Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0722611
Nº Convencional: JTRP00040258
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: DEMARCAÇÃO
TÍTULO
Nº do Documento: RP200801150722611
Data do Acordão: 01/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 261 - FLS 165.
Área Temática: .
Sumário: I - Na acção de demarcação não se discutem os títulos de propriedade, nem se admite a prova contra eles; a prova admitida é apenas destinada a definir a linha divisória de acordo com os títulos existentes.
II - Como títulos podem ser considerados os títulos de propriedade, a certidão de registo da posse, a planta do prédio; não as inscrições matriciais e descrições prediais.
III - A demarcação não pode ser resolvida também pela posse, que constitui apenas um dos elementos atendíveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B………., separada judicialmente de bens, residente no lugar e freguesia de ………., Santa Maria da Feira, intentou contra C………. e mulher, D………., residentes no mesmo lugar e freguesia, a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, peticionando a condenação dos Réus a:
a) Reconhecerem que a Autora é proprietária do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, com área coberta e logradouro ou terreno a quintal, tal como está definido no artigo 17º da petição inicial;
b) Reconhecerem que a linha divisória, na parte em que aquele prédio confina com o dos Réus, é definida pelo muro de suporte de terras, construído no limite Nascente do logradouro da casa da Autora ao longo do limite Poente do prédio dos Réus, numa extensão aproximada de 18 metros.
Para o efeito alega, em síntese, que:
- Nos autos de inventário para separação de meações que correu por apenso ao processo n.º …/92, pelo .º Juízo Criminal da Comarca de Santa Maria da Feira, foi-lhe adjudicado o seguinte prédio: casa térrea com 4 divisões para habitação, sita no lugar e freguesia de ………., com a área coberta de 60 m2 e logradouro com a área de 780 m2, a confrontar do norte e sul com E………., do nascente com F………. e do poente com a estrada, omisso no registo e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1065º.
- Por sua vez, ao seu marido foi adjudicado um prédio constituído por terreno de cultura com videiras e ramadas, sito no lugar e freguesia de ………. a confrontar do norte com G………., do poente com C………., ora Réu e com a casa de habitação e logradouro adjudicado à Autora, do sul com H………. e do nascente com I………., omisso no registo e inscrito na matriz sob o artigo 4165º;
- A referida partilha foi homologada por sentença;
- Na execução intentada pelo Réu contra o marido da Autora, foi adjudicado àquele o imóvel supra referido.
- O seu prédio confina, pelo lado nascente, numa extensão de 18 metros com o prédio dos Réus, não havendo, porém, marcos ou qualquer divisória a separá-los.

Os Réus contestaram referindo que o Réu marido ficou cego em virtude de um tiro dado pelo marido da Autora, tendo o mesmo sido condenado em pena de prisão e a pagar uma indemnização, que não foi paga voluntariamente. Daí que, o Réu marido tenha instaurado o processo de execução de sentença, por apenso ao qual foi instaurado o inventário para separação de meações. Após a separação de bens, e no âmbito desse processo de execução, foi feita a penhora de dois prédios do marido da Autora que lhe tinham sido adjudicados no processo de separação de meações, sendo um deles, o inscrito na matriz de ………. rústica sob o artigo 4165º, que foi posteriormente arrematado pelo exequente, ora Réu, por proposta em carta fechada. Alegam ainda os Réus que os prédios em questão sempre tiveram na matriz predial as áreas e confrontações aí descritas, embora não se encontrem demarcados.
Os Réus formularam pedido reconvencional contra a Autora, sustentando que o seu prédio confina pelo poente com a rua, com a casa da Autora e mais para sul com a casa de habitação dos Réus. A casa da Autora fica encravada entre a casa dos Réus e o terreno rústico dos mesmos que lhe fica a sul, existindo um muro a separar os prédios e o terreno de Réus/reconvintes. Mais, a casa da Autora confina de norte e nascente com o prédio arrematado pelos Réus, ora reconvintes, onde não existem marcos divisórios. Os Réus/reconvintes referem ainda que a área matricial dos dois referidos prédios, da Autora 264m2 e rústico dos Réus 2000m2, não encontrará efectiva concretização no terreno, uma vez que a área real dos dois prédios rondará os 2000m2. Por isso, deve o espaço em falta ser repartido por ambos os prédios, amputando-os proporcionalmente os metros necessários, e os marcos divisórios devem ser fixados de acordo com o referido no art. 31º do articulado apresentado pelos Réus/reconvintes.

Respondeu a autora, referindo que a demarcação, nos termos do art. 1354º do Código Civil deve ser feita de conformidade com os títulos de cada um, que existem no presente caso. Conclui, pedindo a improcedência do pedido reconvencional.

Elaborado o despacho saneador efectuou-se julgamento, com observância de todas as formalidades legais, conforme consta da respectiva acta.

Foi proferida sentença a julgar a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, determinando-se que a demarcação se faça através de linha que divida o terreno em litígio em partes iguais.

Interposto recurso, o Tribunal da Relação do Porto anulou a decisão da matéria de facto e determinou a ampliação da perícia efectuada nos autos.

Procedeu-se à ampliação da perícia.

Foi designada data para audiência de julgamento com vista a prestação de esclarecimentos por parte do perito, tendo-se respondido à matéria da base instrutória, sem que surgisse qualquer reclamação das partes.

Por fim, foi proferida a sentença que julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedentes por provadas e em consequência, decidiu-se:
- Reconhecer que a Autora é proprietária do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ………. sob o art. 1065º;
- Determinar que a demarcação dos prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ………. sob o art. 1065º e na matriz predial rústica da freguesia de ………. sob o art. 4165º, propriedade respectivamente da Autora e dos Réus, se faça através de um linha que divida a parcela de terreno em litígio em partes iguais, parcela essa que tem a área de (610m2) e que se encontra identificada na planta junta aos autos a fls. 312, sendo atribuída aos Réus a parcela a tracejado vermelho.

Autora e Réus não se conformaram e recorreram.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com efeito devolutivo – v. fls. 383.

Na motivação do seu recurso, a Autora pede que se revogue a sentença e se decida de acordo com o peticionado, formulando as seguintes conclusões:
1. Recorrente e recorridos “colaboraram” directamente na conferência de interessados para separação de meações em que se definiu a composição, nomeadamente área, confrontações e valor do prédio que foi adjudicado à recorrente.
2. Igualmente ambos participaram na diligência que definiu o prédio, com áreas, confrontações e valores do que foi adjudicado ao marido da recorrente.
3. Foi este prédio, com as confrontações, área e valor que o Réu nomeou à penhora, mesmo tendo-se servido duma inscrição matricial que sabe não corresponder à realidade existente no terreno.
4. O Réu sabia, quando apresentou a proposta das diligências feitas, via judicial, no inventário, qual a configuração, área, confrontações e valor do prédio que acabaria por penhorar ao marido da recorrente.
5. A recorrente praticou também sobre o prédio que lhe foi adjudicado, com a composição que consta do arbitramento, os actos de posse conducentes à aquisição originária sobre o prédio como está identificado em A) e, até 04.03.1999, em relação ao prédio referido em H).
6. As inscrições prediais nada provam “servindo apenas para efeitos fiscais, não constituindo título suficiente de acção de demarcação”, o que quer dizer que é irrelevante a área constante da matriz.
7. O Registo Predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.
8. Assim, a demarcação pretendida, verificada, quer a sua necessidade quer os seus pressupostos, terá de ser feita de acordo com os títulos, ou então …
9. … com o recurso aos actos de posse, que até, no caso em apreço, por si, conduziram à aquisição originária da propriedade.

Por seu turno, os Réus concluem o seu recurso do seguinte modo:
1. Para ser efectuada uma demarcação entre imóveis importa definir com clareza qual o título de cada prédio a demarcar e estabelecer a composição, área e confrontações que deve caber a cada prédio.
2. Efectuada essa definição deve o Tribunal indicar concretamente o lugar por onde deve passar a linha divisória.
3. A lei não permite que a demarcação seja fita por forma a que demarcação resulte para um prédio rústico a separação em duas partes componentes que se não tocam entre si e que ficam desligadas uma da outra, criando afinal em vez de um prédio, dois prédios rústicos distintos que nem contíguos ficam.
4. A decisão recorrida viola o disposto no art. 1354º e 1 do art. 376º do CC e desrespeita o caso julgado formado no processo de execução a propósito da descrição e composição dos prédios a demarcar (art. 671º do CPC).

Os Réus apresentaram ainda contra-alegações ao recurso de apelação da Autora.

Foram colhidos os vistos legais.
*

O âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões dos recorrentes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC.
Assim sendo, a questão fulcral colocada nas duas apelações é a de saber se é possível determinar a linha divisória dos dois prédios confinantes.
*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Da 1ª instância vêm provados os seguintes factos:

1. Nos autos de inventário para separação de meações que correu por apenso ao processo comum colectivo nº …/92, pelo .º Juízo Criminal desta Comarca, foi adjudicado à Autora a verba aí indicada sob o n.º 6 e descrita da seguinte forma: casa térrea com 4 divisões para habitação, sita na freguesia de ………., com a área coberta de 60 m2 e logradouro, com a área de 780 m2, a confrontar do Norte e Sul com E………., do Nascente com F………. e do Poente com a estrada, omisso no registo e inscrita na matriz predial sob o artigo 1065º (documento de fls. 8 a 14) (al. A).

2. Na acta da conferência de interessados do processo de inventário referido em 1., realizada em 27.11.95, foi dito pelo mandatário dos requeridos (incluindo aqui a Autora), em representação destes o seguinte: “dado que a verba nº 7 da descrição de bens, donde consta a área de 2.000 m2, a mesma não está correcta dado que foi desanexada uma parcela, onde o exequente (ora Réu), construiu a casa de habitação” (al. B).

3. Tendo sido igualmente dito no momento descrito em 2., e pela pessoa aí referida, com referência à verba n.º 7, que: “(…) tal verba não confronta a Poente com estrada mas unicamente com C………. e com casa de habitação pertença do casal executado.” (al. C).

4. Mais acrescentou que: “a área constante da relação de bens não é a real não podendo precisar neste momento a sua dimensão. Assim, deverá proceder-se à rectificação da verba 7” (al. D).

5. Dada a palavra ao mandatário do credor (aqui Réu) este disse que: “Aceita a alteração ora requerida e confrontações e, igualmente aceita que a área constante da descrição possa não ser rigorosa.” (al. E).

6. Em seguida, foi proferido pelo Mmo Juiz o seguinte despacho: “Face à concordância dos interessados sobre a imprecisão supra transcrita defere-se o requerido, ordenando-se a rectificação da relação e descrição respectiva, não constando do artigo respectivo a área do prédio que ulteriormente será precisada no decurso dos autos.” (al. F).

7. A partilha foi homologada por sentença que transitou em julgado (al. G).

8. Em consequência da partilha no processo de separação de meações referido em 1. foi adjudicado ao marido da Autora, J………., a verba n.º 7, prédio descrito, após as rectificações em seguimento ao referido em 2. a 6., do seguinte modo: “Terreno de cultura, com videiras e ramadas, sito no lugar e freguesia de ………., Feira, a confrontar do Norte com G………., do Nascente com I………., do Poente com C………. (aqui Réu), e com casa de habitação e logradouro pertença do executado e do Sul com H………., omisso no registo e inscrito na matriz sob o art. 4165º, com o valor patrimonial de Esc.: 2.940$00” (al. H).

9. Após o facto descrito em 6. foi realizado no processo referido em 1. uma avaliação por três peritos identificados a fls. 13 vº, tendo estes apresentado em conformidade com esse mesmo documento um relatório, onde além de mais consta o seguinte: Verba nº 6: Casa térrea com 4 divisões, para habitação, na freguesia de ………. construção muito antiga com a área de 60 m2 - 3.000.000$00. Terreno da casa com a área de 780 m2 x 5.000$00 m2 3.900.000$00. Verba nº 7: Terreno de cultura de videiras e ramada, sito no lugar e freguesia de ………. com a área de 624 m2 a 200$00 - 124.000$00 (al. H).

10. No processo de execução de sentença nº 466-A/92 que correu seus termos no presente Tribunal, no 2º Juízo Criminal, consta um termo de penhora em imóveis (doc. de fls. 30 e seg.) (al. I).

11. No referido termo de penhora consta a descrição do prédio seguinte: “SEGUNDO: Terreno de cultivo com 25 videiras em ramada e 5 oliveiras, sito em ………. – ………., com a área de 2000 m2 a confrontar do Norte com G………., do Nascente com I………., do Sul com H………. e do Poente com a estrada e habitação, inscrito na matriz de ………., rústica sob o artigo 4165 e com o valor tributável de 2.940$00.” (al. J).

12. Contra o auto de penhora referido em 11. e no processo de execução de sentença referido, já depois de proferida sentença no inventário de separação de meações, a Autora apresentou o requerimento constante de fls. 33 (al. K).

13. No documento referido em 12. a Autora pediu que se diminuísse a área do prédio descrito em 11. para 625 m2 e na confinação a Poente ficasse a constar que era com C………. e com a casa de habitação da Autora (al. L).

14. Em resposta ao referido em 12. o tribunal proferiu o seguinte despacho: “Tendo em conta os argumentos apresentados pela requerente e compulsados os autos de separação de meações, não se colhem elementos que levem à alteração do auto de penhora no que concerne à área do prédio penhorado.” (doc. de fls. 34) (al. M).

15. No anúncio de arrematação no processo de execução referenciado, o prédio foi descrito do seguinte modo: “Terreno de cultivo como 25 videiras em ramada e cinco oliveiras, sito em ………. – ………., com área de 2000 m2 a confinar do Norte com G………., do Nascente com I………., do Sul com H………. e do Poente com a estrada e habitação, inscrito na matriz de ………., rústica sob o artigo 4165 e com o valor tributável de 2.940$00” (al. N).

16. Por propostas em carta fechada, no dia 4 de Março de 1999, veio o prédio referido em 15. a ser arrematado pelo exequente, que por ele ofereceu o valor de 5.000.000$00 (al. O).

17. Na execução intentada pelo ora Réu contra o marido da Autora, que correu os seus termos por apenso aos autos de processo comum nº 466/92 referido acima em 1., apresentou aquele proposta mais elevada para a aquisição do bem penhorado e, consequentemente, foi-lhe adjudicado o imóvel referido em 16., que corresponde à verba n.º 7 já referida (al. P).

18. Em consequência da arrematação anteriormente referida, o aqui Réu marido, pagou o preço devido acrescidos das obrigações fiscais, tendo-lhe sido entregue auto de arrematação (al. Q).

19. O Réu marido requereu o registo de aquisição do prédio (al. R).

20. Os Réus tinham conhecimento dos factos referidos em 3., 4., 5. e 6., bem como do teor do anúncio referido em 15. (art. 2º).

21. O prédio da Autora confina do lado Nascente com o prédio dos Réus (art. 3º e 4º).

22. Não há marcos a separar o prédio da Autora do prédio dos Réus (art. 5º e 22º).

23. O prédio referido em 1., tal como aí está identificado, encontra-se a um nível mais elevado, em cerca de 1,80/2,00 metros, relativamente ao prédio tal como está identificado em 8. (art. 6º e 7º).

24. As terras do desnível referido em 23. são suportadas por um muro formado por pedras sobrepostas, numa extensão de 18 metros (art. 7º).

25. A Autora, por si e seus antepossuidores, há mais de trinta anos, sempre cultivou o terreno referido em 1., juntamente com o terreno referido em 8., arando as terras e estrumando-as, colhendo os frutos e fazendo-os seus e pagando as contribuições, o que efectuou de forma ininterrupta até aos dias de hoje relativamente ao prédio referido em 1. e até 04.03.99 relativamente ao prédio referido em 8. (art. 8º e 9º).

26. À vista de toda a gente (art. 10º).

27. A Autora praticou os actos referidos em 8º, 9º, 10º e 11º sem qualquer oposição até 04.03.1999, data a partir da qual os Réus sustentam que o prédio que arremataram (Ref. em N) tem um área de 2.000 m2 (art. 11º e 12º).

28. A Autora praticou os actos referidos em 8º, 9º, 10º, 11º e 12º na convicção de que tais prédios lhe pertenciam, a si e ao seu marido até 02.02.1996, data em que foi proferida a sentença referida em 7., convicção que hoje se mantém relativamente ao prédio referido em 1., tal como aí está identificado (art. 13º).

29. Do artigo matricial urbano n.º 1065º consta a área coberta com 64 m2 e o logradouro com 200 m2 que, tal como está identificado no artigo matricial, apresenta uma área total real de 218 m2 e que o prédio referido em 1. tal como aí está identificado apresenta a área total real de 828 m2 (art. 14º e 15º).

30. O prédio tal como está identificado em 15. apresenta a área total real de 1.295 m2 e o prédio, tal como está identificado em 8., apresenta uma área total real de 685 m2 (art. 16º).

31. A casa dos Réus fica a Sul da casa referida em 1. e entre ambas existe um muro que continua após a casa referida em 1. numa extensão de 13 metros para Nascente (art. 17º, 18º, 19º e 24º).

32. A Poente do muro referido em 31. fica uma rua (art. 20º).

33. O prédio referido em 1., tal como aí está identificado, confronta do Nascente (e em parte) com o prédio dos Réus e que tal como está identificado no artigo matricial urbano nº 1065 confronta do Norte e Nascente com o prédio dos Réus (art. 21º).

34. A casa referida em 1. confronta a Poente com a rua (art. 23º).

O DIREITO

Trataremos das duas apelações em conjunto, uma vez que a questão essencial suscitada pela Autora e pelos Réus é a mesma.

A demarcação é o acto de determinação dos confins de um prédio.
Pressupõe uma incerteza, objectiva ou subjectiva, quanto aos limites materiais daquele, e pressupõe, igualmente, a contiguidade dos prédios – Lorenzo González, “Limitações de Vizinhança”, pág. 163.
A incerteza não tem, obviamente de dizer respeito necessariamente a todas as linhas divisórias de um prédio. Pode, de facto, dizer respeito, unicamente, à linha divisória com um certo prédio contíguo – v. Cunha Gonçalves, “Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português”, Vol. XII, 1937, pág. 122. É o que se passa com os prédios em questão, pois inexistem marcos a separar o prédio da Autora do prédio dos Réus, sendo certo que aquele confina do lado Nascente com este – v. pontos 21. e 22.
A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova – art. 1354º, n.º 1, do CC.
Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais – art. 1354º, n.º 2, do CC.
Na acção de demarcação não se discutem os títulos de propriedade, nem se admite prova contra eles; a prova admitida é apenas a destinada a definir a linha divisória de acordo com os títulos existentes.
Quais, então, os títulos a ter em consideração?
Desde logo, os títulos de propriedade, nos quais vêm referidas, muitas vezes, as confrontações dos prédios e também as suas áreas. Será também o caso da certidão do registo de posse. Um outro título, deveras importante, é a planta do prédio. Segundo Cunha Gonçalves, ob. cit. pág. 128, “a planta é o retrato do terreno, retrato que se faz por processos matemáticos, com aparelhos de precisão, como o teodolito, e até por meio de fotogrametria aérea. A planta é, portanto, um trabalho técnico; tem uma veracidade natural”. É claro que os níveis de precisão científica na feitura de plantas prediais foram substancialmente melhorados desde então até aos nossos dias, o que confere ainda mais acerto às palavras daquele ilustre autor.
E o que dizer das inscrições matriciais e das descrições prediais?
Serão, umas e outras, títulos para os efeitos do disposto no artigo 1354º?
A resposta tem de ser negativa.
As primeiras relevam apenas no plano fiscal. De facto, é sabido que a finalidade das inscrições matriciais é essencialmente de ordem fiscal, não lhes sendo reconhecidas virtualidades para definir o conteúdo ou a extensão do direito de propriedade sobre qualquer prédio. Baseiam-se em participações dos interessados nas respectivas Repartições de Finanças, não sujeitas, em regra, ao controlo destas entidades – cfr., entre muitos outros, o Ac. Relação de Coimbra de 09.03.1999, CJ, Ano XXIV, Tomo II, pág. 14, e Ac. STJ de 04.12.2003, processo n.º 03B2574, em www.dgsi.pt
As descrições prediais constantes do registo, por seu lado, também não têm o condão de definir, em definitivo, as confrontações ou as áreas dos prédios a que respeitam, até porque estes elementos podem ser completados, rectificados, restringidos, ampliados ou inutilizados, por meio de averbamentos. Assim, com base no registo predial não se pode afirmar que determinado prédio tem esta ou aquela constituição, só por tal constar da respectiva descrição – v. Ac. Relação de Coimbra, de 05.06.1984, CJ, Ano IX, tomo 3, pág. 60 e Ac. Relação do Porto, de 07.11.1995, processo n.º 9520439, em www.dgsi.pt.
Não se divisa, pois, qualquer interesse em discutir o que consta ou não consta das inscrições matriciais e das descrições prediais dos imóveis em questão, mais a mais quando se sabe que as partes não concordam com as referências que constam desses documentos, nomeadamente no que respeita às áreas e às confrontações dos prédios.
Por outro lado, os títulos de propriedade e as várias plantas juntas também não nos dão referências seguras e incontroversas sobre a correcta definição da linha que os há-de dividir. A este assunto das plantas, e da sua insuficiência, havemos de voltar mais adiante.

A questão da demarcação dos prédios também não pode ser resolvida pela posse.
Segundo ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 202, “há, quanto à prova, uma diferença sensível entre o que se passa na acção de demarcação e na acção de reivindicação. Nesta, o reivindicante tem de fazer a prova da propriedade … ao passo que naquela o autor não precisa de provar a posse pelo tempo necessário para a usucapião (basta provar que é possuidor) …” .
Porém, acrescentam aqueles autores, “A simples posse não havendo tempo necessário para a usucapião (caso em que o problema que se suscita é outro), não deve ter o relevo bastante para se sobrepor a qualquer outra prova (...). A posse pode ser arbitrária ou abusiva. Ela será assim um elemento que, tal como quaisquer outros elementos, ajuda a fixar a convicção do tribunal”.
Da matéria assente resulta que a Autora e o seu marido, antes do trânsito da sentença homologatória da partilha, proferida nos autos de separação de meações, eram proprietários dos prédios inscritos na matriz predial sob os artigos 1065º e 4165º, identificados respectivamente, nos pontos 1. e 8.
Tal sentença adjudicou o prédio referido em 1. à Autora e o prédio descrito em 8. a seu marido.
Posteriormente, o prédio adjudicado ao marido da Autora foi penhorado e arrematado pelo Réu marido nos autos de execução de sentença que este moveu contra aquele.
Até à venda ocorrida naqueles autos de execução, e desde há mais de trinta anos, que a Autora, por si e seus antepossuidores, cultivava o terreno (logradouro) inscrito no prédio do art. 1065º (prédio descrito em 1.) juntamente com o terreno inscrito no art. 4165º (prédio descrito em 8.), arando as terras e estrumando-as, colhendo os frutos e fazendo-os seus e pagando as contribuições. Tais actos foram praticados de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, até aos dias de hoje relativamente ao prédio inscrito no art. 1065º, e até 04.03.99 (data em que ocorreu a arrematação judicial) relativamente ao prédio inscrito no art. 4165º. Agia a autora na convicção de que tais prédios lhe pertenciam, a si e ao seu marido até 02.02.96, data em que foi homologada por sentença a partilha, convicção que hoje se mantém relativamente ao prédio inscrito no art. 1065º, tal como está identificado em 1.
Convém, portanto, não esquecer que o prédio dos Réus identificado em 15., pertenceu à Autora e a seu marido até à partilha realizada no processo de separação de meações referido em 1.
Não se estranha, por isso, que até à data da adjudicação desse prédio ao seu marido (02.02.1996), a Autora tenha exercido actos de posse sobre o mesmo, na convicção de que o mesmo lhe pertencia – cfr. ponto 28.
Mesmo depois de 02.02.1996 a Autora continuou a exercer acto de posse sobre o prédio adjudicado, por partilha, a seu marido, como parece resultar dos pontos 25. a 27. da matéria de facto provada, embora se nos afigure que a posse da Autora, nessas circunstâncias, era já abusiva, na medida em que não respeitava o direito de propriedade de seu marido sobre o prédio que a este, e só a este, havia sido adjudicado no processo de separação de meações.
A questão da indefinição da linha divisória entre os dois prédios só ganhou importância quando o Réu adquiriu, por venda judicial, o prédio que outrora pertencera ao casal da Autora e mais recentemente a seu marido. De facto, até aí não tinha ainda ocorrido, ao que parece, a tradição material do prédio adjudicado ao marido da Autora, continuando esta a possuí-lo. A partir da data dessa venda (04.03.1999), os Réus passaram a sustentar que o prédio arrematado (descrito no ponto 8.) tinha a área de 2.000 m2, o que motivou discórdia com a Autora em relação aos limites do mesmo. Ora, como a acção deu entrada em 13.05.1999, ou seja, apenas dois meses após a dita arrematação, não existe possibilidade de confrontar a posse de cada um dos confinantes para fins de definição da linha divisória – art. 1354º do CC.

A sentença recorrida seguiu, então, o caminho de a demarcação entre os dois prédios se fazer através da divisão igualitária do terreno em disputa.
Todavia, tal caminho só seria de seguir quando não se lograsse atingir, por outro meio de prova, a correcta definição da linha divisória – art. 1354º, n.º 1. A perícia, desde que efectuada de forma rigorosa e precisa, constitui um meio de prova inestimável neste tipo de acções, podendo conduzir a essa definição de estremas.
É certo que este processo já conta com uma anulação do primeiro julgamento, motivada por insuficiência de factos carreados pela perícia oficiosamente ordenada a fls. 97 – v. o acórdão desta Relação de fls. 183 a 193. Essa anulação teve em vista a ampliação do objecto dessa perícia, “… por forma a que, havendo necessidade de cumprimento do disposto na parte final do n.º 2 do art. 1354º do Cód. Civil, não só se poder dar cumprimento a tal preceito, como também emitir pronúncia sobre os pedidos formulados por A. e RR. …”.
Ou seja, através da ampliação da perícia queria almejar-se a inequívoca e integral definição da linha divisória, fosse esta a proposta pela Autora ou pelos Réus, ou, se tal não se afigurasse de todo possível, a divisão igualitária da área em discussão.
Infelizmente, devolvidos os autos à 1ª instância, não se cuidou, aí, de especificar a ampliação do objecto da perícia para os fins pretendidos, deixando-se ao Senhor perito a lacónica determinação de proceder de acordo com o solicitado nos requerimentos de fls. 202 e 203.
É claro que o resultado foi o que se esperava. As insuficiências detectadas no acórdão da Relação mantiveram-se, ao ponto de a nova magistrada encarregue do processo ter tentado preencher as deficiências da perícia com o despacho de fls. 305, no qual incumbiu o Senhor perito de elaborar três “croquis”: um, com o projecto de divisão proposto pela Autora; outro, com o projecto de divisão proposto pelos Réus; e outro ainda, com a delimitação da área em litígio e divisão da mesma em partes iguais por cada um dos prédios.
Mesmo assim, não se conseguiu evitar todo um conjunto de insuficiências da perícia e de se constatar alguma dificuldade na correcta leitura dos mapas ou “croquis” apresentados pelo Senhor perito, o que se reflectiu, desde o primeiro momento, na deficiência e obscuridade de algumas das respostas dadas a determinados quesitos da base instrutória.

Assim:
a) Desde logo, e como bem advertem os Réus a fls. 325, não se percebe por que razão é nos mapas consta a indicação de um prédio urbano destes, com discriminação da respectiva área, localizado a sul do prédio da Autora descrito em 1. Tal menção só serve para confundir, uma vez que tal prédio urbano não está aqui em discussão.
b) Por outro lado, a linha divisória proposta pela Autora é definida, segundo ela, por um muro de suporte de terras, construído no limite nascente do logradouro da sua casa, ao longo do limite poente do prédio dos Réus, numa extensão aproximada de 18 metros. Pois bem, nos mapas apresentados não existe qualquer referência a esse muro nem à sua localização e extensão, sendo que, como consta dos pontos 23. e 24. da matéria de facto, ele efectivamente existe. Se esse muro se encontra erigido sobre a linha traçada a vermelho na planta de fls. 310, é fundamental que tal seja expressamente referido.
c) Para cabal identificação do prédio arrematado pelos Réus, era importante saber qual a utilização agrícola dada ao mesmo – v. 11. Com efeito, nos primeiros mapas apresentados (fls. 210 e 211), consta como “terreno de cultura com videiras e ramada …” um espaço sombreado a verde. No entanto, nos mapas posteriores essa designação desapareceu.
d) Deveria o Senhor perito indicar, caso tal se afigure possível, a área real do logradouro da casa da Autora.
e) Seria também útil esclarecer quais as construções e áreas das edificações erigidas no prédio identificado em 1. e se aí existem outras construções para além da casa de habitação. Em caso afirmativo, quais as respectivas dimensões. Esta questão afigura-se pertinente dada a alusão a uma garagem no último § do requerimento do Senhor perito de fls. 332.
f) Deveria ainda o Senhor perito informar se pode, no terreno, ser identificado cada um dos prédios correspondentes às verbas nºs 6 e 7 (cfr. pontos 1. e 8.), com definição das suas reais áreas e limites.
g) Por fim, é da maior importância que se faça referência à existência (ou não) de um desnível entre os referidos prédios.

Os contributos que a nova perícia trouxer permitirão, eventualmente, colmatar as deficiências da decisão da matéria de facto, designadamente no que toca às respostas dadas aos quesitos 6º e 7º, 14º, 15º, 16º e 21º, que deram origem aos pontos 23., 29., 30. e 33.
Essas respostas não correspondem ao que se perguntava em cada um dos respectivos quesitos, o que tem como resultado que a narração factual se apresente elaborada, em relação a esses pontos concretos, de forma pouco clara e confusa.

Sem os elementos referidos nas antecedentes alíneas b) a g) e a sua subsequente conjugação com os outros elementos disponíveis nos autos, parece-nos precipitado concluir – tal como se fez na sentença recorrida – que a área em litígio é de 610 m2 e que a mesma deve dividir-se em duas partes iguais, por qualquer uma das formas propostas nas plantas de fls. 312 ou 313.
Cremos, de facto, ser ainda possível fixar a linha divisória entre os dois prédios confinantes, desde que a perícia expurgue a circunstância referida na alínea a) e contemple os elementos aludidos em b) a g), supra.
Como acima dissemos, os mapas topográficos, devidamente legendados, realizados no âmbito de perícia rigorosa e pormenorizada, constituem elementos de prova insubstituíveis na definição dos limites de prédios não demarcados.
*

III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, na procedência das apelações, decide-se anular a decisão da 1ª instância, ordenando-se a repetição do julgamento, com prévia perícia para dilucidação das questões enunciadas supra em b) a g), em ordem a suprir as deficiências da decisão da matéria de facto acima assinaladas, e sem prejuízo da parte final do n.º 4 do art. 712º do CPC.
*

Custas das apelações a final.
*

PORTO, 15.01.2008
Henrique Luís de Brito Araújo
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo