arguido como alguém com tendência para a prática de crimes sem habilitação legal e contra o património, mas sem qualquer experiência ou antecedentes militares;
10. Outrossim, de acordo com o exame pericial efectuado à granada, por uma Comissão Técnica, constituída por dois elementos, do Quartel do Carmo, do Comando Territorial do Porto da GNR, concluíram os peritos tratar-se de uma granada “…em mau estado de conservação…”, podendo, “…ser perigosa a sua arrecadação e manuseamento em virtude de apresentar alguma deterioração e não ter qualquer valor”;
11. Logo, ao dar como provado que “o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não podia ter consigo o referido objecto, por ser material de guerra, e não ter autorização legal para tanto” e que “sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida”, o princípio da livre apreciação da prova do Tribunal a quo esbarra nitidamente com as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, ultrapassando uma barreira intransponível;
12. Sem prescindir, e com todo o respeito que é devido, o douto acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 118.º, n.º 3, 126.º, n.º 3, 174.º, n.º 3, 174.º, n.º 5, alínea c), 251.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do CPP e os arts. 1.º, 82.º e 83.º, n.º 1, alínea b), todos do CJM;
13. Arguida a nulidade da prova resultante da busca realizada no interior do veículo automóvel do recorrente, por se tratar de prova proibida, nos termos do art. 126.º, n.º 3, CPP, uma vez que a aludida busca não foi nem autorizada pelo recorrente nem determinada por mandado judicial, o Tribunal a quo entendeu não se tratar de uma busca, mas de uma revista efectuada ao veículo automóvel que o arguido conduzia e não sujeita a prévia autorização judicial, nos termos do art. 174.º, n.º 5, alínea c), uma vez que o arguido estava a conduzir sem estar habilitado e tinha contra ele mandado de captura para cumprimento de uma pena de prisão;
14. Ora, a revista consiste em proceder ao exame ou à inspecção minuciosa de uma pessoa, a qualquer hora do dia ou da noite, para se verificar se a mesma oculta ou não objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova daquele (Neste sentido, GUEDES VALENTE, “Revistas e Buscas”, Almedina, 2.ª edição, págs. 19-20);
15. A busca, por sua vez, é um meio de obtenção de prova, que se realiza num local reservado ou não livremente acessível ao público, desde que sobre esse mesmo local existam indícios de que se encontram objectos relacionados com a prática de um crime e que são susceptíveis de servirem de prova no processo crime em curso ou que nele se escondem pessoas que devem ser detidas, para serem presentes à autoridade judicial competente (Neste sentido, GUEDES VALENTE, obra citada, págs. 59-60);
16. Lugar reservado ou não acessível ao público é todo aquele que, embora possa revelar factos da vida privada do arguido ou de qualquer pessoa que deva ser detida, não seja considerado domicílio destes, nomeadamente garagens, barracões, veículos automóveis, etc. (Neste sentido, FERNANDO GONÇALVES e MANUEL JOÃO ALVES, “Os Tribunais, as Polícias e o Cidadão”, Almedina, 2.ª edição, pág. 202);
17. No caso dos autos, estamos perante uma busca efectuada ao veículo automóvel que o arguido conduzia, e, portanto, uma busca não domiciliária;
18. O legislador, precavendo-se de demoras inusitadas, previu e legitimou a realização de tais buscas por OPC sem que para tal seja necessário recorrer previamente à autorização judicial, conforme regimes excepcionais previstos na alínea a), do n.º 1, do art. 251.º, CPP, quanto a buscas não domiciliárias, no n.º 5, do art. 174.º, CPP e no n.º 3, do art. 34.º, CRP, quanto a buscas domiciliárias (GUEDES VALENTE, obra citada, págs. 63-64);
19. Resulta de um excerto do depoimento da testemunha C………. que a busca realizada no interior do automóvel do ora recorrente foi determinada pelo facto do arguido ter antecedentes criminais, por ter contra si pendente um mandado de captura e também por motivos de segurança (12:35-14:08, CD-ROM);
20. Portanto, a busca realizada no veículo automóvel do recorrente não se enquadra no art. 174.º, n.º 5, alínea c), CPP, pois – embora o arguido fosse detido em flagrante delito por crime a que corresponde pena de prisão, in casu o crime de condução sem habilitação legal – a busca é um meio de obtenção de prova, que se realiza num local reservado ou não livremente acessível ao público, desde que sobre esse mesmo local existam indícios de que se encontram objectos relacionados com a prática do crime (GUEDES VALENTE, obra citada, págs. 59-60);
21. Logo, não havia qualquer necessidade de proceder a uma busca no interior da viatura do arguido para a recolha de elementos relacionados com a prática do crime, pois o crime que justificou a detenção em flagrante – condução sem habilitação legal – já estava “mais de que indiciado”;
22. Portanto, a aludida busca não é susceptível de enquadramento legal no art. 174.º, n.º 5, alínea c), como pretende o Tribunal a quo;
23. Quanto às buscas de natureza cautelar, previstas no art. 251.º, n.º 1, alínea a), CPP, ainda que seja admissível o enquadramento normativo da situação dos autos neste preceito, o n.º 2 do referido normativo exige a aplicação do n.º 6, do art. 174.º, CPP, i.e., comunicação imediata da diligência ao juiz de instrução para apreciação e validação, sob pena de nulidade, o que, manifestamente, não se verificou nestes autos;
24. Destarte, o n.º 3, do art. 126.º, CPP estipula como nulas “as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”, o que foi inequivocamente o caso destes autos, em que a granada é obtida mediante intromissão dos OPC na viatura do arguido, sem o consentimento deste;
25. Portanto, estamos perante a obtenção de um meio de prova mediante um método proibido, o que torna essa prova totalmente inútil, porque em absoluto não utilizável, exceptuando a utilização com o fim exclusivo de basear uma condenação da pessoa que ilegalmente a obteve, nos termos do art. 126.º, n.º 4, CPP (Neste sentido, TERESA BELEZA, “Apontamentos de Direito Processual Penal – Volume II”, AAFDL, 1992, págs. 151-152);
26. Como ensina o Doutor MANUEL DA COSTA ANDRADE, há uma imbricação intima entre as proibições de prova e o regime das nulidades, tratando-se, porém, de realidades distintas e autónomas, porque, embora a utilização de uma prova proibida no processo tenha os efeitos da nulidade do acto, o regime de proibições de prova não há-de reconduzir-se, pura e simplesmente, ao regime das nulidades, pois, se assim fosse, seria dificilmente explicável o n.º 3 do art. 118.º, seguindo, porém, o regime das nulidades insanáveis. (Em, “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra, pág. 120);
27. Por isso, a nulidade resultante da produção de prova proibida, como é o caso dos autos em apreço, será de conhecimento oficioso até decisão final, só se convalidando com o trânsito em julgado do acórdão, e, para os devidos efeitos, aqui vai arguida;
28. Ainda que assim não se entenda, o que para efeitos de raciocínio meramente académico se admite, no que à granada encontrada no interior do veículo automóvel do recorrente diz respeito, não foi dado como provado que a mesma era propriedade das Forças Armadas, resultando, todavia, inquestionável, que o arguido tinha na sua posse a granada apreendida, objecto que, pelas suas concretas características se qualifica de material de guerra;
29. A aplicação do Código de Justiça Militar (CJM) está dependente de ter o agente cometido um crime de natureza estritamente militar, nos termos que se acham consagrados no n.º 1, do artigo 1.º, desse diploma legal, clarificando-se, no n.º 2 desse preceito, que “constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificados pela lei”;
30. A ser assim, como é, a conduta de um qualquer agente, para se subsumir às normas estabelecidas no CJM tem, antes de mais, de contender, de colocar em crise, esse bem primeiro que o legislador pretendeu defender com a incriminação;
31. Por este facto deixou de ser condição essencial para o preenchimento deste tipo de ilícitos a condição de militar, pois estes (os militares) podem cometer crimes que, por não atentarem contra os interesses militares da defesa nacional, são ilícitos criminais punidos pela lei penal comum e, por outro lado, não militares (civis) podem praticar crimes que atentem contra a defesa nacional caiam no âmbito de aplicação do CJM;
32. Ora, se não é condição do cometimento de um crime estritamente militar a condição pessoal de quem o comete, também não será suficiente, para o seu preenchimento, a mera detenção de um determinado tipo de munição ou de uma arma de guerra, pois se esta não tiver como destino exclusivo fins militares, cai no âmbito da lei comum (Lei 42/2006, de 25 de Agosto).
33. A defesa nacional é um conceito com dignidade constitucional, plasmado no art. 273.º, CRP e suficientemente abrangente para nele se poderem incluir múltiplas e variadas situações da vida – quer militar quer de outra natureza – e não é “tão frágil” que a mera detenção de uma granada ou outro material de guerra, por si só, seja suficiente para o fazer perigar, mesmo provando-se que esse material em algum momento foi pertença das Forças Armadas, o que não foi o caso nos autos em apreço;
34. A Constituição exige que o legislador se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo submeter à jurisdição militar aquelas infracções que afectem inequivocamente interesses de carácter militar e que por isso mesmo hão-de ter com a instituição militar uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional;
35. Não poderão assim entrar na definição de crimes estritamente militares os crimes comuns em que a única ligação com as Forças Armadas seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (a qualidade de uma granada), postulando-se antes a existência de uma conexão estrutural entre o fundamento da punibilidade da conduta e os interesses da instituição militar ou da defesa nacional (Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04.02.2009, em www.dgsi.pt);
36. Analisando o caso em apreço, como dos factos provados consta, relativamente à granada, não foi possível determinar a respectiva anterior propriedade pelas Forças Armadas e assim, não obstante se possa admitir a hipótese da granada ter pertencido às FA, também se tem que admitir que possa ter uma outra proveniência, em nada relacionada com os crimes previstos nos artigos 82.° e 83.°, CJM;
37. A valoração do modo como o arguido manteve a granada na sua posse e o mau estado de conservação em que a mesma se encontrava são circunstâncias que, ponderadas conjuntamente, nos levam a concluir que a detenção da arma, por si só, não tem virtualidade para atentar contra os interesses militares da defesa nacional, não constituindo, por isso, a sua posse um crime estritamente militar;
38. A posse pelo arguido daquela granada, nas referidas circunstâncias, revela que apenas existe uma conexão acidental com a instituição militar (por aquele material de guerra ser propriedade das Forças Armadas, eventualmente), o que, todavia, não é suficiente para se poder concluir que foram directamente colocados em perigo ou lesados os interesses da defesa nacional, mesmo olhando para a vertente da diminuição de capacidade e operacionalidade militares, devendo tamanha evidência ser suficiente para conduzir à absolvição do arguido;”

Respondeu o MºPº pugnando pela manutenção da decisão;
Nesta Relação a ilustre PGA é de igual parecer.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP e não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos procedeu-se á conferência com observância do formalismo legal.
Cumpre apreciar.
Consta do acórdão recorrido (transcrição parcial):
“Factos provados:
Em 25 de Junho de 2009, pelas 10 horas, na Mealhada e no decurso de uma inspecção efectuada ao veículo de matricula RQ-71-62 por elemento da GNR, que desenvolviam uma acção de fiscalização de trânsito, foi encontrada no interior daquele veículo uma granada de mão de instrução, de cor preta, que continha as inscrições “………. e na alavanca feita de metal de cor preta, presa com um cordel, constava a inscrição “……….”.
Era o arguido que conduzia o veículo e do mesmo tinha a direcção efectiva.
Apreendido este objecto foi efectuado exame pericial por uma Comissão Técnica, constituída por dois elementos, do Quartel do Carmo do Comando Territorial do Porto da Guarda Nacional Republicana, em 26 de Junho de 2009, tendo os peritos concluído tratar-se de uma granada utilizada para a instrução das Forças Armadas e Forças de Segurança, encontrar-se em mau estado de conservação, poder ser perigosa a sua arrecadação e manuseamento em virtude de apresentar alguma deterioração e não ter qualquer valor.
Em virtude disso, foi aquele objecto destruído.
A granada apreendida é considerada material de guerra de acordo com o disposto na alínea d) do artigo 7° do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.° 100/2003, de 15 de Novembro.
O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não podia ter consigo o referido objecto, por ser material de guerra, e não ter autorização legal para tanto.
Sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.
Mais se provou que o arguido ter-se-á desenvolvido num ambiente familiar marcado por dificuldades económicas e lacunas ao nível da autoridade e controlo parental. Concluiu o 1.º ciclo do ensino básico e, no período da adolescência e em contexto de grupo de pares, terão surgido alguns comportamentos desviantes.
Viveu maritalmente com uma companheira, existindo dois filhos dessa relação, com 7 e 4 anos de idade. Verbaliza afecto pelos mesmos, contudo, não parece ter um papel responsável, nomeadamente educativo.
Em termos profissionais, o arguido terá desempenhado actividades na área da construção civil, como calceteiro e na construção de estradas, assim como na agricultura.
A prática de ilícitos surge num quadro de imaturidade, irregularidade laboral e associada a vivência grupal com gosto pela vida nocturna.
Constata-se tendência para a prática de crimes de condução sem habilitação legal, vindo a ser condenado em penas de multa e de prisão, assinalando-se também a prática de crimes contra o património. Preso desde 16/07/2009 para cumprir a pena de 2 anos de prisão, esta viria a ser cumulada no âmbito de outro processo, fixando-se em 3 anos de prisão. Apresenta um anterior contacto com o Sistema Penitenciário, entre Abril e Novembro de 2007, vindo a ser libertado após julgamento e condenação na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com regime de prova e acompanhamento pelos Serviços de Reinserção Social. Esta medida probatória foi entretanto revogada. Durante a execução da actual pena de prisão voltou a ser condenado em 14 meses de prisão.
À data do envolvimento no presente processo, B………. mantinha-se em paradeiro desconhecido, após conhecimento da decisão no âmbito de um processo em que foi condenado em pena de prisão, impedindo a execução do mandado de captura.
Residiria com uma namorada, realizando deslocações à residência dos pais, cujo agregado integrava anteriormente. Vivenciava elevada fragilidade económica, mantendo alguns trabalhos pontuais e em função das necessidades mais imediatas. Não lhe era conhecida a participação em actividades sociais estruturadas, sendo que no âmbito de acompanhamento pelos Serviços de Reinserção Social veio a manter alguma irregularidade às entrevistas marcadas, não se envolvendo responsavelmente nas acções delineadas, nomeadamente aderir a projecto profissional consistente.
B………. revela, a nível pessoal, alguma imaturidade, dificuldades em antecipar as consequências dos seus comportamentos, verificando-se que não vem assumindo planos suficientemente realistas e facilitadores da reorganização de um percurso de vida de forma responsável.
Em meio prisional, vem evidenciando adequação comportamental e parece ser detentor de capacidades para o relacionamento interpessoal, adoptando uma postura cordial. Verbaliza interesse em desenvolver actividade laboral, todavia, não demonstra interesse na aquisição de competências, quer escolares quer formativas. Não beneficiou ainda de qualquer medida de flexibilização da pena de prisão.
O arguido, restituído à liberdade, perspectiva o seu futuro em moldes em que dá primazia às vinculações familiares e ao trabalho.
Alegando as deficientes condições de habitabilidade da casa que partilhava com a namorada e o agregado de origem desta, expressa intenção de integrar o núcleo constituído pelos seus pais, irmã, cunhado e sobrinha, que habitam em casa própria, de construção antiga.
A família sempre se dispôs a dar ajuda ao arguido e apoiá-lo na sua reinserção social. Contudo, manifesta ensejo de se autonomizar em conjunto com a namorada, constituindo o seu próprio agregado familiar.
No meio comunitário, o arguido é conotado com comportamentos marginais e detém uma imagem negativa, apesar de não se verificar rejeição.
Em termos laborais, o arguido não avalia como problemática a sua inserção no mercado de trabalho. Verbaliza a possibilidade de vir a desempenhar actividade por conta de um anterior empregador, hipótese aparentemente pouco consistente, dada a falta de consolidação de um percurso laboral e da não interiorização de hábitos de trabalho.
Ainda se provou que o arguido respondeu por várias vezes em tribunal, tendo sido condenado sobretudo pelo crime de condução ilegal e por crimes contra o património, encontrando-se presentemente preso em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional Regional das ..........

Factos não provados:
Não se provaram outros factos para além dos dados como provados nem quaisquer outros com interesse para a boa decisão da causa.

Motivação:
Os factos provados e acima elencados resultaram da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência feita segundo os critérios contidos no artigo 127º do C.P.P..
Assim o arguido prestou declarações referindo ter encontrado numa sucata a granada em causa e que pegou nela para a tentar vender junto de um amigo que comprava coisas velhas.
As declarações prestadas pelas testemunhas seguintes:
C………., Cabo da GNR que, de modo isento coerente e credível relatou que no âmbito de uma acção de fiscalização de trânsito interveio, fazendo parar a viatura conduzida pelo arguido. Como este não tinha elementos de identificação De seguida verifica que o mesmo tem mandados de captura para cumprimento de uma pena e que este arguido era alguém bastante procurado pela GNR de ........... Numa primeira acção inspectiva de segurança efectuada ao veículo foi detectada a dita granada que o arguido transportava debaixo do tapete da viatura.
D………., esta testemunha arrolada pela defesa do arguido, também soldado da GNR que de modo isento, coerente e credível referiu que numa acção de fiscalização de trânsito efectuada, fizeram parar o veículo conduzido pelo arguido que o mesmo não levava com ele qualquer documento de identificação, Foi por esta razão conduzido ao posto da GNR mais próximo e ali foi encontrada, por baixo do tapete da viatura, junto ao lugar do condutor a granada, que apesar de estar suja, se via perfeitamente que era uma granada.
Ainda a análise dos documentos juntos aos autos, certidão do auto de notícia de fls. 4, auto de apreensão de fls. 6, relatório de exame pericial de fls. 8, fotografia da granada apreendida e junta a fls. 9, auto de destruição de fls. 10, relatório social de fls. 92 a 94 dos autos, para se dar como provados os factos pessoais e o percurso de vida do arguido, bem como o CRC do arguido junto aos autos, para se darem por assentes os seus antecedentes criminais.”
+
São as seguintes as questões suscitadas e a apreciar:
- impugnação da matéria de facto;
- legalidade da busca ao veiculo e apreensão da granada;
- qualificação do crime (não prova de que a granada era propriedade das Forças Armadas, e não atenta contra os interesses militares da defesa nacional)
+
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisp dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (idem: Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95, mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, vícios que não são alegados, nem vislumbramos.
+
Pese embora o ordenamento das questões pelo recorrente, afigura-se-nos mais correcto começar o conhecimento das questões suscitadas pela apreciação da validade da busca.
Alega o recorrente que a busca ao veículo onde estava a granada é nula, porque não autorizada judicialmente.
A sentença recorrida diz que “não se tratou de uma busca, antes de uma revista efectuada ao veículo automóvel que o arguido conduzia.”, e que atento o disposto no artº174º5c) CPP “perante o caso concreto, que a revista efectuada ao veículo conduzido pelo arguido não estava sujeita à prévia autorização judicial. O arguido estava a conduzir sem estar habilitado, tinha contra ele pendente mandado de captura para cumprimento de uma pena de prisão.”
Ora decorre dos factos que o arguido conduzia o veiculo onde tinha guardada a granada, sem carta de condução e sem documentos de identificação e que tinha mandados de captura pendentes, razão da sua detenção e condução ao posto da GNR onde “numa … acção inspectiva de segurança ao veiculo … foi detectada a dita granada…”- cfr. auto de noticia

Qualifica o arguido que tal acção como enquadrada no artº 126º3 CPP que considera nulas as “provas obtidas mediante intromissão na vida, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.

Vejamos.
Como único requisito das revistas (nas pessoas) e buscas (nas coisas), previsto no artº 174º3 CPP existe a autorização ou ordem da autoridade judiciária, mas tal requisito é dispensado quando tal acto é efectuada pelo órgão de justiça criminal, “aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão” – al. c) do nº5 do artº 174º CPP – o que no caso de verifica.
Isto é nestas circunstâncias, é dispensada a autorização judiciária pelas razões de evidência dos factos, celeridade e de segurança.
Ora para além da detenção por condução ilegal, também o cumprimento dos mandados de captura determinavam a captura do arguido, e impunham que o veiculo (objecto/meio de cometimento do crime de condução ilegal) fosse removido do local da fiscalização (via publica) para local apropriado da autoridade fiscalizadora, não permitindo que o mesmo fosse “conduzido” ilegalmente pelo detido. Ou seja a detenção do arguido implica a remoção do veículo por ele conduzido, necessariamente. Tal acção de remoção e guarda tem por razões de segurança de diversa ordem, de ser precedida ou seguida de exame, não apenas para aquilatar do seu estado mas também da segurança intrínseca das instalações para onde deve ser removido e das pessoas que nelas se encontram.
Também e por outro lado o artº 251º1a) CPP autoriza as autoridades policiais, sem prévia autorização da autoridade judiciária, á realização de “revista … em caso… de detenção e a buscas no lugar em que se encontrarem…”
Mas como resulta, expressamente, do auto de noticia de fls. 4 dos autos, e ao contrário do que pretende o arguido /recorrente, a busca no veiculo não foi motivada pelo ilícito de condução ilegal (que não foi objecto deste processo), mas por virtude da detenção do arguido motivada pelo cumprimento dos mandados de detenção pendente para cumprimento da pena de prisão de dois anos por crime de furto qualificado.
Naqueles e nestes casos, é do senso comum, que a autoridade policial, não deve proceder á detenção ou apreensão dos bens, sem que proceda a uma revista ou busca (na pessoa ou nas coisas que detém consigo) de modo a comprovar que não tem coisas ou bens com que possa obviar (e impedir) a detenção em execução. Trata-se de medidas de prevenção e de segurança policiais, e de carácter urgente, de modo a evitar actos de fuga ou de violência, através de objectos que detêm ou a que podem ter acesso.
Como se refere no texto do ac. STJ de 04/01/2004 in www.dgsi.pt/jstj proc. 05P767, Juiz Cons. Pereira Madeira “Estes procedimentos cautelares, justamente porque o são, não podem prescindir do imediatismo da decisão e da acção, sob pena de a investigação criminal ser relegada ainda mais para o rol das inutilidades. … A diligência tinha de ser, como foi, efectuada de imediato, o que a lei permite e o bom senso sempre exigiria”, ou então, parafraseando o mesmo acórdão, que pensar, se fosse permitido ao arguido deslocar-se ao seu veiculo (não inspeccionado) e sabedor da arma / granada que ali detinha, a usava para fugir ou para a fazer explodir no posto da GNR?
È para evitar o absurdo destas situações que estes procedimentos cautelares existem, e estão previstos, adaptando-se ao caso dos autos.
Por outro lado como se mostra a fls. 6 dos autos, tal acto policial foi devidamente validado pela autoridade judiciária no próprio dia, em conformidade com o disposto no artº 178º1 e 5 CPP.
Improcede por isso esta questão

Por outro lado, mesmo que estejamos perante uma compressão dos direitos do arguido, e não estão em causa os direitos fundamentais inerentes á obtenção de prova proibida (Os absolutamente proibidos: aqueles que, pelo uso de tortura, coacção ou em geral ofensas à integridade física ou moral, não podem em caso algum ser utilizados, mesmo com o consentimento dos ofendidos – nºs 1 e 2. – cfr Ac. do STJ de 20/09/06, Proc. nº 06P2321) - artº 126º1 CPP - e se se podem considerar incluídas no nº3 do artº 126º CPP, (Os relativamente proibidos: que concernem ao uso de meios de prova com intromissão na correspondência, na vida privada, domicílio ou telecomunicações, sem consentimento do respectivo titular –nº 3. – cfr. Ac. STJ citado), o certo é que a realização da uma busca no automóvel era justificada, tanto mais que se estava perante um grau de violação do direito a reserva da vida privada do condutor algo diminuto, e o modo como foi exercido visa garantir também o direito fundamental do artº 27º1 CRP: o direito à liberdade e segurança, que ali adquiria maior premência.
È a seguinte a lição do STJ no texto do seu Ac. de 12-03-2009 in www.dgsi.pt/jstj proc. 09P0395 Juiz Cons. Santos Cabral: “ Assim, prescreve o nº8 do referido artigo 32, que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações. Por tal forma se fulmina com a nulidade qualquer prova que tenha sido obtida em contravenção com aqueles direitos com assento constitucional e se comina a impossibilidade de tais elementos serem valorados no processo. Estamos, assim, perante o núcleo essencial das proibições de prova que veio a conformar e determinar o legislador ordinário ao consagrar no artigo 126 do Código de Processo Penal, os denominados métodos proibidos de prova.
Todavia, é nítido o diferente recorte que assumem, no preceito citado, e em termos de tonalidade ético normativa, a proibição de provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas em relação àquelas que têm por fundamento a intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações. Se, na primeira hipótese, estamos perante uma proibição absoluta, insusceptível de qualquer concessão, pois que está em causa o próprio cerne dos direitos de personalidade, já no segundo caso é a própria norma - ao admitir os casos ressalvados na lei - que admite a compressão de direitos constitucionais, porquanto tal é razoável e admissível numa lógica de proporcionalidade e exigido pelo próprio interesse do Estado no funcionamento da justiça penal.
As proibições de prova dão lugar a provas nulas (artigo 32, nº 8, da Constituição da República). Porém, a nulidade das provas proibidas obedece a um regime próprio, distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável. Como se referiu trata-se de um regime complexo, que distingue dois tipos de proibições de provas consoante atinjam a integridade física e moral ou a privacidade da pessoa humana. Como refere Paulo Pinto Albuquerque “ a nulidade da prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral previsto no artigo 126, nº 1 e 2 do CPP é insanável; a nulidade da prova proibida que atinge os direitos à privacidade previstos no artigo 126, nº 3 é sanável pelo consentimento do titular do direito. A legitimidade para o consentimento depende da titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão ilegal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do acto, tudo com a consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Em síntese, o artigo 126, nº 1 e 2, prevê nulidades absolutas de prova e o nº 3 prevê nulidades relativas de prova”.
Poderíamos, assim, sintetizar, dizendo que a interdição de prova é absoluta no caso do direito à integridade da pessoa e relativa nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34°-2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada ou quando aniquiladora dos próprios direitos (art. 18°-2 e 3). Nos casos restantes, em que se elencam as provas obtidas mediante intromissão na vida privada; no domicílio ou na correspondência, a interdição é relativa e conformada pela ausência de consentimento do respectivo titular.”
Ora a assim considerar e tendo em contra, como se defende no texto do Ac.R.P. de 27/1/2010, www.dgsi.pt/jtrp proc.896/07.5JAPRT.P1 Des. Artur Vargues “A menção de que o consentimento do titular do direito violado afasta a nulidade, conduz à conclusão (continua a conduzir mesmo após a alteração legislativa de 2007) de que estamos perante uma nulidade sanável, pois o artigo 126º não a comina como insanável e certo é também que a proibição de utilização das provas assim obtidas não consta do elenco das nulidades insanáveis do artigo 119º, do CPP.
A este entendimento não obsta a nova redacção do mencionado nº 3, introduzida pela Lei nº 48/07, de 29/08, que se limitou a acrescentar o segmento “não podendo ser utilizadas”, o que em nada contende com a argumentação expendida.” que estamos perante uma nulidade sujeita a arguição, e porque não o foi em devido tempo a sua invocação tardia impede a sua apreciação e consideração.
Pelo que também por esta via improcede a questão;
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Impugna a matéria de facto provada consistente “O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não podia ter consigo o referido objecto, por ser material de guerra, e não ter autorização legal para tanto.
Sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida. “pondo em causa a apreciação das declarações do arguido e do depoimentos das testemunhas ouvidas, transcrevendo as declarações e os depoimentos, que imporiam decisão diversa, ou seja pretende a reapreciação da prova gravada (impugnação ampla) que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova (documentada) produzida em audiência.

Mas nestes casos, o conhecimento da matéria de facto é feito dentro dos limites estabelecidos pelo recorrente em face dos ónus de especificação previstos pelo nº 3 e 4 do art. 412º CPP que impõe:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas;
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
………
6. No caso previsto no nº4 o tribunal procede á audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

Todavia há que ter presente que tal recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um remédio para eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida (erros in judicando ou in procedendo) na forma como o tribunal recorrido apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, pelo que não pressupõe a reapreciação total dos elementos de prova produzidos em audiência e que fundamentaram a decisão recorrida, mas apenas aqueles sindicados pelo recorrente e no concreto ponto questionado, constituindo uma reapreciação autónoma sobre a bondade e razoabilidade da apreciação e decisão do tribunal recorrido quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

A especificação dos “concretos pontos de facto” constituem a indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, e as “concretas provas” consistem na identificação e indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, e havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, e dentro destas tem o recorrente de indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (ónus que cumpre), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, o qual pode todavia apreciar outras que ache relevantes (nº 4 e 6 do artº412º CPP
Mas mesmo essa reapreciação, como assinala o STJ ac. de 2.6.08, no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt. sofre as limitações consistentes:
- Nas que decorrem da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo como assinalado o conhecimento aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- Nas que decorrem da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;
- Nas resultantes, como mencionado, de a análise e ponderação a efectuar pela Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita á averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e
- Na resultante de o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º) (cfr. também o Ac. RLX de 10.10.07, no proc. 8428/07, em www.dgsi.pt/jtrl)

Ao impugnar a matéria de facto indica como prova que imporia decisão diversa as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas ouvidas.
Ora das declarações do arguido prestadas tal não ocorre:
Desde logo nunca é posta em causa que o mesmo tenha agido voluntária e livremente, antes pelo contrário, pois que diz que encontrou o objecto na mala de um carro numa sucata de que se apoderou e trouxe consigo para vender e assim obter algum dinheiro (transcrição fls. 159) pelo que sabia muito bem o que estava a fazer.
E que “aquilo” era uma granada, material de guerra resulta também das suas declarações, ao afirmar que sabia o que era pelo “que eu vejo na televisão” “por aquilo que eu vejo nos filmes, aquilo era uma granada” (fls. 161) e em revistas (fls. 165).
Que deter granadas de guerra é proibido, resulta das regras da experiência comum e normal, sabido como é que esse tipo de armamento é de uso das Forças Armadas e não de uso comum ou geral, pois que enquanto com espingardas e pistolas ainda é possível ver pessoas com elas (legalizadas e armas de caça) ninguém anda na rua com granadas, e se o arguido sabia das granadas dos filmes, e se atentarmos que a maior parte dos filmes de uso de granadas são filmes de guerra ou de soldados, facilmente se conclui de acordo com as regras da experiência que o arguido sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida, justificando assim o tê-la escondida debaixo do tapete do carro.
E o uso desta regra da experiência e ilação que dela se extraí está de acordo com o principio da livre apreciação da prova expressamente pressupõe – artº 126º CPP, - e está intimamente ligado ao uso pelo tribunal, da prova indirecta / por presunções, e que o juiz pode e deve usar sempre que necessário á descoberta da verdade, uma vez que são meio de prova não proibido – artº 125º CPP, cf. Ac. STJ 29/1/08, proc. 3014/07-6; 21/10/04 Proc. 3247/04-5 e Ac. TC 195/06 proc. 76/06-2) - e têm por base essas regras da experiência comum e os raciocínios da lógica, afirmando um facto desconhecido a partir dos factos conhecidos, e porque como refere o Ac.STJ de 11/10/07 www.dgsi.pt/jstj proc 07P3240 “ ... é admissível a prova por presunção, o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.” sendo que esse meio de prova procura uma realidade não apreensível directamente, (salvo se assumida pelo arguido), e decorre da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum (cf. M.Cav. Ferreira, Curso Proc. Penal Vol I, 1981, pág. 292), ou resultantes de indícios que “ são circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão. Firme, seguro e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.” Ac. STJ 11/7/07 www.dgsi.pt/jstj Proc. 07P1416., traduzindo-se na aplicação das presunções judiciais, que são “as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”- art. 349.º do CC.- que a lei permite (artº 125º CPP).
Como melhor expende o STJ no seu ac. de 10/1/08 www.dgsi.pt/jstj Proc. nº 07P4198 :
“IV… Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, pág. 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)». E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
V - Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
VI -«A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais» …”, e assim há que afirmar também que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida.

Verifica-se assim que as provas indicadas, não apenas não permitem alterar a matéria de facto provada e impugnada, como a confirmam, pelo que a mesma não pode ser alterada.
Improcede por isso, a impugnação da matéria de facto.
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Questiona o arguido a qualificação criminal dos factos por não se ter provado que a granada era propriedade das Forças Armadas e não atenta contra os interesses militares da defesa nacional

O arguido foi condenado como autor de um crime pp. pelos artºs 82º e 83º nº1 al. d) do CJM relativo ao comércio ilícito de material de guerra.
Ora diz-nos o CJM actual (Lei 100/2003 de 15/11) no seu artº 7º que constitui material de guerra:
“d) Bombas, torpedos, granadas, incluindo as fumígeras e as submarinas, potes de fumo, foguetes, minas, engenhos guiados e bombas incendiárias; ”

Ora tendo em conta que o arguido detinha consigo uma “granada de mão de instrução, de cor preta, que continha as inscrições “………. e na alavanca feita de metal de cor preta, presa com um cordel, constava a inscrição “……….”.” e que “tratar-se de uma granada utilizada para a instrução das Forças Armadas e Forças de Segurança, verifica-se que estamos perante material de guerra em uso nas Forças Armadas, e o seu uso ou detenção é proibido (artºs 2º nº5 al. h), 3º 2 a) e 4º 1 Lei 5/2006 de 23/2 Lei das Armas)

Todavia para a aplicação do CJM não basta estar-se perante material de guerra, pois que nos termos do artº1 do mesmo:
“1-O presente Código aplica-se aos crimes de natureza estritamente militar.
2 - Constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei.”

O conceito ora previsto de “ crime estritamente militar” mais restrito, do que o anteriormente previsto “ crime essencialmente militar”, já não põe o assento tónico no carácter militar do agente (o autor pode ter a condição militar ou civil), mas no bem jurídico protegido (que é o interesse militar do material de guerra para a defesa nacional), pelo que não basta a detenção desse material para o preenchimento do tipo, a não ser que tenha como destino exclusivo fins militares.
Mas mesmo assim não basta que lese os interesses militares, mas que esses interesses sejam os da defesa nacional, daí que seja necessário que exista uma conexão relevante (e não apenas acidental) entre o facto e os interesses militares da defesa nacional;
Os interesses da Defesa Nacional, que tem a ver com os componentes políticos, os objectivos permanentes, e as orientações fundamentais da política de defesa nacional, definidos de acordo com os artºs 4º, 5º e 6º Lei da Defesa Nacional (actualmente Lei 31- A/2009 de 7 de Julho), e “ tem por objectivos garantir … a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaças externas “– artº 273º2 CRP, sendo que as forças armadas estão ao serviço do Povo Português, artº 274º2 CRP, mas incumbe-lhe também “ …satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte”- artº 275º 5 CRP, e citada Lei de Defesa Nacional (artºs 1º a 6º);

Como se refere no Ac. R.P. de 4/2/09 in www.dgssi.pt/jtrp (Des. Maria do Carmo Silva Dias), para que a conduta se integre no crime estritamente militar “é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional”.
Ora cremos que, no caso, essa ligação estruturante existe, pois que:
- o material em causa é material de guerra;
- é usado para instrução pelas Forças Armadas e Forças de segurança Portuguesas;
- a espécie de material (granada de mão de instrução) e
- o seu estado ser perigosa a sua arrecadação e manuseamento (por poder explodir);
E é um material que nunca é utilizado para fins civis de qualquer natureza estando associado a actos de guerra;

E se objecto pode não afectar e não afectará certamente (é só uma granada) os interesses militares do Estado Português em termos de operacionalidade das forças armadas na vertente da sua capacidade militar, já todavia pode colocar em perigo e afectar os interesses militares da defesa nacional e do Estado Português, no seu prestigio, se tal material poder ser usado á revelia das Forças Armadas Portuguesas e por entidades que não sejam elas mesmas.
Veja-se que as Forças Armadas Portuguesas, integram-se em diversos contingentes internacionais, na satisfação de compromissos internacionais do Estado Português, e importa garantir, que o material de guerra das Forças Armadas Portuguesas (e Forças de Segurança) apenas por elas possam ser usadas, de modo a que não se criem situações de conflito, ou lesivos dos interesses militares, quais sejam, o uso por terceiros de armamento português, no conflito em apreço, susceptível de por em causa a intervenção dos militares portugueses e consequentemente o prestigio das forças armadas e por inerência os interesses militares do Estado Português.
Prevenir o não uso por terceiros do material militar é a fonte da proibição do seu comércio e detenção.
Ora no caso se porventura tal objecto fosse usada ou aparecesse deflagrado num conflito por terceiros, certamente não deixariam de ser imputadas às Forças Armadas (ou Forças de Segurança) Portuguesas, assim pondo em causa o seu prestígio e até eventualmente a sua participação.
Cremos por isso que é de considerar que foram colocados em causa os interesses militares de defesa nacional, e em consequência a conduta cai sobre a alçada do CJM e dos seus artºs 82º e 83º nº1 al. b) do CJM, porque foi o arguido punido.
Improcede por isso esta questão.

Não são colocadas outras questões, nem se vislumbram outras que importe conhecer, pelo que improcede o recurso;
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Pelo exposto o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, e em consequência confirma o acórdão recorrido;
Condena o arguido no pagamento da taxa de justiça de 05 Uc´s e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 11/11/2010
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes
Major-General José Carlos Mendonça da Luz