Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0842007
Nº Convencional: JTRP00041394
Relator: MARIA ELISA MARQUES
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP200805280842007
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 316 - FLS 282.
Área Temática: .
Sumário: Para o juiz validar o despacho do Ministério Público que determina, na fase de inquérito, a aplicação do segredo de justiça ao processo, não basta que nesse despacho se diga que, estando em causa um crime previsto no art. 152º do Código Penal, punível com pena de prisão até 5 anos, «a publicidade seria lesiva para os interesses da investigação e do ofendido».
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2007/08-4
4ª Secção (2ª Secção Criminal)

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I-Relatório:

Os presentes autos – NUIPC ./08.8 GBSTS –, foram apresentados ao Mmo JIC na sequência do despacho do Ministério Público do seguinte teor:
“Atenta a determinação efectuada na Directiva de 09/01/2008, definida por sua Excelência o conselheiro Procurador-Geral da República (remetida com o Ofício-Circular n.º 5/2008 de 15/01/2008) no sentido de que “Sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 1.º, alíneas j) a m) do Código de Processo Penal (…) o Ministério Público determinará, no início do Inquérito, a sujeição deste a segredo de justiça…”, nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, dado que o crime em investigação nos presentes autos – cfr. o art.º 152.º do Código Penal – é punível com pena de prisão até 5 anos, tratando-se, pois, atenta ainda a natureza dos bens jurídicos protegidos pela incriminação, da “criminalidade violenta” a que alude o art.º 1.º, j), do Código de Processo Penal, a publicidade destes autos seria, em concreto, lesiva para os interesses da investigação e do ofendido, determino a aplicação a estes do segredo de justiça – cfr. artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Para os efeitos previstos na parte final desse número, apresente os autos ao Meritíssimo JIC no prazo aí previsto.”

O Mmo juiz proferiu então o seguinte despacho:
“Despacho proferido a fls. 19 pelo Ministério Público de sujeição dos presentes autos a segredo de justiça:
Embora se compreenda a tomada de posição por parte do Ministério Público, atento o respectivo dever de ofício, decorrente da invocada circular da Procuradoria Geral da República, a verdade é que não se vislumbra qualquer motivação factual concreta para tal despacho, sendo certo que por referência ao interesse da vítima, existem outros meios de reacção e de protecção aos mesmos que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido, não se vislumbrando - até porque não fundamentada de facto – qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos.
Em conformidade com o exposto e nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não julgo válido o despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 07.”

2. Inconformado com este despacho, o MP interpôs o presente recurso, motivando-o com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Tratando-se de um inquérito por eventual crime de maus-tratos, em que o Ministério Público, em obediência a Directiva do Procurador-Geral da República, determinou a aplicação do segredo de justiça, não pode nem deve o Juiz de Instrução Criminal, sem mais, não validar essa determinação;
2. O Juiz de Instrução Criminal não pode ignorar as indicações sobre politica criminal constantes das Leis Lei n.º 17/2006 de 23 de Maio e as funções que nesse âmbito atribui ao Ministério Público e ao Procurador-Geral da República e os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009 (Lei n.º 51/2007), entre os quais se situa a prioridade e eficácia na investigação dos crimes de maus tratos e da promoção da protecção das vítimas especialmente frágeis;
3. A Directiva invocada pelo Ministério Público no despacho de aplicação do segredo de justiça, apresenta-se também, face às dificuldades criadas pela Lei n.º 48/2007, como um instrumento de concretização dos objectivos da politica criminal, estabelecidos para este biénio e não como um acto voluntarista, infundamentado e desproporcional, que a decisão recorrida pudesse ignorar, apesar do papel que desempenhara no falado despacho não validado;
4. A Directiva teve em conta as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/207 em fase de investigação, que justificam, pelas implicações na forma como o Ministério Público deverá dirigir o inquérito e exercer a acção penal, a adopção de orientações adequadas a garantir uma actuação uniforme desta magistratura, tendo em conta o seu carácter unitário e hierarquizado, designadamente quanto ao segredo de justiça quando visam, como no caso, crimes cuja investigação eficaz é prioritária, não só pelo perigo de reincidência que significam, como pelas lesões das vítimas vulneráveis, cuja protecção foi tida igualmente como prioritária;
5. O Juiz de Instrução Criminal, ao validar ou não o segredo de justiça cuja aplicação foi determinada pelo Ministério Público, não pode deixar de ter presente que se trata exactamente de "validar" e não de "determinar" (o que já foi feito) o que postula atitudes e competências diferentes;
6. Ao Ministério Público compete, apreciando os parâmetros legais e tendo presente que está num domínio e numa fase de investigação cuja condução lhe pertence, determinar se a aplicação do segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção da vítima ou do arguido, e não é excessivamente onerosa;
7. Ao juiz de Instrução não compete, ao validar essa determinação, substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação;
8. A decisão recorrida extravasa esse controlo, substituindo-se à apreciação do Ministério Público, no seu próprio campo, sem tomar em consideração a Directiva invocada por este e os objectivos da política criminal;
9. A responsabilidade indeclinável do Juiz de Instrução tem a ver com o equilíbrio e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e o direitos de defesa do arguido, por outro lado; e não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só;
10. Nessa ponderação entre os interesses da investigação encabeçados pelo Ministério Público e os direitos de defesa do arguido, deve ter em conta se está perante situações reais de perigo de lesão grave destes direitos, como acontece no caso de aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, ou se não o sendo, os direitos de defesa do arguido têm um peso menor, por não comprometidos por espera por fases ulteriores do processo, essas sim já dominadas pelo princípio do contraditório;
11. A decisão recorrida mostra-se insuficientemente fundamentada, pois que, mesmo na sua óptica, não esclarece quais são os outros meios de reacção e de protecção aos interesses da vítima que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido; em que é que a possibilidade de defesa por parte do arguido é significativamente contundida pelo segredo de justiça determinado pelo Ministério Público;
12. E, quando sustenta: "não se vislumbrando - até porque não fundamentada de facto - qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos", viola os conhecimentos de experiência comum que indicam que, neste tipo de situações em que frequentemente a vítima reside com o agente e é dele dependente, aquela corre graves riscos quanto este se apercebe que foi apresentada queixa e decorre um inquérito;
13. Com esse conhecimento o agente, para além do risco de repetição dos eventos, está em condições de fazer pressão sobre a vitima e muitas vezes sobre as testemunhas, podem facilmente perturbar a eficácia do inquérito, além de perturbar a vítima, normalmente muito frágil neste tipo de crimes;
14. Por todas estas razões deveria o M. o Juiz a quo ter validado a determinação do Ministério Público de aplicar ao presente inquérito o segredo de justiça;
15. Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que valide a determinação de sujeição do presente processo a segredo de justiça.

Admitido o recurso, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo (fls.30), o Mmº Juiz sustentou o despacho proferido (fls.32-40).
4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto, em douto parecer, aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância, com o consequente provimento do recurso, acrescentando, além do mais, que “No caso, em que se investiga a prática de um crime de maus tratos a cônjuge pelo marido na pessoa da esposa, na presença do um filho menor de ambos, para nós é óbvio, que a sujeição do processo, desde o inicio, a segredo de justiça, protege melhor os interesses da investigação, da eficácia desta, da vítima e do próprio arguido, (…). A não sujeição do processo segredo de justiça compromete a eficácia da investigação e não garante eficazmente a protecção da vitima, pois a vítima, a principal fonte de provas contra o agressor, não deixará de sentir receio das consequências do acto de depor, em conformidade com a verdade, sobre os actos de agressão de que é vítima, até porque aquele fica em posição e com meios de repetir as agressões físicas e verbais e as ameaças. Por sua vez, a sujeição do processo a segredo de justiça, não coarcta ou diminui qualquer direito de defesa do suspeito e pelo contrário garante-lhe a manutenção da honra e do bom nome durante a investigação, pois não será estigmatizado socialmente como mau marido e agressor da mulher. Todas as considerações em sentido contrário do expendido antes padecem de falta de senso comum e revelam desatenção á realidade conhecida de todos.”
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
6. É o objecto do presente recurso a decisão do Mm.º Juíz “a quo”, que não validou a sujeição dos autos a segredo de justiça.
7. Dispõe o art.º 86.º, n.º 1, do C.P.P. vigente - diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem - que “O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.”
Esta redacção alterou por completo o paradigma anterior que consagrava, em fase de inquérito, como regra o segredo de justiça.
O regime regra é, pois, actualmente, o da publicidade do inquérito. Este sistema baseia-se na ideia de que assim se salvaguardam melhor os direitos dos cidadãos, sobretudo o direito de defesa do arguido, pelo controle que podem exercer sobre a investigação evitando nomeadamente eventuais abusos.
A lei admite restrições a este princípio. O regime da publicidade cessa nomeadamente quando for determinada pelo MP a aplicação ao processo – por entender que “os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem” – durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, e tal decisão seja validada pelo juiz de instrução. – nº 3 do citado normativo legal.
Ou seja, não obstante a regra da publicidade o legislador admite a existência de processo(s) em que sem o segredo de justiça não são acautelados os interesses da investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vitimas. Mas como é óbvio, as restrições ao principio da publicidade devem ser a excepção e não a regra.
É na verdade sabido que existem certos tipos de processos[1] em que a regra da publicidade põe em causa a aquisição e conservação da prova, outros haverá que põem em causa os direitos do sujeitos processuais a justificar, por isso, a aplicação do segredo de justiça.
Porém, a justificação para essa determinação – sujeição a segredo de justiça - fica-se por fórmulas genéricas de “interesses da investigação” ou “os direitos dos sujeitos processuais”, o que, convenhamos, está longe de fornecer critérios concretos.
A busca de um critério(s) razoável para aplicação da norma fica assim entregue aos aplicadores do direito, sendo que a grande dificuldade está sempre na ponderação do equilíbrio de interesses presentes no momento em que é feita essa apreciação.
Poderá essa apreciação ser feita em abstracto, tendo por referência, por exemplo, o tipo ou natureza do crime em investigação?
Não cremos. Se essa fosse a intenção da lei teria facilitado a tarefa ao aplicador fornecendo por ex. um catálogo de crimes directa ou indirectamente (nomeadamente remetendo, no que ao caso interessa, para as prioridades de politica criminal) que justificassem a determinação do segredo de justiça em certas categorias de processos.
Não se quer com isto significar, note-se, que a natureza do processo em investigação, por si mesmo, não seja já um factor de primordial importância, o que se pretende dizer é que, para além disso, tem de ser considerado a especificidade do caso concreto.
Repare-se, ademais, que o texto legal inclui-se a expressão “ao processo”, o que só pode querer significar, como parece evidente, o processo em concreto, na sua especificidade.
De resto, é o próprio recorrente quem reconhece, a dado passo da sua alegação, que ao juiz de instrução compete, ao validar essa determinação, verificar se existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação, o que só pode apontar para uma verificação casuística e caso a caso.

A este propósito, transcreve-se o teor da conclusão 7) com que estamos inteiramente de acordo: “Ao juiz de Instrução não compete, ao validar essa determinação, substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação”. (sublinhado nosso).

Pensamos, aliás, que a aceitar-se uma tese da qual decorresse que a invocação de uma directiva do PGR, onde constam certas categorias de crimes que deverão ser sujeitos ab inicio a segredo de justiça - mesmo tendo presentes as razões que fundamentaram a sua emissão - e sem mais, isto é, sem uma justificação ainda que sucinta do caso em concreto, se impunha a obrigatoriedade de validação pelo JIC da determinação do processo a segredo de justiça, seria admitir, por um lado que ao juiz de instrução só restava um atitude passiva, aceitar sem mais o fundamento invocado - quando a sua intervenção se justifica precisamente por se tratar de excepção á regra -, e por outro, seria, elaborar uma interpretação correctiva - em que a “regra” em tais casos deveria ser a do segredo - que não compete ao julgador.
Revertendo agora para o caso em análise, e como decorre flui do que já ficou dito que temos por certo que não basta invocar, para a validação pelo juiz da determinação pelo MP do segredo de justiça, a existência de directiva do PGR no sentido de que estando em causa “investigação relativa aos crimes previstos no art. 1º alíneas j) a m) do Código de Processo Pena (…). O Ministério Público determinará, no início do inquérito a sujeição deste a segredo de justiça”, seguida da constatação de que, in casu, se investiga crime de maus tratos punível com pena de prisão até 5 anos, tratando-se, atenta a natureza dos bens jurídicos protegidos pela incriminação, a “criminalidade violenta” a que alude o art. 1º, j) do Código de Processo Penal, seja, de considerar, sem mais, sem uma análise minimamente fundamentada pelo MP do caso em concreto, a publicidade lesiva para os interesses da investigação e do ofendido. Só perante essa fundamentação, ainda que sucinta, repete-se, mas concreta, é que o juiz pode fazer a ponderação que lhe é pedida, validando ou não a determinação de sujeição do processo a segredo de justiça.
Como argumenta o Mmo juiz no seu despacho de sustentação, e com o que se concorda, “aderir ao entendimento preconizado pelo Ministério Público significa que sempre que se esteja perante aquele tipo de crimes, então, será determinado sempre o segredo de justiça; ou seja, em abstracto estabelece-se a regra do segredo de justiça sempre que o objecto dos autos seja um crime de catálogo elencado pelo Ministério Público, independentemente de, em concreto, haver necessidade e adequação para tal estatuição; será caso a caso, numa análise casuística que se ponderará e determinará a necessidade de sujeição deste ou daquele a segredo de justiça”.
Do mesmo modo que não pode deixar de se concordar com o Mmo juiz quando afirma que “não se vislumbra qualquer motivação factual concreta para tal despacho.”.
Na verdade, repete-se, o Ministério Público quedou-se pela invocação da directiva e por considerações de natureza genérica relacionadas com a natureza dos bens jurídicos protegidos pela incriminação (art. 152 do Código Penal), sem a mínima referencia factual que, em concreto, substancie a eventual lesão “para os interesses da investigação e do ofendido”, o que inviabiliza, por falta de fundamentação mínima, em concreto, que o JIC valide tal determinação.
Em suma, improcedem as conclusões da motivação, não nos merecendo a decisão recorrida reparo ou censura.
* * *

III - DECISÃO:

Nestes termos, e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.

Porto, 28 de Maio de 2008
Maria Elisa da Silva Marques Matos Silva
José Joaquim Aniceto Piedade (voto vencido)
Arlindo Manuel Teixeira Pinto

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[1] Na verdade, como escreve Frederico Lacerda Costa Pinto “Jornadas de Direito Processual Penal”, pag. 66 e ss “Não há investigação criminal bem sucedida, em especial na criminalidade organizada, complexa ou sofisticada, sem uma envolvente mínima de segredo e não pode haver uma acusação seriamente sustentada se, antes da mesma ser deduzida, a investigação de apoio tiver sido confrontada com manipulação ou destruição das provas, adulteração dos factos e ocultação de eventuais testemunhas”.


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Proc. nº 2007/08-4
Declaração de voto

Não subscrevo a decisão proferida, pelas razões seguintes, que correspondem ao projecto de decisão que propus a votação:
Num Inquérito, em que se investiga a prática de um crime de violência doméstica entre cônjuges, imputado ao marido, na presença de um filho menor, pelo MºPº foi determinada a sua sujeição a segredo de Justiça.
O Juiz de Instrução Criminal não julgou válido o Despacho do MºPº por não estar fundamentado de facto e não vislumbrar “qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos”.
Recorreu o MºPº pedindo a revogação do Despacho, e a sua substituição por outro que valide a determinação de sujeição do Inquérito a segredo de Justiça.
Defende que lhe compete, na fase de Inquérito, como entidade encarregue de o dirigir, determinar se a aplicação do segredo de Justiça é necessária à investigação, à protecção da vítima ou do arguido, e que ao Juiz de Instrução está vedado substituir-se-lhe nesse juízo, incumbindo-lhe, “como Juiz das liberdades”, verificar apenas se tal decisão se mostra “excessivamente gravosa” e desproporcionada, do ponto de vista dos direitos de defesa do arguido.
Acrescenta que na decisão recorrida não surge esclarecida onde, ou em que medida, a “possibilidade de defesa por parte do arguido é significativamente contundida pelo segredo de Justiça determinado pelo Ministério Público”.
A posição assumida pelo recorrente é a mais conforme ao Direito, recentemente, constituído, por via da revisão do Código de Processo Penal (Lei nº 48/2007, de 29/08).
No art. 86º alterou-se a regra da sujeição do processo, na fase de Inquérito e de Instrução, a segredo de Justiça, passando aquela a ser a da publicidade.
Porém, continuou a atribuir-se ao MºPº a competência para decidir a atribuição de carácter secreto à fase de Inquérito (o que não poderia deixar de ser, sob pena de grave e inconciliável contradição com todas as restantes normas que se regem pela ideia estruturante de que ao MºPº cabe a direcção do Inquérito).
É o que se alcança, inequivocamente, da redacção do art. 86º, nº 3 do CPP:
“Sempre que o MºPº entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de Inquérito, do segredo de Justiça”.
Determinar significa ordenar, fixar, decidir.
Poderá (e deverá) o MºPº fazê-lo sempre que “os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem”, expressão que aglutina a tríplice ordem de razões (concorrentes ou alternantes, conforme os casos) que sempre se invocou – a nível Doutrinal e Jurisprudencial – para a existência de segredo de Justiça:
- salvaguarda do êxito da investigação criminal em curso, evitando-se tornar público todo o trabalho de procura e recolha das provas (no que se inclui o conhecimento pelo próprio arguido, pois, como observa Souto Moura, Comunicação Social e Segredo de Justiça Hoje, in Estudos De Direito da Comunicação, p. 77: “é realista pensar-se que, ao suspeito ou arguido que tenha sido autor de um crime, não interessa, em regra, a descoberta da verdade. Interessar-lhe-á, sim, o maior benefício pessoal possível, o que pode passar pela destruição de provas ou por dificultar o acesso às mesmas. A Justiça Penal exigirá portanto a criação de condições para que a investigação seja eficaz”);
- interesse das vítimas no sigilo (por exemplo, estando em causa crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual), ou do próprio denunciado, suspeito ou arguido (a quem pode interessar que certos factos que lhe imputam ou em que se encontre mesmo envolvido, não seja do conhecimento público, porque podem não vir a provar-se – cfr. Souto Moura, obra citada);
- interesse de Ordem Pública e Colectiva no funcionamento da Justiça Penal (autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal), de forma serena e independente, preservada de pressões, especulações ou intromissões (nomeadamente de origem mediática e/ou da opinião pública prevalecente).
A decisão fica “sujeita a validação pelo Juiz de Instrução no prazo máximo de 72 horas” – art. 86º, nº 3, parte final.
Esta intervenção do Juiz tem de ser interpretada em consonância com o sentido de todas as suas outras restantes intervenções na fase processual de Inquérito, circunscrita à prática, ou à autorização da prática, de determinados actos que contendam com Direitos Fundamentais da Cidadania, exemplificativamente enumerados no art. 268º do CPP (Actos a praticar pelo Juiz), e no art. 269º (aqueles que o Juiz deverá ordenar ou autorizar).
Validar é verificar se o acto é formalmente conforme às disposições legais que lhe são aplicáveis, ou seja, se a decisão foi tomada pela autoridade judicial competente (e não, por exemplo, um órgão de polícia criminal), pela forma adequada (Despacho fundamentado) e se a mesma se não mostra excessivamente gravosa ou desproporcionada, do ponto de vista de cerceamento dos direitos de defesa do arguido.
Regida por igual teleologia se mostra a regra oposta, enunciada no nº 2 do art. 86º do CPP, segundo a qual o Juiz de Instrução intervém, determinando a sujeição do Inquérito a segredo de Justiça, caso o MºPº a não tenha decidido e o arguido, o assistente ou o ofendido lho tenham solicitado, se entender que “a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos processuais” (ou, a contrario, que a sujeição a segredo de Justiça se torne necessária para proteger o direito do arguido, do assistente ou do ofendido em que os factos sob investigação não sejam do conhecimento público).
Por essa mesma lógica se rege a regra do nº 5 do mesmo artigo 86º: o Juiz intervém a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, para decidir se o segredo de Justiça deve ser levantado, caso o mesmo se mostre desnecessário, ou excessivamente gravoso para os direitos daqueles.
No caso, a decisão do MºPº estava fundamentada - ainda que sumariamente - na natureza do crime sob investigação (integrada no conceito processual de “Criminalidade violenta”) e em que a publicidade dos autos seria, “em concreto, lesiva para os interesses da investigação e do ofendido”.
Ou seja, mencionava-se o interesse na salvaguarda do êxito da investigação e o interesse da vítima em ser guardado sigilo.
A necessidade de fundamentação de um Despacho desta natureza, tem de ser entendida na sua justa medida, exigindo-se apenas que da mesma resultem, com clareza, os interesses que se convocam para fundamentar a aplicação do segredo de Justiça (não se pode exigir que na fundamentação de Despacho a comunicar aos sujeitos processuais, se indiquem os factos concretos cuja divulgação poderia prejudicar a investigação).
Mostra-se, pois, errada a decisão de não validar a determinação de sujeição do Inquérito a segredo de Justiça, por falta de fundamentação.
Por outro lado, ao mesmo tempo que se invoca a falta de fundamentação para não se validar a decisão, não se concretiza a segunda das razões pelas quais se profere tal decisão: não se vislumbrar “qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos”; ou seja, a decisão recorrida padece, nesse ponto, do vício que atribui àquela que pretende fiscalizar.
Acontecendo que, tal como decorre do exposto, não é ao Juiz de Instrução que compete aferir acerca do interesse na sujeição do Inquérito a segredo de Justiça para salvaguardar o êxito da investigação criminal, mas apenas ponderar se esse interesse invocado pela entidade encarregue de dirigir o Inquérito não comprime ou cerceia, de forma desproporcionalmente gravosa, os direitos de defesa do arguido (ou, acrescenta-se, os interesses da vítima). E, a esse respeito, também nenhuma fundamentação surge no Despacho recorrido.
É indispensável lembrar-se, igualmente, que o carácter secreto do Processo Penal funciona, principalmente, quanto a terceiros, pois ao arguido assistem os direitos amplos de intervenção elencados no art. 61º, nº 1 do CPP.
Pelo exposto, votei o provimento do recurso, e a consequente revogação do Despacho recorrido e a sua substituição por outro que valide a determinação do MºPº de sujeição do Inquérito a segredo de Justiça.

Porto, 28/05/2008
José Joaquim Aniceto Piedade