Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
968/07.6PBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP00042756
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: AMEAÇA
Nº do Documento: RP20090701968/07.6PBVLG.P1
Data do Acordão: 07/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 378 - FLS. 324.
Área Temática: .
Sumário: Não preenche o tipo objectivo do crime de ameaça a conduta de quem, referindo-se a outra pessoa, disse que «se fosse necessário, lhe dava um tiro».
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 968/07.6PBVLG


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I


1. No processo comum, com intervenção do tribunal singular, supra identificado, do 2.º juízo do Tribunal Judicial de Valongo, por sentença de 04/12/2008, foi decidido, no que, agora, interessa, condenar o arguido, B……………., pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal [CP], na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

2. Tanto o Ministério Público como o arguido interpuseram recursos da sentença. São as seguintes as conclusões formuladas:

2.1. Pelo Ministério Público:

«1.º Nos presentes autos, foi proferida sentença que condenou o arguido B……………, pela prática do crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153°, n° 1 e 155° n° 1 alínea a) do Código Penal, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5,00E (cinco euros), perfazendo o montante global de 600,00€ (seiscentos euros) e, subsidiariamente, na pena de 80 dias de prisão.

«2.º No procedimento de determinação concreta da pena de multa no sistema dos dias-de-multa, o primeiro acto do juiz consiste em determinar o número de dias de multa, o que fará tendo em conta as exigências preventivas, bem como à culpa do agente, atendendo-se a esta como limite inultrapassável — cfr. art. 70 n° 1 do Código Penal (C.P.). É o que resulta claramente do art. 47° n° 1 do C.P.

«3.º O segundo acto do juiz consiste em determinar o quantitativo diário da multa, fixando-se o mesmo atendendo-se, agora sim, à situação económica do agente, bem como aos seus encargos pessoais — cfr. art. 47° n° 2 do C.P. Deste modo se procura realizar o princípio da igualdade de ónus e sacrificios.

«4.º Os factos provados, constantes da douta sentença, que para o caso importam são os seguintes:

«o arguido é agente da PSP, donde aufere o vencimento mensal líquido de 1 300,00€; - vive com a mulher que é doméstica;

«do seu agregado familiar faz ainda parte um filho, que se encontra a seu cargo e

«paga a quantia de 600,00€ mensais para amortização de um empréstimo que contraiu para aquisição da habitação onde residem.

«5.º Os factos foram praticados na noite de 20 para 21 de Dezembro de 2007, em momento em que já se encontrava em vigor a Lei n° 59/2007 de 4 de Setembro, a qual introduziu alterações profundas ao Código Penal, entre as quais a de provocar uma subida significativa dos limites monetários da pena de multa.

«Com efeito, na vigência da anterior redacção deste artigo, o quantitativo diário balizava-se entre 1€ e 498,80€, tendo sido alterado para os actuais 5€ a 500€.

«6.º Ao proceder a esta alteração, o legislador fê-lo, temos por certo, com intenção deliberada de promover uma subida nos quantitativos diários da multa a aplicar

«7.º Assim, o mínimo legalmente previsto está pensado, segundo nos parece, para quem não possui rendimentos mínimos para fazer face à sua subsistência e não para quem aufere quase três vezes o salário mínimo nacional, como é o caso do condenado nos presentes autos, embora tenha encargos consideráveis, é certo. Aplicar-lhe o quantitativo mínimo diário é, segundo nos parece, contornar de forma inaceitável e injustificada a vontade do legislador, expressa de forma inequívoca na norma em apreço.

«8.º Acresce que aplicar a este arguido o montante mínimo previsto na lei é fazer perigar o princípio da igualdade no sacrifico imposto pela pena de multa.

«O sistema de sanção pecuniária diária em montante variável acolhido no nosso ordenamento penal visa precisamente obviar a um dos maiores inconvenientes assacados à pena de multa, a saber, o peso desigual para pobres e ricos e constitui corolário evidente do princípio da igualdade, quaisquer que sejam os meios de fortuna.

«9.º No sistema escandinavo dos dias-de-multa (recebido pelo ordenamento nacional), é decisiva a ideia de igualdade de sacrificio, partindo-se da consideração da capacidade económica do delinquente como factor de mediação da pena face a todos os demais elementos.

«10.º Por outro lado, a taxa aplicada na douta sentença revela-se desadequada e desproporcionada, colocando em causa as finalidades de prevenção da pena de multa. A multa, enquanto sanção penal que é, não pode deixar de ter a natureza de pena ou sofrimento — por outras palavras, não pode o condenado na multa deixar de a "sentir na pele"'.

«11.º Nestes termos, o Meritíssimo Juiz a quo fez, com o devido respeito, uma incorrecta interpretação e aplicação do artigo 47º n°2 do Código Penal.

«Face à situação económico-financeira do arguido, não deverá ser aplicada taxa diária em valor inferior a 8,00€ (oito euros).»

Termina pelo pedido de alteração da taxa diária da multa para € 8,00.

2.2. Pelo arguido:

«I – O recorrente foi condenado pela prática de um crime de ameaça agravado p. p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do C. Penal;

«II – O ofendido C………… desistiu da queixa conforme requerimento junto dos autos a fls. 184;

«III – Sobre a desistência da queixa recaiu despacho do Tribunal a quo, a fls. 191, onde conclui pela irrelevância da mesma;

«IV – O Tribunal a quo decidiu que o crime de ameaça agravado imputado ao recorrente reveste natureza pública;

«V – Este despacho de fls. 191 não foi notificado ao arguido nem ao seu defensor;

«VI – O Tribunal a quo na decisão, a fls. 191, fez uma errada interpretação do art.º 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 59/2007;

«VII – O crime de ameaça constante do art.º 153.º conjugado com o art.º 155.º do C. Penal não tem natureza pública;

«VIII – Deve, antes, considerar-se que mantém a natureza semi-pública e que o art.º 155.º do C. Penal vem só estabelecer uma mera agravação do tipo legal base previsto no referido art.º 153.º do C. Penal;

«IX – O crime de ameaça agravada mantém a natureza semi-pública;

«X – O Tribunal a quo interpretou erradamente o art.º 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a) do C. Penal, pelo que a audiência de discussão e julgamento deve ser considerada inexistente e, consequentemente, deve ser posto termo ao processo;

«XI – O Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos dados como provados nos pontos 1, 2, 3, 4 e 5 da fundamentação da decisão, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova suficiente;

«XII – Na análise efectuada da fundamentação da decisão sobre esta matéria de facto dada como provada, onde refere os depoimentos do arguido e das testemunhas D…………, E…………, F………….. e G…………….., retira-se que o Tribunal a quo baseou-se unicamente nas declarações da testemunha D………..;

«XIII – O Tribunal a quo violou o disposto no nº 2, do artº 32º da Constituição da República;

«XIV – Da análise da prova produzida resulta que não ficou demonstrado que o recorrente tenha ameaçado o queixoso através de uma terceira pessoa;

«XV – O Tribunal a quo deu erradamente como provados os pontos sob os n.ºs 3, 4 e 5 do capítulo II da fundamentação da decisão a quo;

«XVI – A desistência da queixa é impeditivo da factualidade dada como provada no ponto 4 da fundamentação uma vez que o queixoso não refere qualquer das afirmações ou expressões que foram objecto da condenação do recorrente;

«XVII – Apenas em função das palavras ou expressões concretas de que o queixoso tivesse tido conhecimento era possível ajuizar sobre a sua capacidade de afectação ou perturbação.

«XVIII – Não deverá concluir-se que o arguido pretendeu causar medo ao ofendido por interposta pessoa, já que se não demonstra que o arguido tivesse encarregado o trabalhador do estabelecimento ou qualquer outra pessoa que estivesse presente no local de, directa ou indirectamente, dar conhecimento ao queixoso daquela frase.

«XIX – Não estando presente o elemento essencial do crime em apreço, constituído pela vontade de ameaçar alguém, não pode o arguido ser condenado pelo crime cuja prática lhe é imputada.»

Termina pelo pedido de absolvição do crime por que foi condenado.

3. Ao recurso interposto pelo arguido foi apresentada resposta pelo Ministério Público na qual sustentou a sua improcedência.

4. Admitidos os recursos, foram os autos remetidos a este tribunal.

5. Na oportunidade conferida pelo artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal [CPP], o Ministério Público, nesta instância, deu parecer, em relação ao recurso interposto pelo arguido, sustentando a sua improcedência, quer quanto à questão de direito suscitada, quer quanto à impugnação da decisão de facto.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada chegou aos autos.

7. Devendo o recurso ser julgado em conferência [artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP], colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência.

Dos trabalhos da mesma procede o presente acórdão.


II

1. Sendo pelas conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que se define e delimita o objecto dos recursos [artigo 412.º, n.º 1, do CPP], temos que:

1.1. No recurso interposto pelo Ministério Público é tão só colocada a questão de direito do montante da taxa diária da multa em que o arguido foi condenado;

1.2. No recurso interposto pelo arguido é suscitada a questão de direito da relevância da desistência de queixa e, no que especificamente concerne à sentença, o recorrente coloca, expressamente, a questão do erro de julgamento da matéria de facto. Detecta-se, ainda, que a questão de direito do erro de subsunção está implicada no recurso.

2. À decisão das questões postas nos recursos, interessa o que passaremos a referir.

2.1. O arguido foi acusado e pronunciado pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea a), do CP.

Crime por que veio a ser condenado.

O ofendido C…………… deu aos autos um requerimento, em 07/11/2008, desistindo da queixa apresentada contra o arguido.

Por despacho de 14/11/2008, foi decidido ser a desistência de queixa irrelevante.

Prosseguiram os autos para julgamento sem que do requerimento de desistência de queixa e do despacho que sobre ele recaiu tivesse sido dado conhecimento ao arguido.

2.2. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos:

«1. Na noite de 20-12-2007 para 21-12-2007, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento de restauração e bebidas denominado “H……….”, sito na Av. ……….., ……., Valongo, à procura de C…………, ofendido;

«2. Ao mesmo tempo que perguntava pelo referido C………….., o arguido disse a um trabalhador do referido estabelecimento, em tom de firmeza e de seriedade, que se necessário dava um tiro ao mesmo C…………., enquanto desviava a gabardine que trazia vestida e apontava para um objecto em tudo idêntico a uma arma de fogo que trazia consigo à cintura;

«3. O arguido previu e quis actuar da forma acima descrita;

«4. O arguido sabia que a sua conduta era idónea a causar no ofendido receio de que algum mal contra a vida ou saúde, provocado pelo mesmo lhe acontecesse, o que quis;

«5. O arguido actuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo bem que a sua conduta era proibida e punida por Lei;

«6. O arguido é agente da PSP, donde aufere o vencimento mensal líquido de € 1 300,00;

«7. O arguido vive com a mulher, que é doméstica, e um filho, que se encontra a seu cargo;

«8. O agregado familiar do arguido vive em casa própria do mesmo;

«9. O arguido paga a quantia mensal de € 600,00 para amortização de um empréstimo que contraiu para aquisição da habitação acima referida;

«10. O arguido não tem antecedentes criminais averbados no seu c.r.c..»

2.3. E foi dado por não provado que:

«11. O arguido disse que matava o queixoso;

«12. O arguido trazia consigo uma arma de fogo, para onde apontou quanto afirmou o referido na matéria dada como provada.

«13.O queixoso, à data referida na matéria provada, era trabalhador do estabelecimento na mesma mencionado.»

2.4. A fundamentação da decisão proferida sobre matéria de facto é a seguinte:

«O Tribunal fundou a sua convicção nos seguintes elementos de prova:

«Nas declarações do arguido quanto à sua situação pessoal, não tendo merecido credibilidade quando negou os factos dados como provados, referindo que permaneceu em sua casa na noite em que os mesmos ocorreram, posto que frontalmente contrariado pelos dois depoimentos que abaixo se referirão;

«No depoimento da testemunha D……………., que se encontrava a laborar no estabelecimento referido na matéria de facto dada como provada e que presenciou a actuação do arguido, tendo-a descrito no sentido da matéria dada como provada (não tendo examinado o objecto que o arguido trazia consigo), negando a expressão dada como não provada, patenteando espontaneidade, coerência e segurança, evidenciando isenção, merecendo por isso, credibilidade;

«No depoimento da testemunha E……………, amigo de infância do arguido e que afirmou ter jantado em casa do mesmo na noite referida na matéria provada, tendo saído da residência entre as 23H30 e as 24H00, encontrando-se o arguido no seu interior, prestado de modo espontâneo, sendo certo que tal não contraria o depoimento acima referido, posto que o arguido reside em Ermesinde, sendo-lhe fácil e rápida a sua deslocação de sua casa ao estabelecimento acima referido;

«No depoimento da testemunha F………….., amigo do arguido há longa data, e que afirmou ter jantado em casa do mesmo na noite referida na matéria provada, tendo saído da residência entre as 01H00 e as 02H00, encontrando-se o arguido no seu interior, prestado de modo espontâneo, sendo certo que tal não contraria o depoimento acima referido, posto que o arguido reside em Ermesinde, sendo-lhe fácil e rápida a sua deslocação de sua casa ao estabelecimento acima referido;

«No depoimento da testemunha G………….., dono do estabelecimento referido na matéria provada, que reconheceu a colaboração do ofendido nas actividades do estabelecimento (auxiliava na segurança do mesmo), sem reconhecer qualquer vínculo laboral, e que tomou conhecimento da actuação do arguido por intermédio de trabalhadores do estabelecimento logo após a mesma ter ocorrido, posto que não assistiu à mesma por se encontrar na cozinha do estabelecimento, tendo afirmado, de modo seguro, espontâneo e coerente, que o arguido esteve presente no estabelecimento na mesma data, tendo-o visto a entrar no mesmo, o que corrobora o depoimento da testemunha D………… e contraria a versão apresentada pelo arguido, sendo certo que o teor do documento de fls. 159, invocado pelo arguido em sede de contestação, em nada retira credibilidade ao depoimento em apreço;

«Nos c.r.c. de fls. 146, quanto à ausência de antecedentes criminais averbados por parte do arguido.»

3. Passamos, agora, a conhecer das questões postas nos recursos, pela seguinte ordem de precedência, na medida em que o conhecimento da seguinte é prejudicado pela procedência da anterior:

– efeito jurídico da desistência de queixa,

– impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto,

– erro de subsunção,

– taxa diária de multa.

3.1. Começa o recorrente/arguido por suscitar a questão do efeito jurídico a conferir à desistência de queixa apresentada pelo ofendido.

Comprovado que não foi notificado do despacho que julgou irrelevante a desistência de queixa, não há fundamento para questionar a tempestividade do recurso, nesta parte.

O recorrente/arguido sustenta que, em função da natureza semipública do crime por que foi acusado, pronunciado e condenado, devia ter sido reconhecida a relevância da desistência de queixa e, por via dela, ser declarado extinto o procedimento criminal.

Nos chamados crimes semipúblicos a legitimidade do Ministério Público para por eles proceder está dependente da pré-existência de queixa [artigos 48.º e 49.º do CPP], podendo o titular desse direito, depois de o ter exercido, de forma processualmente válida [artigos 113.º e 115.º do CP], vir desistir da queixa, impedindo a prossecução do processo [e que a queixa seja renovada], desde que o faça até à publicação da sentença da 1.ª instância e não haja oposição do arguido [artigo 116.º, n.º 2, do CP].

Na tese do recorrente/arguido, o crime por que foi acusado e pronunciado e por que veio a ser condenado tem a natureza semipública requerida para que a desistência de queixa impeça a prossecução do processo.

É, neste ponto, que não tem razão.

Desde a versão primitiva do CP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, o tipo-de-ilícito de ameaça compreendia uma forma simples ou base [descrita no n.º 1 do preceito[1]] e uma forma qualificada [descrita no n.º 2], dependendo de queixa o procedimento criminal por qualquer delas, como se previa no n.º 3.

Com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – que alterou o CP –, uma das alterações introduzidas ao CP respeita, precisamente, ao tipo-de-ilícito de ameaça.

No artigo 153.º, n.º 1, permaneceu o tipo simples e, em relação a ele, foi mantida a natureza semipública, no n.º 2.

O tipo qualificado passou para o artigo 155.º, onde se prevêem as circunstâncias e os resultados que qualificam tanto o tipo simples de ameaça como o tipo simples de coacção e as penas que cabem a cada um dos tipos, em função da sua verificação.

Do artigo 153.º foi eliminada a ameaça qualificada [com a revogação do n.º 2 e passando a n.º 2 o anterior n.º 3] e esta passou a constar do artigo 155.º – onde, anteriormente, só era prevista a “coacção grave” – consagrando a opção legislativa de “o crime de ameaça passar a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”[2].

O artigo 155.º não contém norma que estabeleça a natureza semipública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artigo 155.º, a estabeleça, pelo que, na falta dessa expressa consagração, tem de concluir-se que os crimes de ameaça e de coacção qualificados, em função das circunstâncias elencadas nas alíneas do n.º 1 ou em função do resultado previsto no n.º 2, têm a natureza de crimes públicos.

Com efeito, neste particular aspecto, a técnica legislativa é constante e de absoluta clareza. Para expressar a natureza semipública de um tipo legal, o legislador usa a fórmula ritual “o procedimento criminal depende de queixa” e fá-la constar de um número autónomo do da descrição típica, após essa descrição, integrando o mesmo artigo, ou em artigo autónomo, de um capítulo, reportado aos artigos precedentes, que o integram, especificando aqueles relativamente aos quais o procedimento criminal depende de queixa[3].

Na falta de norma expressa a indicar que o procedimento criminal depende de queixa, o crime tem natureza pública.

Do facto de a ameaça agravada ter, antes da Lei n.º 59/2007, natureza semipública não se pode extrair qualquer argumento válido quanto a se dever entender que a continua a manter.

Na actual redacção, o n.º 2 do artigo 153.º liga-se, exclusivamente, à descrição típica contida no n.º 1 precedente.

No CP são inúmeros os exemplos de tipos de crime que, na forma simples ou base, têm natureza semipública, e que, quando qualificados ou agravados, passam a ter natureza pública[4].

No que se manifestam, justamente, os fundamentos da existência de crimes semipúblicos. Em certas formas do tipo de crime o legislador não sente a necessidade de reagir automaticamente contra o agente mas quando se verificam, na sua prática, certas e determinadas circunstâncias, o legislador, dando prevalência ao interesse público, não condiciona a promoção do processo pelo Ministério Público à existência de queixa dos particulares[5].

A solução legislativa de não manter a natureza semipública do tipo qualificado de ameaça é, por último, a mais harmónica com a opção de qualificar a ameaça pelas mesmas circunstâncias que qualificam a coacção.

3.2. O recorrente/arguido impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, especificando os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e assinalando que não foi produzida prova que os permitisse ter por assentes.

Não sendo perfeito o cumprimento dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, da motivação e das conclusões formuladas pelo recorrente/arguido emergem, com clareza, as razões da sua discordância em relação à decisão proferida sobre matéria de facto, pelo que passaremos a conhecer do recurso, nesta vertente.

Relativamente ao facto de o recorrente/arguido ter estado presente no estabelecimento, nas circunstâncias de tempo, dadas por provadas, a prova constituída pelos depoimentos das testemunhas D….…….. e G……………. foi, efectivamente, adequada a dá-lo por assente.

Não é ele, porém, o decisivo. O ponto fulcral da divergência [na medida em que os outros aparecem na sua dependência] radica nos factos contidos no ponto 2. dos factos provados.

Para a sua prova relevou, como a motivação esclarece, exclusivamente, o depoimento da testemunha D………….

Só esta testemunha ouviu o recorrente/arguido proferir a frase que foi tida por adequada a preencher o tipo objectivo do crime por que o recorrente/arguido foi condenado.

Pretende, afinal, o recorrente/arguido que o depoimento dessa testemunha não teve o significado e alcance que obteve tradução no ponto 2. dos factos provados.

A audição desse depoimento demonstra, porém, que a matéria contida no ponto 2. dos factos provados constitui, no essencial, a condensação do depoimento da testemunha D…………….

Esta testemunha referiu, em síntese, que, nas circunstâncias de tempo e lugar dadas por provadas, o recorrente, apresentando sinais de embriaguez, e por causa de desentendimentos anteriores com C…………. (“rixas” anteriores), referindo-se a este, disse “se for preciso eu dou-lhe um tiro”; já em discurso indirecto, repetiu a testemunha que o recorrente/arguido afirmou que “se fosse preciso até lhe dava um tiro”; ao mesmo tempo, o recorrente/arguido desviou a gabardine que trazia vestida e apontou para um objecto que trazia à cintura, com aparência de arma de fogo.

Quanto à frase proferida e gesto que a acompanhou a matéria de facto não merece, portanto, crítica, muito embora o tom de firmeza e seriedade com que foi proferida represente uma ilação do tribunal não absolutamente consentida pelo depoimento da referida testemunha, sobretudo se se considerar que ela destacou que o recorrente/arguido mostrava encontrar-se embriagado.

Também não há dúvidas de que o que foi dito pelo recorrente/arguido foi comentado e constado no estabelecimento (neste ponto, especialmente o depoimento de G…………..) e chegou ao conhecimento de C…………… (do que a queixa por ele apresentada é prova inequívoca).

3.3. Não é, portanto, no âmbito do erro de julgamento da matéria de facto que o recurso pode lograr provimento.

A questão que verdadeiramente se coloca é outra, distinta. É a de saber se nos factos provados se encontram os elementos típicos do crime de ameaça.

E temos para nós que não.

O recorrente/arguido anunciou publicamente, no estabelecimento, que “se fosse preciso até dava um tiro” a C…………….

O anúncio do mal futuro [dar um tiro] mostra-se, assim, dependente de a inflicção desse mal se vir a tornar, na opinião do recorrente/arguido, necessária. O recorrente/arguido não proclamou que daria um tiro a C…………... Anunciou que essa possível acção futura ficaria dependente de se vir a mostrar necessária/precisa. Embora se desconheçam as condições de cuja verificação, na perspectiva do recorrente/arguido, ele faria depender, a ocorrência do mal, o sentido gramatical da frase impõe que se reconheça que o recorrente/arguido se limitou a admitir a mera possibilidade de vir a dar um tiro a C……………...

Temos, assim, que na frase proferida pelo recorrente se contém essencialmente uma advertência ou aviso dirigidos a C…………… e não propriamente uma ameaça, enquanto anúncio de um mal, futuro, cuja ocorrência depende exclusivamente da vontade do agente.

É no condicionamento da concretização do mal futuro à verificação, também futura, da necessidade [na perspectiva do recorrente/arguido, por razões não esclarecidas] da sua concretização que se encontra o traço distintivo entre a ameaça e o simples aviso.

O que o recorrente anunciou foi a hipótese de vir a achar necessário dar um tiro a C……………. Não se tratou, portanto, de uma ameaça, propriamente dita.

3.4. Concluindo nós que na frase proferida pelo recorrente/arguido não se encontra preenchido o tipo objectivo de ilícito de ameaça, deixa de ter qualquer interesse a questão de direito implicada no recurso do recorrente/arguido, qual seja, a de não ter “encarregado” fosse quem fosse de transmitir a C………….. aquilo que tinha dito.

Não é por aí que não se verifica o tipo objectivo do ilícito de ameaça.

O conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo é, com efeito, um elemento integrante do tipo objectivo, sendo indiferente a forma ou meio utilizados pelo agente ameaçador[6]. Que a frase dita pelo recorrente/arguido chegou ao conhecimento de C………….. é incontroverso. A questão está, como dissemos, em que nessa frase não se manifestam os elementos objectivos típicos da ameaça.

3.5. A solução a que chegámos, prejudica o conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público.


III

Termos em que, com os fundamentos expostos, revogamos a decisão condenatória e absolvemos o arguido/recorrente B…………… do crime por que foi submetido a julgamento.

Não é devida tributação.

Porto, 01/07/2009

Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
__________________________

[1] Inicialmente, o artigo 155.º e, após a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, o artigo 153.º
[2] Cfr. Exposição de Motivos do Anteprojecto de Revisão do Código Penal.
[3] Cfr.v.g., artigo 198.º do CP, quanto aos crimes contra a reserva da vida privada, artigo 178.º, quanto aos crimes contra a autodeterminação sexual.
[4]Cfr., v.g., furto simples e furto qualificado [artigos 203.º e 204.º], ofensa à integridade física simples, grave e qualificada [artigos 143.º, 144.º e 145.º].
[5] Neste ponto, cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Limitada, 1974, p. 121.
[6] Cfr., neste particular aspecto, Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora 1999, pp. 347-348.