Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0536829
Nº Convencional: JTRP00039627
Relator: COELHO DA ROCHA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO-PROMESSA
DETENÇÃO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: RP200610260536829
Data do Acordão: 10/26/2006
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 690 - FLS. 46.
Área Temática: .
Sumário: I- Os promitentes compradores (ora embargantes) detentores do prédio, podem usá-lo e retê-lo até que se decida se procede ou não a eventual execução específica que eles possam ou queiram exercitar.
II- É que o direito de execução específica é incompatível com a adjudicação ou venda da coisa retida, na sequência da penhora que sobre ela tenha incidido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar, pende acção executiva em que é exequente a B……., L.da e executada C………, L.da.
Nela foi penhorada a fracção “O” do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……, ….., ….., Gondomar, matriciado no art. 2 642 ...
Por apenso,
em 25.11.2 004, D……… e mulher E……. vieram deduzir embargos de terceiro contra
1. - a exequente B…….. e
2. - a executada C…….., L.da,
pedindo a manutenção provisória da posse dos embargantes da fracção “O”, com suspensão imediata dos termos do processo executivo, ficando sem efeito a venda nele ordenada,
porquanto a fracção, em 23.11.2001, foi objecto de um contrato promessa de compra e venda entre os embargantes (promitentes compradores) e a 2ª embargada (executada, promitente vendedora), que lho entregou de imediato, passando a habitá-lo.
A escritura do contrato prometido seria realizada aquando da conclusão da obra, prevista para 30.4.2002.
Em 9.4.2002, o embargante adquirira diversos materiais de construção, de modo que a obra fosse concluída com brevidade, tendo as partes contratantes feito aditamento ao contrato promessa, levando em conta os valores despendidos por aquele. Nele consignando que o preço de aquisição era de € 131.682,64, dos quais a promitente vendedora tinha já recebido € 51.874,98; devendo o restante ser pago aquando da escritura.
Os embargantes actuam em relação à fracção como seus proprietários, com domí-nio dela (corpus) e submissão ao exercício da sua vontade (animus sibi habendi); possuindo-a sem qualquer oposição ou interrupção, à vista de todos, como quem exerce plenos poderes sobre a fracção de que são possuidores e que a posse lhes pertence, sem restrições, e na ignorância de lesar interesses ou direitos alheios, convencidos do exercício do direito próprio, fazendo nela reparações e obras, há mais de 2/3 anos.
Na qualidade de promitentes compradores e legítimos possuidores da fracção assiste aos embargantes o direito de retenção sobre ela até integral cumprimento do contrato promessa (art. 755º-1 f), CC).

Após inquirição e confrontação dos documentos juntos a fls. 18-22, o Senhor Juiz assentou que os embargantes habitam na fracção e nela realizaram algumas obras. «Não se convenceu – porém, acrescenta – ainda que indiciariamente que os embargantes agiam com o “animus” de verdadeiros proprietários, desde logo porque não ocorreu um pagamento integral do preço» ...
Concluiu que os embargantes não são titulares de uma posse ou qualquer outro direito que seja incompatível com a penhora realizada nos autos de execução – art. 354º, CPrC – pelo que rejeitou os embargos.

Irresignados, os embargantes agravaram; e, alegando, concluíram (art. 684º-3 e 690º-1, CPrC):
- os embargantes têm efectiva posse da fracção penhorada;
- por virtude da “traditio” da fracção objecto do contrato promessa, gozam do direito de retenção, que será afectado com a venda judicial, havendo incompatibilidade entre si.
Porque violado o art. 351º-1, CPrC, devem os embargos ser recebidos e prosseguir

Não foram apresentadas contraalegações.

Não se alterou o despacho impugnado.

Conhecendo.

Na fase introdutória destes embargos de terceiro, perante as diligências probatórias realizadas (depoimentos de testemunhas) e documentos juntos aos autos, o Senhor Juiz teve por indiciado:
-.na acção executiva de que estes autos são apenso, foi penhorada a fracção “O” do prédio, constituído em propriedade horizontal, sito ...
-.fracção esta que fôra objecto de contrato promessa entre os embargantes, que prometeram comprar e a 2ª embargada, que lhes prometeu vender, tendo o imóvel sido entregue aos promitentes compradores/embargantes, que passaram a habitá-lo.
A respectiva escritura, conforme ao acordado, deveria ser celebrada aquando da conclusão da obra, prevista para 30.4.2002.
Os embargantes suportaram já o custo de algumas obras feitas na fracção.
Em 9.4.2002, as partes fizeram aditamento ao contrato de compra e venda, fixando o preço de aquisição pelos embargantes em € 131.62,64, de que a 2ª embargada/ promitente vendedora recebera já € 51.874,98; sendo que o restante do preço seria pago no acto da outorga da escritura.
Os embargantes/promitentes compradores ocupam a fracção, sem qualquer oposição, à vista de todos e na ignorância de lesarem interesses alheios.

Neste quadro fáctico, inimpugnado, e que ora se releva, urge averiguar se o fundamento dos embargos de terceiro que alegam ser possuidores da fracção e titulares do direito de retenção sobre ela, permite ou não defendê-la por este meio.

Resulta dos artigos 351º-, CPrC, e 1 285º, CC, que os embargos de terceiro são o meio ou acção que a lei estabelece para a defesa da posse ou de qualquer direito incompatível, quando estes forem ofendidos por diligência ordenada judicialmente.

Os embargantes vêm pedir a manutenção provisória da posse da fracção habitacional que ocupam, que prometeram comprar, sem que a compra e venda prometida tivesse sido ainda efectivada e que (entretanto) fôra penhorada.

Suplantando polémicas, estamos com aqueles que entendem que a posse é uma situação jurídica efectiva e actual, com o correspondente poder de exercício que se afirma em actos, com todas as características e manifestações possíveis, nomeadamente quanto à consagração legal de uma pluralidade de meios para a sua protecção (as acções possessórias, nas quais se incluem os embargos de terceiro).

Hoje em dia, estes embargos deixaram de ser um meio processual possessório (art. 351º ss, CPrC), que não se destina somente a defender a posse dos embargantes, ofendidos por qualquer acto ordenado judicialmente, pois que se destinam também a defender qualquer direito deles incompatível com a realização de diligência ordenada judicialmente.

Assim, o retentor legal de fracção pode usar os meios possessórios em relação à coisa retida e traditada, quando se está perante um caso em que ele pode exigir o cumprimento contratual em espécie.
Hoje, pois, a posse não é já a exclusiva pedra de toque para aferir da viabilidade dos embargos de terceiro.
Daí que, no caso vertente, estes sejam, processualmente, um meio adjectivo viável; os recorrentes usam-no como forma de defesa de um direito ameaçado com a penhora entretanto efectivada.
A posse, aqui, não é já um pressuposto indispensável;e o direito prestacional à execução específica está, por si, ameaçado com a realização daquela diligência.

Pelo art. 755º-1 f), CC, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real (os promitentes compradores/embargantes) que obtiveram a tradição/entrega da coisa/fracção “O” do prédio urbano, gozam do direito de retenção sobre esta pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à contraparte/ promitente vendedora – art. 442º, CC.
O direito de retenção é, assim, uma garantia real “ex lege”, para proteger o promitente comprador que tenha obtido a tradição da coisa, como no caso; sendo que também - “ut” art.s 442º-3, 410º-3, CC e 830º-3, CPrC – imperativamente se normatiza a execução específica nos contratos promessa relativos à transmissão ou constituição de direitos reais sobre edifícios ou fracções autónomas, mesmo tendo havido convenção em contrário.

Neste condicionalismo, o direito de retenção dos promitentes compradores/embargantes deve e tem de ser lido. Garante ele o crédito resultante do incumprimento pelo promitente vendedor.
A outorga do contrato prometido – compra e venda da fracção “O” – consubstancia uma prestação de facto (art. 442º-3, CC) e, como tal, o crédito dos promitentes compradores/embargantes que, em primeira linha, querem a celebração do contrato definitivo a que as partes se vincularam.
Só este cumprimento em espécie, na óptica primeira dos embargantes, está equacionado; ora, não importando relevar o seu sucedâneo, do valor indemnizatório correspondente (art. 442º-2 citado).

Na concretização da execução específica pontada (cumprimento em espécie do contrato promessa) requer-se ao Tribunal que emita uma declaração negocial substitutiva, de forma a que a prestação seja efectiva e exactamente cumprida tal qual havia sido acordada.

Em sequência, se impõe afirmar que os promitentes compradores (ora embargantes) retentores do prédio, podem usá-lo e retê-lo até que se decida se procede ou não a eventual execução específica que eles possam ou queiram exercitar.
É que o direito de execução específica é incompatível com a adjudicação ou venda da coisa retida, na sequência da penhora que sobre ela tenha incidido (Assim, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 5ª edição, Outubro de 2003, Almedina, pág. 254).

Daí que possamos concluir, na senda do acórdão do STJ, de 20.1.1999, BMJ 487,195 – em que de perto nos louvamos, mas que com mais minúcia ajuíza do quão não pacífica é tal situação – que «é admissível e defensável que o retentor não possa impedir a penhora e venda da coisa retida, devendo entrar na graduação de créditos que sobre ela se faça, quando está em jogo tão só um crédito monetário e/ou indemnizatório; mas já não é admissível que o retentor não possa reter a coisa (com todas as conse-quências) quando ela se destina a garantir uma prestação que tem por objecto (ainda que mediato) a própria coisa. É que aqui o seu crédito não se reduz ao recebimento de dinheiro, coisa genérica, mas inversamente incide sobre uma prestação de facto que envolve a coisa retida».

“Ex lege”, o contrato promessa é daqueles em que a lei impõe a faculdade de execução específica e proíbe expressamente o seu afastamento consensual – art. 830º-3, CC.

Nesta situação, faz todo o sentido que o retentor e/ou credor do direito de retenção possa usar dos meios possessórios e também, por isso, dos embargos de terceiro.

A ocupação da fracção nas condições indicadas e descritas e a assunção de despesas que só o proprietário suporta, actuando “ut dominus”, como se ela já fosse sua ... mostram bem o “animus” da posse dos embargantes: estes passam a possuir, desde 23.11.2001 (declaração de fls. 4, doc. 2), a fracção que entretanto veio a ser penhorada.
Indiciada, pois, está a intenção possessória, como titular próprio do “corpus” exercido.

Também por aqui os embargos deduzidos deverão ser recebidos, como pretendem os embargantes; e indiciada está “in limine litis” a possibilidade séria da existência do direito que invocam. – art. 354º, CPrC.

Termos em que, no provimento do agravo, se revoga o despacho recorrido, devendo o Senhor Juiz substituí-lo por outro que receba os embargos e ordene o seu prosseguimento com observância do ritualismo legal subsequente – art. 357º-1, CPrC.

Custas, a final, pela parte vencida.

Porto, 26 de Outubro de 2006
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estêvão Vaz Saleiro de Abreu (vencido, conforme declaração anexa)
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos

Voto de vencido:

De acordo com o n° 2 do art. 442° do CC, o promitente comprador que tenha constituído sinal, e a quem o promitente vendedor haja concedido a tradição do imóvel a que respeita o contrato prometido, goza do direito à execução específica do contrato, nos termos do n° 3 do mesmo art. 442°, bem como à indemnização, em alternativa, prevista no citado art. 442°, n° 2, no caso de o promitente vendedor faltar culposamente ao cumprimento do contrato. E como garantia deste crédito à dupla indemnização, em alternativa, goza o promitente comprador do direito de retenção sobre o imóvel coberto pelo contrato prometido - art. 755°, n° 1, al. f) do CC (A. Varela, Das Obrigações em geral, I, 98 ed., 370).
O direito de retenção é um direito real de garantia de créditos, de dívidas de dinheiro ou de valor, conferindo ao seu titular (credor), que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor, o direito de executar a coisa retida e de se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores (vd. Ac. do ST J, de 26.2.92, www.dgsi.pt, proc. 081497, e A. Varela, Das Obrigações em geral, II, 78 ed., 579).
No contrato-promessa, o direito de retenção pressupõe, para além, obviamente, da traditio, a existência de um crédito do retentor (promitente comprador) resultante do não cumprimento ou incumprimento definitivo imputável à outra parte (citado art. 755°, n° 1, al. f).
Como se escreveu no Ac. do ST J, de 27.04.2004, www.dgsi.pt, proc.
04A1 037, para invocar com eficácia o direito de retenção, necessário seria que os embargantes tivessem vindo alegar que resultante do não cumprimento imputável à retenção existe precisamente “para garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à parte que promete transmitir ou constituir um direito real. Vale por dizer, por outras palavras, que está em causa o crédito (dobro do eram credores de indemnização outra parte. É que o direito de sinal, valor da coisa, indemnização convencionada nos termos do n° 4 do art. 442°) derivado do incumprimento definitivo” (Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, ed. de 1988, p. 111) .
Ora, no caso em apreço, os embargantes não alegam serem titulares de qualquer crédito sobre a executada. Poderá ter-se como assente que o contrato não foi resolvido (por incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora) e, consequentemente, ainda lhes não foi atribuído qualquer crédito sobre aquela.
Como escreve Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 28 ed., pág. 231, nota 24, “direito de retenção sobre a coisa só o tem o beneficiário da promessa que, após o incumprimento definitivo, tenha optado pela indemnização compensatória, nos termos dos arts. 442-2 e 755-f CC”. O que não é o caso.
Acresce que, ainda que os agravantes gozassem do direito de retenção, entendemos - no seguimento da doutrina e jurisprudência que cremos ser maioritária - que tal direito não legitimaria o uso de embargos de terceiro. Escrevia, a propósito, o Prof. A. Varela, in Das Obrigações em geral, I, 9º ed.,371:
"É evidente que o imóvel, continuando na titularidade do devedor executado, não obstante o direito de retenção do promitente-comprador que sobre ele venha a recair, pode ser penhorado. Como evidente é que, na hipótese de a penhora se efectuar, contra ela não procedem os embargos de terceiro eventualmente deduzidos pelo promitente comprador, com base no seu direito de retenção.
É que por detrás do direito de retenção do promitente-comprador não há nenhum direito real de gozo que a penhora dos credores ofenda, mas um simples direito real de garantia (...)".
Também o Cons. Salvador da Costa escreve (em Os Incidentes da Instância, pág. 85) que “inexiste incompatibilidade justificativa da dedução de embargos de terceiro entre o acto de penhora e o direito de retenção (...) porque o repectivo titular pode realizar o conexo direito de crédito de que seja titular no quadro do concurso de credores, através do mecanismo da reclamação de créditos.
Assim, não pode embargar de terceiro (…) o titular do direito real de garantia, por exemplo o titular do direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na acção executiva por via do concurso de credores”.
E no mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas, ob. Cit, p. 234, e Miguel Mesquita, in Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, pp. 160/161.
Sendo até de notar que, porque a reclamação de créditos na execução tem de assentar num título exequível, o promitente comprador, caso não disponha desse título, pode requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação, que a graduação de créditos – relativamente ao objecto da sua garantia – fique a aguardar a obtenção de uma sentença (art. 869º, nº 1 do CPC).
Na jurisprudência, pronunciando-se no sentido de que o direito de retenção não legitima o recurso aos embargos de terceiro, podem ver-se, entre outros, e para além dos citados Acs. do STJ, de 26.02.1992 e 27.04.2004, os Acs. do STJ de 26.02.2004, in www.dgsi.pt, proc. 03B4296, de 29-06-95, in BMJ, 448º-314 e de 31.03.93, CJ/STJ, 1993, II, 44; e Ac. da RP, de 28.03.2001, in www.dgsi.pt, proc. 0130362, e Ac. do STJ, de 11.7.2006, www.dgsi.pt, proc. 06ª1880, que confirmou o Ac. da RP, 26.01.2006, www.dgsi.pt, proc. 0535959 (por mim relatado).
Negaria, assim, provimento ao agravo.

Estêvão Vaz Saleiro de Abreu