Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0822725
Nº Convencional: JTRP00041328
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
VALOR MÍNIMO
ADJUDICAÇÃO
Nº do Documento: RP200804290822725
Data do Acordão: 04/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 720 - FLS. 91.
Área Temática: .
Sumário: 1. Na venda executiva por negociação particular é possível fixar o valor mínimo da venda abaixo de 70% do valor base inicial dos bens, sem o acordo do executado.
2. Não é assim no caso de adjudicação, tendo em conta o disposto no art. 875º nº 3 do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 2725/2008-2 – AGRAVO (PORTO-VARAS)

Acordam os juízes nesta Relação:



A recorrente “B……………, S.A.”, exequente na execução para pagamento de quantia certa que instaurou na ….ª Vara Cível da Comarca do Porto a “C………………, Lda.” (e D………………., E………………, F………………, G…………….., H………………., I……………., J………………. e K……………..), vem interpor recurso do douto despacho aí proferido que lhe indeferiu o pedido que formulara de fixação do valor base da venda do bem objecto da penhora nessa execução abaixo de 70% do valor base inicial, ora intentando a sua revogação, alegando, para tanto e em síntese, que discorda da decisão proferida, pois que a lei não impõe que tal patamar dos 70% não possa ser baixado em caso de venda por negociação particular, a partir do momento em que se não consegue uma proposta mais vantajosa __ e sem que para isso se exija o acordo dos executados, como vem decidido. É que em caso de venda por negociação particular (diversa da situação da venda por propostas em carta fechada) “a lei não diz qual o valor mínimo a anunciar para a venda” __ “ou seja, no caso da venda por negociação particular o valor mínimo a indicar não tem que ser necessariamente igual ao fixado para a venda por proposta em carta fechada”, ficando o juiz só obrigado a fixar o preço mínimo para a venda (“estamos, assim, perante uma situação em que se esgotaram todas as possibilidades de venda do imóvel penhorado pelo valor mínimo fixado”; “deste modo, sob pena de a exequente não poder obter a satisfação do seu crédito, não pode aquele preço continuar como valor de referência”). De resto, remata, “a exigir-se um acordo expresso do exequente e do executado para a alteração do valor mínimo da venda, estava aberta a porta à paralisação da acção executiva”. São termos em que deve tal decisão ser agora revogada e deferida a pretensão da exequente, podendo efectuar-se a venda por valor mais baixo, assim se dando provimento ao recurso.
Não foram apresentadas contra-alegações.
A Meritíssima Juíza sustentou o decidido.
Nada obsta ao conhecimento do recurso.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) Nos presentes autos de execução para pagamento de quantia certa foi ordenada a venda do “direito e acção do quinhão hereditário que os executados K…………… e J……………… têm sobre a fracção autónoma designada pela letra F, destinada a habitação, no 2.º andar, Direito, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …………, n.º …., Foz do Douro, no Porto”, por propostas em carta fechada, por um valor base de 87.300,00 (oitenta e sete mil e trezentos euros) – (vidé fls. 25 e o douto despacho de fls. 21 dos autos, cujo teor aqui é dado por integralmente reproduzido).
2) Como na data marcada para a venda não foi apresentada qualquer proposta, foi ordenada a venda por negociação particular, por um preço mínimo de 65.200,00 (sessenta e cinco mil e duzentos euros) – (vidé o mesmo despacho de fls. 21 dos autos).
3) Em 28 de Novembro de 2006 o sr. Encarregado da venda informou o Tribunal de que não tinha obtido qualquer proposta (vidé o requerimento de fls. 22 dos autos, aqui igualmente dada por reproduzido na íntegra).
4) A pedido da exequente foi requerida a nomeação e nomeado um novo Encarregado da venda, que também não conseguiu obter qualquer proposta para a mesma (vidé o requerimento de fls. 23, o despacho de fls. 24 e a exposição de fls. 25 a 26 dos autos, todos aqui dados por integralmente reproduzidos).
5) Notificada, veio a exequente, a 10 de Abril de 2007, requerer a fixação daquele valor base da venda em 57.400,00 (cinquenta e sete mil e quatrocentos euros) – (vidé o requerimento de fls. 28 dos autos, que aqui se reproduz).
6) Notificado, veio o executado J………………, em 2 de Maio de 2007, opor-se a tal pedido (vidé o requerimento de fls. 29 a 30 dos autos, que aqui igualmente se dá por reproduzido na íntegra).
7) Mas por douto despacho do Mm.º Juiz do processo, proferido em 02 de Maio de 2007 __ depois completado por douto despacho datado de 08 de Maio seguinte __, foi indeferida a pretensão da exequente (vidé tais decisões a fls. 31 e 33 dos autos, que aqui também se dão por integralmente reproduzidas).
8) A exequente recorreu, tendo apresentado alegações em 05 de Junho de 2007 (vidé a data de remessa do correio electrónico a fls. 2 dos autos).
9) E o recurso deu entrada nesta Relação a 14 de Abril de 2008, conforme o carimbo de entrada aposto a fls. 42 dos autos.
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E a questão que demanda apreciação e decisão deste Tribunal de recurso consiste em saber se há ou não a possibilidade do juiz fixar o valor mínimo para a venda executiva por negociação particular abaixo de 70% do valor base inicial dos bens a vender, sem o acordo dos executados. É isso que, “hic et nunc”, está em causa, como se vê das conclusões do recurso apresentado.
Os doutos despachos recorridos são do seguinte teor:
a) de 2 de Maio de 2007: “Atendendo à posição assumida pelo executado, indefere-se o requerido pelo exequente em 09/04/2007.
Notifique, com cópia da posição assumida pelo executado”;
b) e o de 8 de Maio seguinte, a completar o anterior: “A razão de ser do despacho de fls. 463 é a seguinte: depois de fixado o valor base de determinado bem, só o acordo expresso de todas as partes permite alterá-lo e só o mesmo acordo expresso permite uma venda ou adjudicação por valor inferior a 70% do aludido valor base – artigos 889.º e 875.º do CPC.
Ora, nos autos não se vislumbra qualquer dos referidos acordos e, pelo contrário, verifica-se a oposição expressa de uma das partes em relação ao valor proposto pelo exequente.
Notifique”.
Ora, a propósito desta matéria, estatui o artigo 904.º, alínea d) do Código de Processo Civil (relativo aos casos em que se procede à venda por negociação particular) que “A venda é feita por negociação particular quando se frustre a venda por propostas em carta fechada, por falta de proponentes, não aceitação das propostas ou falta de depósito do preço pelo proponente aceite” (sic).
Por aqui se vê, desde logo, que foi intenção do legislador conformar este tipo de venda executiva, neste caso, como modalidade de recurso em relação à venda por propostas em carta fechada, esta erigida em modalidade regra. E, assim, entra a mesma em acção digamos que ‘em desespero de causa’, quando a primeira não funcionou no objectivo basilar que se intenta: a venda dos bens. E daí que não seja de estranhar que o formalismo exigido seja mais aligeirado, precisamente em ordem a alcançar aquele objectivo básico que com a venda por propostas em carta fechada se não alcançou.
Essa poderá ser a razão para que na venda por propostas em carta fechada se exija a fixação do valor a anunciar para a mesma, em montante “igual a 70% do valor base dos bens”, segundo os termos do n.º 2 do artigo 889.º do Código de Processo Civil (na redacção do Decreto-lei n.º 38/2003, de 08 de Março) - naturalmente também por razões de pragmatismo e para orientação dos próprios proponentes, para que se não perca tempo com propostas demasiado baixas, num processado que ocupa tempo e recursos preciosos -, e tal exigência não se mostrar prevista na venda por negociação particular (sendo esta mais frontal, pessoa a pessoa, logo se poderá elucidar um interessado de que a sua oferta é demasiado baixa). E, efectivamente, como alega a ora recorrente, é verdade que aquela exigência não está prevista na lei: para todas as modalidades de venda há a obrigação de fixar “o valor base dos bens a vender”, estabelecida na alínea b) do n.º 2 do artigo 886.º-A daquele Código, mas não que esse valor seja “igual a 70% do valor base dos bens”, conforme se prevê para a venda por propostas em carta fechada. [De resto, ainda a propósito deste artigo 886.º-A do CPC e do facto do Meritíssimo Juiz ‘a quo’ ter feito depender o deferimento da pretensão formulada pela exequente do acordo dos executados, se verifica que para tudo é preciso ouvir “o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender” (seu n.º 1) mas para nada é preciso o respectivo acordo (seus n.os restantes)].
Ora, não faria sentido que se o legislador tivesse querido prolongar na venda por negociação particular exigências previstas para a venda por propostas em carta fechada, que o não tivesse dito, podendo muito bem tê-lo feito (técnica que chegou mesmo a usar noutros aspectos que colocou nas disposições gerais relativas às vendas, v. g. no n.º 2 do artigo 886.º do CPC, com menção expressa das modalidades de venda a que teriam aplicação: “O disposto nos artigos 891.º e 901.º para a venda mediante propostas em carta fechada aplica-se, com as devidas adaptações, às restantes modalidades de venda, e o disposto nos artigos 892.º e 896.º, a todas, exceptuada a venda directa”).
Voltando já ao caso ‘sub judicio’, porque não mandaria, então, estender o regime do limite dos 70% das vendas por propostas em carta fechada às vendas por negociação particular? A resposta só poderá ser a de que realmente se não pretendeu estender o regime de uma modalidade à outra (senão, como conseguir efectuar vendas numa modalidade que foi qualificada como de recurso se as exigências fossem as mesmas da modalidade que para tal se apurou não ter sido eficaz?).
Por fim, também não faria sentido deixar na mão dos próprios executados - por via da sua não concordância - a impossibilidade de efectivar a venda dos bens por preço inferior àquele limite de 70% do valor base dos mesmos, caso que os poderia incentivar a dificultar essa mesma venda (sendo para notar como é paradigmática nesse aspecto a situação destes autos, com os encarregados da venda a informarem o Tribunal de que é o comportamento dos executados que inviabiliza as negociações de venda, como se vê de fls. 22: “vem informar de que até à presente data e depois de mais alguns interessados visitarem o apartamento, desistem imediatamente ao verem o mesmo ocupado pelos proprietários”, ou de fls. 26: “mais informo V. Ex.ª que apesar de habitado, das várias diligências para o mostrar a eventuais interessados, tive dificuldades para ter acesso ao seu interior, pois quem lá habita não abriu a porta”). Se dúvidas houvesse quanto à bondade daquele regime, por aqui se via que tal matéria não pode ficar dependente da vontade ou acordo dos executados.
No entanto, importa clarificar o seguinte:
Tudo quanto se disse se reporta à pretensão da recorrente de ver deferido o seu pedido para que o Tribunal autorize a venda por negociação particular por valor inferior ao limite dos referidos 70% do valor base, pretensão que cremos ser o objecto do recurso. Mas não a uma eventual pretensão da exequente __ que também resulta dos autos, onde apresentou até uma proposta de aquisição que, entretanto, retirou __ a que lhe seja adjudicado o bem por esse valor, pois que já não tem para isso fundamento legal, antes pelo contrário. Com efeito, no caso de adjudicação pelo exequente a sua oferta já não poderá ser inferior a 70% do valor base do bem, conforme estatui o artigo 875.º, n.º 3 do Código de Processo Civil: “o requerente deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 889.º” (precisamente os tais 70%: sublinhado nosso) __ (vidé, neste sentido, o douto Acórdão desta Relação de 24 de Novembro de 2005, publicado pelo ITIJ e com a referência n.º 0535665).
Temos, pois, que entender, salva outra melhor opinião, que o Meritíssimo Juiz “a quo” não decidiu bem a questão que lhe estava colocada, pelo que agora se altera a decisão no sentido do deferimento da pretensão da exequente para que o bem possa ser vendido por negociação particular pelo preço sugerido.
Motivo para, nesse enquadramento fáctico e jurídico, ter que se dar agora razão à recorrente, revogando o despacho impugnado e procedendo o recurso. É o que se decidirá.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.
Não são devidas custas.
Registe e notifique.

Porto, 29 de Abril de 2008
Mário João Canelas Brás
António Luís Caldas Antas de Barros
Cândido Pelágio Castro de Lemos