Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0753072
Nº Convencional: JTRP00040430
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
NOTIFICAÇÃO
CITAÇÃO
Nº do Documento: RP200706180753072
Data do Acordão: 06/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 304 - FLS 45.
Área Temática: .
Sumário: I - A cessão de créditos para ser válida perante o devedor tem de lhe ser notificada ou por este aceite.
II - O credor-cessionário para poder propor a acção contra o devedor terá de previamente de o notificar (judicial ou extrajudicialmente), não se podendo atribuir tal valor à citação nesta acção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

1- Nos juízos Cíveis da Comarca do Porto, a Autora B………. (Porto) ……., Lda., com sede em Rua ………., n° ../.., Porto intentou a presente acção declarativa com forma de processo sumário contra C………., residente na rua ………., …, .° esq., ……….., Matosinhos; D………., residente na Rua ………., .., ………., Maia; E………., residente na Rua ………., .., Maia; F………., residente na ………., ..-., .. esq., ………., Matosinhos e “G………., Lda.”, representada em Portugal pelo co-réu F………., alegando resumidamente:
É titular de um crédito perante os réus, o qual lhe foi cedido por “B1………., S. A.”, crédito esse que tem por base a falta de pagamento do preço no âmbito de contrato de compra e venda celebrado entre a cedente e “H………., S. A.”, em momento anterior à celebração da escritura de constituição desta sociedade, relativamente à qual os réus assumem a qualidade de sócios e, por isso, responsáveis pelo pagamento da dívida, solidariamente com a referida sociedade, em conformidade com o disposto nos artigos 36°, n° 2, do CSComerciais e 997°, no 1, do CCivil.
Conclui pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de € 7.912,35, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

2 – Contestaram os réus C……….., D………. e E………., tendo estes dois últimos, para além do mais, invocado o facto de a autora apenas ter comunicado a alegada cessão do crédito em causa à sociedade “H……….., S.A.”, e não aos respectivos sócios individualmente, afirmando ainda que nunca aceitaram tal crédito e recusam expressamente a alegada cessão do mesmo.
Concluem pela improcedência da acção.

3 – A Autora apresentou réplica mantendo as posições já assumidas na p.i. concluindo de igual modo.

4 – O processo prosseguiu termos com a elaboração de despacho saneador-sentença, (fls. 190 e ss), que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os RR do pedido.

4– Apelou a Autora, nos termos de fls. 213 e ss, formulando as seguintes conclusões:
1ª- Ocorrida a cessão de créditos, opera imediatamente a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, com todas as faculdades que lhe sejam inerentes, adquirindo o cessionário, por mero efeito do contrato, o poder de exigir a prestação no seu nome e no próprio interesse.
2ª- A validade e eficácia da cessão de créditos não está sujeita ao consentimento do devedor, estando apenas condicionada a produção dos seus efeitos quanto ao devedor, e só quanto a este, não a terceiros, à mera notificação, que no caso sub juditio se aceitou ter sido efectuada pela A. à H………., SA
3ª- A celebração pela H………., SA de contratos de compra e venda, antes da escritura de constituição, cuja falta de pagamento constitui causa de pedir da presente acção, significa ter aquela sociedade iniciado a sua actividade, ainda antes de regularmente constituída, sendo por conseguinte aplicáveis às relações estabelecidas entre ela e terceiros, as disposições sobre sociedades civis, como determina o art° 36-2 CSC, que não sendo aplicado nos presentes autos, como deveria, foi violado por omissão.
4ª- Pelas dívidas contraídas pela referida H………., SA, responde o património posto em comum pelos sócios com vista à prossecução da actividade social e, pessoal e solidariamente, os sócios nos termos do art. 997-1 CC.
5ª- Aquela responsabilidade dos sócios estabelecida no art° 997-1 CC, embora pessoal e solidária não deixa de ser subsidiária, em última análise por ser facultada aos sócios o benefício de excussão prévia nos termos do nº 2 da mesma disposição legal.
6ª- A responsabilidade dos sócios imposta pelo art. 997-1 CC, tem a natureza jurídica de GARANTIA PESSOAL PRESTADA POR TERCEIRO, sendo subsidiária relativamente à responsabilidade do património da sociedade irregular.
7ª- Desconsidera-se na Douta Sentença recorrida a alegação e comprovação pela A. de previamente à presente acção ter instaurado acção contra a H………., SA, julgada procedente por sentença transitada em julgado que, dada à execução, nada permitiu cobrar por não terem sido detectados bens penhoráveis, apurando-se, pelo contrário, ter aquela sociedade encerrado a actividade ausentando-se para parte incerta.
8ª- Em face do disposto no art. 582-1 CC, a transmissão para o cessionário das garantias. designadamente a prestada por terceiros — réus na presente acção — é automática, não estando dependente de qualquer notificação aos garantes.
9ª- A Douta Sentença recorrida, interpretando indevidamente o art. 583-1 e 342, ambos do CC, imputou à ora apelante um ónus de alegação e prova que não lhe competia, violando por conseguintes estas disposições legais.
10ª- A Douta Sentença recorrida faz errada interpretação do art. 997-1 CC, quanto à qualificação da responsabilidade dos RR, desconsiderando a sua natureza de garantia e carácter subsidiário, violando em consequência esta disposição legal.
Conclui pedindo a procedência do presente recurso pedindo que se revogue a decisão recorrida.

5 – Os RR E………. e F………. apresentaram contra-alegações defendendo a manutenção do decidido.

II – FACTUALIDADE PROVADA
Encontra-se provado por acordo das partes que a cessão do crédito invocada pela Autora apenas foi comunicada, antes da propositura da presente acção, à sociedade “H………., S.A.” e não a qualquer dos réus individualmente considerados os quais são sócios daquela sociedade.

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 684 nº 3 do Código de Processo Civil.
A única questão de cumpre conhecer é a de se saber se a decisão recorrida podia ter julgado o pedido formulado totalmente improcedente por considerar não verificada a notificação aos RR da alegada cessão do crédito em causa?
Vejamos.
Nos termos do artigo 577 n.º 1 do CC o “credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor…”
Dispõe ainda o artigo 582 do CC no seu n.º 1 que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.
“A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”, artigo 583 n.º 1 do CC.
Nos termos do artigo 228 n.º 1 do Código de Processo Civil a citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender. Emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa”.
Ocorre a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, transmite a terceiro o seu direito. Verifica-se então, a substituição de credor originário por outra pessoa – modificação subjectiva da obrigação –, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional.[1]
Para o devedor cedido, a cessão é válida, desde que lhe haja sido notificada, mesmo extrajudicialmente, ou desde que ele a tenha aceite.
Por outro lado, e na medida em que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo: o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), excepto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (cfr. art. 585º, do C. Civil).
Perante os termos da questão entendemos que a razão se encontra do lado da decisão recorrida.
Discutiu-se durante muito tempo se a notificação da cessão ao devedor era ou não um requisito essencial à perfeição do contrato.
O Prof. Antunes Varela in Direito das Obrigações, Vol. II, pag. 272 e ss indica-nos as diferentes posições adoptadas pelas diversas legislações, para concluir “Parece assim bastante mais fácil de conciliar com a disciplina global do contrato de cessão a tese tradicional, que sustenta a eficácia translativa imediata do negócio (independentemente da sua notificação ao devedor), nas relações entre as partes, do que a concepção de …”. Op. Cit. Pag. 277.
Ao contrário da legislação alemã o direito português exige para a cessão ser válida, perante o devedor, que a mesma lhe seja notificada ou por ele seja aceite.
Aquela notificação pode ser, como se referiu, judicial ou extrajudicial.
A decisão recorrida fundamenta-se apenas na circunstância de que “evidencia-se o facto de a alegada cessão do crédito em causa não ter sido notificado à pessoa de qualquer um dos réus, assim como se evidencia a falta de alegação de aceitação de tal cessão por qualquer dos réus.
Nestas circunstâncias, impõe-se considerar não verificados pressupostos essenciais do invocado direito de crédito da autora ante os réus — notificação aos réus ou aceitação por estes da alegada cessão do crédito em causa -, o que implica, por si só, a total improcedência do pedido, ficando prejudicado, consequentemente, o conhecimento das demais questões ou excepções suscitadas pelas partes”
Ora, a jurisprudência divide-se quanto à relevância da falta de notificação dessa cessão.
Para uma corrente com a citação para a acção dos devedores ocorre a notificação judicial da cessão de créditos prevista no art. 583º, n.º 1, do C. Civil.[2]
Para esta corrente jurisprudencial o que importa e o que a lei quis acautelar foi o conhecimento pelo devedor da efectivação da cessão. Ora esse conhecimento é transmitido ao devedor pela citação para a acção.
Foi a posição adoptada no Acórdão do STJ de 03.06.2004 (Relator Conselheiro Noronha de Nascimento) e no qual podemos ler “com a citação para a acção, o réu tomou conhecimento da cessão que passou a ser-lhe oponível.
A inoponibilidade da cessão ao réu provocava, enquanto perdurasse, a inexigibilidade da sua dívida ao cessionário; mas com a citação e o início da eficácia da cessão, a dívida passava a ser imediatamente exigível pelo novo credor.
….
A citação do réu para a acção traz consigo, por conseguinte, a eficácia da cessão que o novo credor pode invocar e, por arrastamento, a exigibilidade da dívida que o réu vai ter que solver ao novo titular”.[3]
Para uma outra corrente jurisprudencial a citação dos devedores para a acção, não tem a virtualidade de suprir a falta da notificação judicial da cessão de créditos prevista no art. 583º, n.º 1, do C. Civil.
Neste sentido podemos ver o Ac. do STJ de 9 de Novembro de 2000, (Relator Conselheiro Quirino Soares) e no qual podemos ler “um dos elementos integrantes da causa de pedir, é, precisamente, o da notificação da cessão de créditos ou sua aceitação por parte do devedor quer isto dizer que, antes da citação, já tal elemento deverá fazer parte do elenco de factos articulados no petitório, para que, uma vez citado o devedor, tal facto esteja adquirido definitivamente para a causa, juntamente com os demais elementos que constituem a causa de pedir”.[4]
Ponderados os diversos argumentos de uma e outra corrente entendemos (sempre salvo o devido respeito pela opinião contrária) que a razão se encontra do lado da decisão recorrida e, consequentemente, de quem entende que à citação não podem ser atribuídos os efeitos que o n.º 1 do artigo 583 confere à notificação da cessão de créditos.
O credor-cessionário para poder propor a acção contra o devedor terá previamente de o notificar (judicial ou extrajudicialmente) de que foi efectuada a cessão de créditos.
A cessão que era inoponível ao devedor (porque não notificada ou aceite) continua a ser inoponível nesta acção.
È que um dos elementos da causa de pedir, um dos requisitos do direito do Autor, credor-cessionário, era exactamente que tivesse notificado o devedor daquela cessão (ou este a tivesse aceite).
Quando o Autor, credor-cessionário, propôs a acção o seu direito ainda não se tinha completado perante o devedor, ou seja quando propôs a acção ainda não tinha (perante o devedor para quem a cessão ainda não era eficaz) o direito de que se arrogava.
E não é a citação – que se destina a dar conhecimento ao Réu de que contra ele foi proposta uma acção e a dizer-lhe para se defender, se assim o entender – que terá a virtualidade de tornar a cessão eficaz nesta acção.
È que o devedor tem exactamente o direito de se defender dizendo que nunca foi notificado da cessão em causa.
Importa recordar que para o devedor e ao contrário do que se possa pensar não é indiferente a pessoa do credor.
Eventualmente ao devedor não causaria problemas ou importaria ser devedor do sujeito A e por isso ainda não teria liquidado a dívida. Mas já lhe poderia causar problemas ser devedor do sujeito B e por isso poderia pretender liquidar a divida – sem ser demandado judicialmente, com os ónus que tal acarreta – mal tivesse conhecimento (via notificado) da cessão ocorrida.
Deste modo, podemos concluir que sendo os efeitos da citação os indicados no artigo 481 do CPC à citação não podem ser atribuídos os efeitos que o n.º 1 do artigo 583 confere à notificação da cessão de créditos.
Mas se assim é impunha-se que a Autora, credora-cessionária, tivesse notificado os Réus (devedores solidários).
Neste particular a Recorrente entende que sendo os Réus apenas sócios da devedora H………., SA (devedora principal) a sua responsabilidade é meramente subsidiária, de um terceiro, como tal não seria necessária a notificação da cessão aos RR.
Não lhe assiste qualquer razão.
Nos termos do artigo 997 n.º 1 do Código Civil “pelas dívidas sociais respondem a sociedade e, pessoal e solidariamente, os sócios”.
Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que”porém, o sócio demandado para pagamento dos débitos da sociedade pode exigir a prévia excussão do património social”.
Os sócios, no caso os RR, nos termos do art. 997-1 CC são responsáveis solidários e não é o facto de ser facultado aos sócios o benefício de excussão prévia nos termos do nº 2 da mesma disposição legal que retira aquele carácter de solidariedade.
Os devedores ainda que solidários devem também ser notificados da cessão de créditos efectuada.
Deste modo é manifesto que a decisão recorrida não merece censura, impondo-se a improcedência das conclusões da Recorrente e, consequentemente da presente apelação.

IV – DECISÃO
Por tudo o que se deixou exposto, acorda-se em se julgar improcedente a apelação deduzida pela Autora e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 18 de Junho 2007
José António Sousa Lameira
Jorge Manuel Vilaça Nunes
José Rafael dos Santos Arranja

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[1] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª Edição, págs. 179 e segs.
[2] Por todos, vide Ac. da Rel. Porto de 25.06.2001, acessível na Internet em www.dgsi.pt. E o Ac. R. Porto de 16.02.2006, proferido no processo 2315.03 (embargos de executado).
Veja-se também no mesmo sentido o Acórdão da Relação de Lisboa de 3 de Novembro de 2005, in Col. Jur. Ano XXX, tomo 5, pag 80 e ss.
[3] Podemos ver este Acórdão in www.dgsi.pt, constando do seu sumário “I-A notificação ao devedor (prevista no artigo 583 do CC) de que o seu credor cedeu o crédito a outrem pode ser feita através da citação para a acção proposta pelo credor-cessionário contra o devedor. II- Até à citação o crédito é inexigível porque a cessão é inoponível ao devedor (a quem até aí nada havia sido comunicado); com a citação a cessão torna-se eficaz e, por extensão, o crédito exigível nos termos do artigo 662 n.ºs 1 e 2 do CPC”.
[4] In Col Jur. (STJ) Ano VIII, Tomo III, pag. 121, podendo-se ler no seu sumário: I- Não tendo a devedora sido notificada da cessão, não podem atribuir-se, à citação para a acção, os efeitos do n.º 1 do artigo 583 do CC. II- De facto, sendo a notificação da cessão um dos elementos que integram a causa de pedir da acção, tem tal elemento de fazer parte (e de estar já adquirido para a causa) do elenco de factos articulados na petição inicial.