Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0630645
Nº Convencional: JTRP00038970
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: EXECUÇÃO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RP200603160630645
Data do Acordão: 03/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: No caso de inexistência de bens, a execução deve ser considerada extinta por inutilidade superveniente da lide.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………., SA instaurou execução com forma de processo ordinário contra C………., LDª e D………. .

Percorrida a tramitação normal, veio o exequente requerer a remessa dos autos à conta, com custas a cargo dos executados.
Como fundamento, alegou que não conhece quaisquer outros bens aos executados que possa nomear à penhora.
Sobre aquele requerimento recaiu o despacho de fls. 153, que declarou extinta a execução por impossibilidade superveniente da lide, com custas pelos executados.

Inconformado, o exequente interpôs recurso de agravo, formulando as seguintes

Conclusões
1ª – O recorrente, por requerimento de fls. 162 solicitou que os autos fossem remetidos à conta, com custas a cargo dos executados, por não lhes conhecer outros bens que possa nomear à penhora.
2ª – Com base em tal requerimento o Senhor Juiz “a quo” declarou extinta a presente execução por impossibilidade superveniente da lide, nos termos dos artºs 919, nº 1, 446º, nº 1 e 287º, al. e) do CPC.
3ª - O recorrente, com aquele seu requerimento, solicitou que os fossem remetidos à conta e, após a elaboração da conta, pretendia que os mesmos aguardassem o decurso do prazo da interrupção da instância e posteriormente o decurso do prazo de deserção da instância, nos termos dos artºs 285º e 291º do CPC, com o objectivo de, no decurso daqueles prazos, poder eventualmente nomear à penhora outros bens dos executados susceptíveis de penhora, se entretanto deles tivesse conhecimento.
4ª – O recorrente não requereu, nem pretendia, que a execução fosse julgada extinta por inutilidade superveniente da lide.
5ª – O despacho recorrido é nulo, nos termos dos artºs 661º, nº 1 e 668º, nº 1, al. e) do CPC “ex vi” do estatuído no artº 666º, nº 3 desse diploma legal, uma vez que condenou em objecto diverso do pedido nos presentes autos pelo recorrente.
6ª – O recorrente requereu tão só a remessa dos autos à conta, por não conhecer aos executados outros bens que possa nomear à penhora, e o despacho recorrido declarou extinta a presente execução por impossibilidade superveniente da lide.
7ª – O despacho recorrido violou, assim, os artºs 919º, nº 1, 446º, nº 1 e 287º, al. e), 661º, nº 1 e 668º, nº 1, al. e) do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Mº Juiz sustentou o despacho.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

No presente recurso, as questões a decidir são as seguintes:
1ª – Se o despacho recorrido é nulo por ter condenado em objecto diverso do pedido.
2ª - Se a execução deve ser declarada extinta por impossibilidade superveniente da lide com custas a cargo do executado.

1 – Nulidade do despacho
As causas de nulidade da sentença são as que estão taxativamente enumeradas no nº 1 do artº 668º do CPC - Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem - que é aplicável aos despachos por força do disposto no artº 666º, nº 3.
Nos termos daquele normativo, é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
“Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia) … São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada” [Abílio Neto, “Código de Processo Civil Anotado”, 18ª ed., pág. 884.].
O disposto na al. e) do nº 1 do artº 668º está em relação directa com o preceituado no nº 1 do artº 661º: condenando em quantia superior ou em objecto diverso, o juiz excede o limite imposto pela lei ao seu poder de condenar, com infracção do princípio do dispositivo que assegura à parte circunscrever o thema decidendum [Abílio Neto, “Breves Notas ao Código de Processo Civil”, 1ª ed., pág. 195].
A proibição de condenação em objecto diverso significa que o juiz não pode modificar a qualidade do pedido [Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 68].

No caso em apreço, o exequente requereu que os autos fossem remetidos à conta, com custas a cargo dos executados, dizendo que não conhece àqueles quaisquer outros bens que possa nomear à penhora.
Refere o exequente que, com aquele requerimento, pretendia que os autos ficassem a aguardar o decurso dos prazos de interrupção e de deserção da instância previstos nos artºs 285º e 291º.

Dispõe o artº 285º que a instância se interrompe quando o processo estiver parado por mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento.
A interrupção da instância durante dois anos leva à deserção, independentemente de qualquer decisão judicial (artº 291º, nº 1).
Por seu turno, o artº 51º, nº 2, al. b) do CCJ estabelece que são contados os processos parados por mais de cinco meses por facto imputável às partes.
Refere Salvador da Costa [“Código das Custas Judiciais Anotado e Comentado”, 7ª ed., pág. 301] que é omissão imputável às partes a que lhe é censurável do ponto de vista ético-jurídico, e importa distinguir entre a paragem do processo por causa que o tribunal possa e deva, nos termos do artº 265º, nº 1, remover, e aquela que deve ser removida por impulso das partes, porque só neste último caso, sendo de concluir pela referida omissão de impulso processual, é que deverá funcionar a sanção de remessa do processo à conta.

Resulta do requerimento do exequente que este entende que, no caso de não conseguir localizar bens penhoráveis ao executado, existe inércia processual imputável ao executado e, portanto, os autos devem ser remetidos à conta nos termos do citado normativo do CCJ, mas as custas devem ser suportadas pelo executado, ficando depois a aguardar o decurso dos prazos de interrupção e deserção da instância.
Para o exequente, aquela situação é o corolário lógico da impossibilidade de localizar bens penhoráveis aos executados.
Porém, o Mº Juiz a quo extraiu daquela situação um corolário lógico diferente: demonstrada nos autos a alegada impossibilidade de localizar bens penhoráveis aos executados, entendeu que tal conduzia à extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, e assim o declarou.
Ou seja, interpretou e aplicou o direito de uma forma diversa daquela que o exequente pretendia, mas não modificou qualitativamente o pedido.
O despacho recorrido não enferma assim do vício previsto no artº 668º, nº 1, al. e).

Se houve erro de julgamento, é o que iremos ver de seguida.

2 – Extinção da execução por impossibilidade superveniente da lide
Os artºs 916º a 919º (na redacção anterior à entrada em vigor do DL 38/03 de 08.03, aqui aplicável) indicam as principais causas extintivas da instância executiva.
As causas indicadas no artº 916º correspondem aos vários modos de extinção das obrigações exequendas (pagamento, quitação, perdão, renúncia, etc.).
O artº 918º trata a desistência do exequente.
O artº 919º, nº 1 faz referência a outras causas de extinção da instância executiva.
Entre essas outras causas distinguem-se aquelas que são próprias do processo de execução, tais como a anulação, revogação ou substituição da sentença de modo incompatível com a execução, se esta for provisória (artº 47º, nº 2), a procedência de oposição que tiver sido deduzida (artºs 812º e segs.) e a rejeição oficiosa da acusação (artº 820º). E ainda as previstas no artº 287º, desde que não sejam incompatíveis com a natureza e os fins da acção executiva.
As causas de extinção da instância previstas no artº 287º são: a) O julgamento; b) O compromisso arbitral; c) A deserção; d) A desistência, confissão ou transacção; e) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Destas últimas, são indubitavelmente aplicáveis ao processo de execução a deserção e a desistência previstas nas als. c) e d) daquele normativo, respectivamente (esta última também especificamente prevista para o processo executivo no artº 918º, como acima se disse).
As previstas nas als. a) e b) e a confissão prevista na al. d) não têm cabimento no processo executivo: não há julgamento, o compromisso arbitral é inadmissível e a confissão é inoperante.
Quanto à transacção também prevista na al. d) tem-se igualmente defendido que a mesma é inadmissível. Lopes Cardoso [“Manual da Acção Executiva”, 3ª ed., pág. 672] entende que o CPC não consente que a execução se extinga por acordo entre o exequente e o executado, conforme permitia o artº 616º da Novíssima Reforma Judiciária.
Lebre de Freitas [“A Acção Executiva à Luz do Código Revisto”, 2ª ed., pág. 293] defende que a transacção é admissível como forma de extinção da execução por ter um alcance paralelo ao da desistência do pedido.
Este paralelismo entre a desistência do pedido e a transacção suscita-nos algumas reservas, porque, enquanto a desistência do pedido se limita a extinguir a execução, a transacção extingue-a mas também define direitos e obrigações entre as partes e cria um novo título executivo que é a respectiva sentença homologatória. Parece-nos que assim se extravasa do fim da acção executiva que é apenas a efectiva reparação de um direito que já se encontra definido (cfr. artº 4º, nº 3).
Perfilhamos, por isso, a opinião de Lopes Cardoso no sentido da inadmissibilidade da transacção como forma de extinção da execução.

Deixando por ora de lado a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, temos, pois, como formas extinção da execução as seguintes:
1ª - extinção da obrigação exequenda;
2ª - desistência;
3ª - procedência de oposição total;
4ª - rejeição oficiosa da execução;
5ª - anulação, revogação ou substituição da sentença, de modo incompatível com a execução, se esta for provisória;
6ª - deserção.
A extinção da obrigação exequenda pode ser extrajudicial, por qualquer uma das formas de extinção das obrigações previstas no direito substantivo e pode ser extrajudicial através do pagamento coercivo (artºs 872º e 919º), da remição da execução (artºs 916º e 917º) e da consignação em depósito (artº 1032º).

Quanto à impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide prevista na al. e) do artº 287º, tem sido igualmente defendido que aquela forma de extinção não se concebe em relação à execução.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide pressupõe a ocorrência de um facto, posterior à entrada em juízo da acção, que extingue os direitos e obrigações cuja existência se discute na acção.
Assim, numa acção declarativa, se a obrigação é cumprida, a lide torna-se inútil porque já não há que definir direitos nem obrigações.
Ora, na acção executiva não se discutem direitos nem obrigações: como já acima se disse, o que se pretende é a reparação efectiva de um direito que já se encontra definido (artº 4º, nº 3).
Por isso, se a obrigação exequenda foi cumprida, a lide não se torna inútil porque a execução alcançou o seu fim. E se a obrigação exequenda não foi cumprida, então a lide não perdeu utilidade porque a execução ainda não atingiu o seu objectivo.
É esta a posição de Lopes Cardoso [Obra citada, pág. 673].

Ocorrem, no entanto, algumas situações em que é admissível a possibilidade de a execução se extinguir por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Uma dessas situações é precisamente aquela em o exequente vê frustradas as suas reiteradas diligências com vista à penhora de bens do executado.
Através da execução pretende-se obter a cobrança coerciva do crédito do exequente, e esta passa, em primeiro lugar, pela apreensão de bens do executado através da penhora; a inexistência de bens torna inviável aquela apreensão e simultaneamente torna inviável a continuação da lide.
Neste caso, a declaração de extinção da instância impõe-se como decorrência de uma situação que passou a impossibilitar a continuação da lide.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide nos termos do artº 287º, al. e) tem assim cabimento como causa de extinção da execução, integrando a “outra causa de extinção da instância executiva” prevista na parte final do artº 919, nº 1.
Naquele sentido se têm pronunciado vários autores [Cfr. Remédio Marques, “Curso de Processo Executivo”, pág. 381, Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, pág. 633 e Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 611] e tem sido decidido nos arestos mais recentes, designadamente do STJ e desta Relação [Entre outros, nos Acs. do STJ de 06.06.04, www.dgsi.pt e desta Relação de 15.07.04, 30.05.05, 02.06.05 e 27.06.05, base citada, nºs conv. 37134, 38129, 38146 e 38237, respectivamente, e de 15.11.04, CJ-04-V-173. Também assim já decidimos no Ac. de 16.02.06, processo nº 365/06-3].

Estipula o artº 447º que quando a instância se extinguir por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, as custas ficam a cargo do autor, salvo se a impossibilidade ou inutilidade resultar de facto imputável ao réu, que neste caso as pagará.
Como se lê no citado Ac. de 27.06.05, foi o executado que deu causa à execução na medida em que não procedeu ao pagamento da quantia exequenda, sendo-lhe igualmente imputável a impossibilidade superveniente da lide por inexistência de bens penhoráveis, já que, no mínimo, não angariou os meios necessários à satisfação do crédito exequendo, honrando a dívida assumida, como lhe era manifestamente exigível.
E, como se argumenta no mesmo aresto, a entender-se de outro modo, cairíamos numa situação de manifesta desproporcionalidade, já que, confrontado com a impossibilidade de obter a cobrança do crédito exequendo, o credor arcaria injustificadamente com os custos processuais resultantes da conduta de devedores relapsos, não sendo também exigível que o credor, portador de título executivo bastante, tenha de desenvolver uma actividade particular no sentido de obter uma informação sobre a existência de património do devedor, quando é certo que só o poder público poderá dispor de meios coercivos bastantes e adequados a obter todas as informações pertinentes à averiguação da existência de tal património.

O caso em apreço é precisamente um caso de inexistência de bens penhoráveis dos executados após o exequente ter feito as diligências possíveis para os encontrar, pelo que se configura uma situação de impossibilidade superveniente da lide nos termos acima expostos.

Improcedem assim as conclusões do agravante, sendo de confirmar o despacho recorrido.
*

III.
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e, em consequência:
- Confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelo agravante.
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Porto, 16 de Março de 2006
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Ana Paula Fonseca Lobo
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha