Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0452207
Nº Convencional: JTRP00036872
Relator: PINTO FERREIRA
Descritores: ARRESTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP200405170452207
Data do Acordão: 05/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o credor requerente de arresto alegado que era possuidor de três cheques que lhes foram devolvidos pela requerida, por falta de provisão, todos de elevado valor; que a requerida nunca contactou a requerente para a regularização desses cheques, e que foi interpelada, várias vezes, para os pagar e nunca o fez, e ainda que teme que o recheio dos estabelecimentos da requerida, créditos e contas bancárias se venham a dissipar rapidamente e mais concretamente, que um estabelecimento da requerida irá encerrar e abrir com nova gerência, tem de se considerar indiciado o justo receio de perda da garantia patrimonial.
II - O receio tanto pode existir em relação a quem tenha muitos ou poucos bens para dar como garantia.
III - Perante o alegado em I) não se justifica o indeferimento liminar por manifesta improcedência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

A B..............., Lda, com sede na Rua .............., .............., ..............., instaurou contra C.............., Lda, com sede na Rua ..........., .............., procedimento cautelar de arresto, pedindo, consequentemente, o arresto de determinados bens da requerida, que identifica, para tanto alegando:
- No exercício da sua actividade de venda e distribuição de produtos alimentares vendeu e entregou à requerente diversa mercadoria do seu comércio, no valor total de € 33.685,52, que não pagou.
- A requerida explora diversos estabelecimentos de restauração com a designação de D................. .
- A requerente é detentora de um crédito daquele valor, a seu favor, contra a requerida derivado ainda de três cheques nos valores de 1.140,91, 1.146,11 e 825,93€, todos derivados da compra por esta a si de diversos produtos do comércio, nomeadamente produtos de charcutaria, mercadorias que foram entregues à requerida, mas que a esta não pagou.
- Justifica o fundado receio, tanto pela devolução dos três cheques da requerida acima aludida, por falta de provisão, nunca tendo a requerida contactado a requerente com vista à regularização dos cheques: Soube, através de um cliente, que a requerida se preparava para fechar a actividade, tendo a requerente confirmado que o estabelecimento sito na R. ............, .., no ............, se encontrava em obras e que iria abrir brevemente com nova gerência; que apesar de várias interpelações para o efeito, não se encontra ainda pago o crédito alegado pela requerente.
Apreciando o requerimento para arresto, concluiu o tribunal a quo pela não existência do justo receio de perda de garantia patrimonial do crédito da requerente pelo que considerou ser este procedimento cautelar manifestamente improcedente, indeferindo-o liminarmente.
Inconformado recorre a requerente.
O recurso foi recebido como agravo.
Apresentaram-se alegações.
Sustentou-se o despacho agravado.
Colheram-se os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II – Fundamentos do recurso.

Constituem as balizas dos recursos as conclusões formuladas aquando das alegações de recurso – artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC –
No caso presente foram apresentadas as seguintes conclusões:
1 – Ficou, pelo menos minimamente indiciados, o fundado receio de que a requerida fazia dissipar o seu património, mediante, inclusive, do fim da exploração dos seus estabelecimentos comerciais.
2 – O Sr. Juiz a quo não observou o inscrito nos artigos 406º e 407º do CPC.
Deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida e prosseguir os autos.
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III – Os Factos e o Direito

Elaborou o tribunal a sua decisão argumentando e concluindo pela não existência do justo receio de perda de garantia patrimonial do crédito da requerente.
Diga-se, desde já, que no caso presente se tratou de um indeferimento liminar, não sendo ouvidas as testemunhas arroladas pela requerente.
Convirá, para melhor se entender o sentido da decisão a proferir neste recurso, que se lance mão dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais sobre o que se deve entender por “justo receio” para efeitos de recebimento ou não de uma providência cautelar de arresto e de a indeferir liminarmente ou ordenar o seu prosseguimento para exame das provas produzidas – art. 408º n.º 1 do CPC -, diferente seria se analisado tal conceito de “justo receio” após a produção de prova.
Nos termos dos artigos 406º e 234-A do CPC, deve o tribunal averiguar da idoneidade dos factos alegados e se estes preenchem os pressupostos legais exigidos.
A providência cautelar de arresto exige, para ser decretada, a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) Probabilidade séria da existência do direito de crédito invocado pelo requerente;
b) Justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito.

Quanto ao direito ameaçado, cujo receio de lesão se tem de mostrar suficientemente fundado, não se exige para a concessão da sua tutela, um juízo de certeza, mas antes um “justificado receio", "bastará que o requerente mostre ser fundado (compreensível ou justificado) o receio da sua lesão” – Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 2ª ed., pág. 25 -, isto é, a demonstração do perigo de insatisfação desse crédito, bastando uma averiguação e juízo perfunctório dos factos alegados – Ac. RP, CJ, vol. IV, pág. 216 -.
O que se procura evitar com o decretamento do arresto é que o facto receado - perda da garantia patrimonial do crédito -, possa ocorrer caso se não decrete a medida e se evite essa perda, incidente em bens do próprio devedor, o que se consegue com a apreensão desses mesmos bens.
Daí que este instituto do arresto se encontre integrado num procedimento cautelar, cuja alegação e prova serão necessariamente sumários e cujos requisitos serão apenas indiciadores, apontando quer para uma “provável existência do crédito" e “justificado receio" o que se reconduz a uma "aparência do direito" e a um "periculum in mora” – Ac. RP, BMJ, 369, 601 -.
Acresce, no entanto, que este critério de aferição "não deve ser conduzido à certeza inequívoca quanto à existência da situação de perigo, invisível ou dificilmente obtida em processos com as características e objectivos dos procedimentos cautelares, bastando, por isso, que se mostre razoavelmente fundada esse pressuposto” – Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, Procedimento cautelar Comum, pág. 88 -.
Este mesmo autor e imediatamente a seguir, refere “As circunstância em que o juiz deve ter por justificado o receio de lesões futuras deve ser apreciadas objectivamente pelo juiz que, para o efeito, terá em conta o interesse do requerente que promove a medida e o do requerido, que com ela é afectada, as condições económicas de um e de outro, a conduta anterior e a sua projecção nos comportamentos posteriores”.
Também e agora em IV volume relativo aos Procedimentos Cautelares Especificados, a fls. 176 escreve que “o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor, antes deve assentar em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras da experiência, aconselham uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva”.
Ainda sobre a questão do justo receio escreve Antunes Varela, C Civil Anotado, vol. I, pág. 637, em anotação ao artigo 619º que “Para que haja justo receio de perda da garantia patrimonial basta que, com a expectativa de alienação de determinados bens ou a sua transferência para o estrangeiro, o devedor torne consideravelmente difícil a realização coactiva do crédito”.
De igual modo e sobre o justo receio considera Lebre de Freitas, em CPC Anotado, vol. 2º, pág. 119 “que qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio é concretamente invocável pelo credor, constituindo o periculum in mora”, dando ainda alguns exemplos típicos como o receio de insolvência, ocultação ou venda de bens, etc., concluindo ainda que genericamente que existe também desde que se esteja perante uma actuação do devedor “que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a perder a garantia patrimonial do seu crédito”
E é sabido e resulta da lei que será na acção principal que poderá e deverá ser feita a averiguação exaustiva dos factos alegados, com todo o ritualismo processual existente sempre mais completo e exigente, e ser proferida decisão definitiva, esta já com base num melhor e mais profundo conhecimento desses mesmos factos.
Ao requerente do arresto compete deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justifica o justo receio – art. 407º n.º1 -, devendo juntar todas as provas – art. 302º e 303º, todos do CPC –
A requerente alegou que era possuidora de três cheques que lhes foram devolvidos por falta de provisão, todos de elevado valor, que a requerida nunca contactou a requerente para a regularização desses cheques, interpelou-a várias vezes para os pagar e nunca o fez, tem receio de que o recheio dos estabelecimentos da requerida, créditos, contas bancárias se venham a dissipar rapidamente e mais concretamente, que o estabelecimento da requerida sito na Rua ............. iria encerrar e abrir com nova gerência.
E pede que seja arrestado o direito ao arrendamento, trespasse ou cessão da posição contratual desse estabelecimento e doutros que seja possuidora, para além de bens móveis e de consumo e saldos de contas bancárias.
Ora, o receio de perda de garantia patrimonial de um crédito tanto pode ocorrer em relação a quem tenha muitos ou poucos bens, mas será porventura maior esse receio quando estamos perante e nos surgem apenas e só meros direitos (arrendamentos, trespasses, cessões de posição contratual, etc.), ou ainda apenas bens móveis ou dinheiro, entre os bens do devedor, bens todos eles de fácil e rápida alienação e ocultação, mas quando analisada a situação sobre o ponto de vista meramente monetário (dinheiro), então a conclusão será ainda mais evidente.
Não se diga pois que não há nos autos elementos indiciadores que justifiquem o decretamento da providência cautelar de arresto, bastando atentar nos factos enunciados e, pese embora a circunstância de a requerida ser eventualmente possuidora de outros bens, não faz dissipar, só por si e sem mais, o perigo e receio de perda de garantia patrimonial, pois não será a maior parte das vezes pelo facto de se terem muitos bens que deixa de existir receio de dissipação e fuga de bens com prejuízo para os credores, principalmente até quando se trata de meros direitos e nos encontramos perante eventuais devedores cuja actividade principal consiste mesmo na de prestação de serviços de restauração.
O receio em análise nos presentes autos é o da perda de garantia patrimonial de um credor sobre os bens do devedor e ele tanto pode existir em relação a quem tenha muitos ou poucos bens para dar como garantia.
Assim, atendendo a todos os ensinamentos acima expostos, ao sentido que se deve retirar da letra e do espírito da lei – art. 9º do C. Civil - e ao sentir e sentido de um homem normal em situação de credor, consideramos que os requisitos mínimos, os indiciadores, exigidos pelo artigo 406º do C.P.C., concretamente do “justo receio” para que seja recebido o arresto estão verificados, não sendo, consequentemente, um caso e uma situação típica de indeferimento liminar, como o entendeu o tribunal recorrido, matéria alegada, a entender-se como “indiciadora” do “justo receio”, que a provar-se, poderá levar ao decretamento da providência requerida.
É que o indeferimento liminar da petição, posição seguida pelo tribunal recorrido, é possível nas situações previstas no art. 234º-A n.º 1 do CPC, ou seja, quando haja manifesta falta de personalidade judiciária, manifesta incompetência absoluta do tribunal, manifesta ineptidão da petição inicial e inidoneidade absoluta da forma do processo – Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil , I, pág. 243 –.
Mas se considerar que a matéria alegada não é “indiciadora” do “justo receio” exigido pelo art. 406º n.º 1 do CPC, por entender que os factos invocados são pouco consistentes ou desenvolvidos, então, em obediência aos princípios da economia processual, do inquisitório e da cooperação dos artigos 136º, 137º, 265º e 266º do CPC, impunha-se um convite ao aperfeiçoamento da petição, por forma a não ver o requerente gorada a sua expectativa.
Assim, o despacho deverá ser revogado e substituído por outro em que ou convide o requerente ao aperfeiçoamento da petição inicial, indicando mais desenvolvidamente os factos tendentes à demonstração do requisito do “justo receio”, ou dê prosseguimento ao processo, com inquirição das testemunhas, nos termos do art. 408º n.º 1 do CPC.
Indeferimento liminar da petição é que não será curial nem razoável.
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IV – Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em se dar provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro nos termos acima expostos.
Custas pela agravante – art. 446º n.º 1 do CPC -.
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Porto, 17 de Maio de 2004
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome