Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0831101
Nº Convencional: JTRP00041193
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RP200803130831101
Data do Acordão: 03/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 752 - FLS. 122.
Área Temática: .
Sumário: A simples falta de prova de factos alegados, ainda que de natureza pessoal, com a consequente improcedência da acção, não permitem concluir pela litigância de má fé por banda da parte que os alegara e sobre quem impendia o respectivo ónus probandi, sob pena de se estar a coarctar o legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o regime jurídico que os enquadra, por mais minoritárias (em termos jurisprudenciais) ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO:

"B………………., Lda, com sede no Porto, propôs acção ao abrigo do Dec.-Lei 269/98, de 01/09 e que seguiu termos ao abrigo do Dec.-Lei 108/2006, de 08/06, contra `C………………, Lda.", com sede em Faro.

Pede:
A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €938,24, acrescida de 1,28 euros de juros de mora, contados à taxa legal, até 31/10/2006, bem como, os vincendos até integral pagamento.

Alega, em síntese:
Que no exercício da sua actividade comercial na área de cosmética médica, a Autora prestou à Ré os serviços constantes da factura emitida em 10/10/2006, no valor de 1.2110,00 euros, que deveria ter sido paga a pronto pagamento, na data da respectiva emissão, mas da qual a Ré apenas pagou 271,76 euros; refere, ainda, que apesar de interpelada para pagar o restante não o fez.

A Ré foi citada e deduziu, a fls. 23 e ss., oposição, alegando, em síntese, que são falsos os factos alegados nos itens 2.° e ss., da petição inicial, nada devendo à autora.
Deduz, ainda, pedido reconvencional, peticionando a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de 688,00 euros, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, alegando que é a Ré que detém para com a Autora um crédito no valor de 688,00 euros, correspondente ao valor entregue a título de sinal para a compra do aparelho referido na petição inicial, uma vez que a desistência foi justificada e comunicada à Autora, que se recusou a reconhecer tal direito.

Alegou, ainda, a ré que a autora litiga de má fé, ocultando factos que não podia desconhecer e pretendendo cobrar serviços que nunca prestou, pelo que deve ser condenada em multa e indemnização a favor da Ré.
Termina a ré peticionando a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido, bem como a procedência da reconvenção e a condenação da Autora como litigante de má fé nos termos supra referidos.

A respondeu nos termos de fls. 89 e ss., peticionando a improcedência da reconvenção e do pedido de condenação por litigância de má fé deduzido pela ré e concluindo como na petição inicial.

Verificada a regularidade da instância, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após a qual o tribunal respondeu à matéria de facto controvertida nos autos nos termos que constam de fls. 192 ss.

Foi, por fim, decidida a causa, julgando-se a acção não provada e improcedente com a consequente absolvição da Ré “C………….. …” do pedido, outrossim se julgando procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido nos autos com a condenação da Autora "B……………..,…” a pagar à Ré a quantia de 688,00 euros, acrescidos de juros de mora”.
Mais foi a autora “B………….. ,…” condenada, “como litigante de má fé, na multa equivalente a 5 Uc's e em indemnização a pagar à Ré, a fixar oportunamente, …”.

Inconformada com a condenação por litigância de má fé, veio recorrer a autora, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
A. A agravante alegou os factos que consubstanciam o seu direito de crédito sob aqui agravada, na P. 1. e na resposta à contestação.
B. O facto de a agravante não ter conseguido provar a dinâmica dos factos, não equivale a que a mesma tenha litigado de má-fé.
C. Não é uma qualquer actuação por parte de uma das partes que pode ser qualificada com litigância de má-fé, necessário se torna que a parte ao agir tenha consciência que tal uso do processo é contrário à lei.
D. Não é possível enquadrar a actuação da agravante no decurso dos presentes autos em qualquer uma das circunstâncias tipificadas no artigo 456.°, n.° 2 do Código de Processo Civil, nomeadamente na sua alínea b), assim como, também não é possível inferir da actuação da agravante que esta actuou com dolo ou negligência grave, tal não é possível pela simples razão de que este sempre pautou a sua conduta processual em obediência aos cânones legais.
E. Devido à ausência de censurabilidade da conduta da agravante, não deve a mesma ser considerada litigante de má-fé, e, por conseguinte não lhe deverá ser aplicada qualquer multa.
F. A agravante não deduziu pretensão cuja falta de fundamento não deveria de ignorar, nem tão pouco alterou a verdade de factos ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa.
G. Ao intentar a acção a agravante estava tão somente a exercer um direito, que lhe é reconhecido por lei, e contra quem, que na sua modesta opinião, é responsável pelo crédito.
H. A agravante não logrou em sede de audiência de discussão e julgamento provar a sua versão dos acontecimentos, razão pela qual a acção foi improcedente.
1. Não é possível deduzir que a falta de prova de factos, ainda que de natureza pessoal, e a consequente improcedência da acção, equivale à litigância de má fé por qualquer uma das partes, no caso em apreço não por parte do apelante.
J. A Meritíssima Juiz a quo relevou o depoimento de algumas das testemunhas e desvalorizou o depoimento de outros, designadamente, o depoimento prestado pelas testemunhas arroladas pelo aqui agravante, razão pela qual, a agravante não conseguiu provar os factos que alegou no seu petitório inicial.
K. Apesar da Meriitíssima Juiz gozar de um poder de livre apreciação da prova Como resulta do artigo 655.° do Código de Processo Civil, não pode esta sobrevalorizar, como fez, o depoimento de uma das testemunhas, e em detrimento do depoimento das demais, que foi exactamente o que aconteceu nos presentes autos.
L. Tudo o deixado exposto evidencia o desajuste da decisão recorrida.
M. Foram violados, entre outros, o art. 457.° Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA POR UMA QUE ABSOLVA A AGRAVANTE DO PEDIDO LITIGANTE DE MÁ FÉ”.

O Mmº Juiz a quo sustentou a decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO.
II.1. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
-- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

A única questão suscitada no agravo consiste em saber se não deveria ter lugar a condenação da autora como litigante de má fé.

II.2. OS FACTOS:

Após produção da pertinente prova, foi no tribunal a quo dada como assente a seguinte factualidade:
1ª- A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à área da cosmética médica.
2ª- A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços na área de saúde e bem estar, oferecendo aos seus clientes vários tipos de tratamentos, de carácter médico, estético e cosmético.
3.°- No exercício da sua actividade, a Autora, através da sua vendedora, convidou a Ré, na pessoa da sua gerente, a participar num curso teórico/prático sobre cosmética médica e o sistema de electroporação "TMT System", a ter lugar em …….., no Hotel …………….
4.°- De acordo com o convite escrito da Autora, datado de 09/07/06, no dia 10 de Setembro de 2006, o curso seria destinado a profissionais ligados ao mundo da medicina estética, que pretendessem adquirir, aperfeiçoar e melhorar os seus conhecimentos e no dia 11 haveria lugar um curso no mesmo local, para "clientes meso system TMT".
5.°- A gerente da Ré compareceu no dia 11 de Setembro e participou no referido curso, tomando notas e efectuando diversas questões.
6.° - Durante o curso referido em 5), a gerente da Ré efectuou diversas questões sobre o tema objecto em análise, designadamente colocando a questão sobre se os fármacos utilizados, após serem absorvidos pela pele entravam ou não na corrente sanguínea.
7.ª - Na mesma data e local, pouco antes do início do referido curso, a gerente da Ré assinou o "contrato de reserva" relativo à compra de um aparelho " TMT System”, pelo valor global de 6.879,50 euros, acrescidos de IVA, tendo entregue à Autora, a título de sinal, a quantia de 688,00 euros.
8.° - De acordo com o referido contrato de reserva, "em caso de cancelamento injustificado da compra, devolve-se unicamente 50% do valor da reserva".
9.° - Refere ainda o dito contrato que a entrega do aparelho seria em Setembro/Outubro de 2006;
10.°- Após a data referida em 5), a Ré, na pessoa da sua gerente e seus colaboradores, efectuaram diversas pesquisas na Internet, contactaram colegas de profissão e médicos e acabaram por concluir ser fisicamente impossível que os fármacos uma vez absorvidos pela pele, não entrassem na corrente sanguínea.
11 .°- Face a tais receios e a conselho da vendedora da Autora, a gerente da Ré decidiu visitar o stand da Autora na FIL, a realizar em Lisboa nos dias 30109/06 e 01/10/06.
12.° - Na sequência da referida visita ao stand da Autora e por não ter ficado convencida com as respostas que aí lhe foram dadas às questões que efectuou a D……………, designadamente à questão referida nos itens 6 e 10), a gerente da Ré comunicou ao mesmo, que se encontrava no dito stand, que por tal motivo e porque o aparelho não se adequava aos interesses e actividade da Ré, pretendia cancelar a compra do aparelho.
13.°- Alguns dias depois, a vendedora da Autora deslocou-se às instalações da Ré para entregar o aparelho e a gerente da Ré reiterou-lhe que não estava interessada na compra do mesmo e aguardava a devolução do sinal entregue.
14.° -Após várias tentativas de contacto telefónico, a Ré, através da respectiva mandatária, enviou à Autora e esta recebeu, uma carta datada de 17/10/2006, onde solicita a devolução do sinal entregue, alegando ser devida tal devolução em virtude da Ré ter desistido justificada mente da compra do aparelho, pelo motivos referidos no item 12.
15.ª- Algum tempo depois da referida carta foi enviada à Ré pela Autora a factura n.° 2006/62213, datada de 10/10/2006, relativa a um "curso de formação TMT System", pelo valor de 1.210, 00 euros.
16.ª - Posteriormente à referida factura a Autora enviou ainda à Ré uma factura datada de 17/10/2006 e com o valor de 416,24 euros, que a Ré impugnou.
17.ª - Apesar de interpelada para o efeito a Ré não liquidou a factura referida no item 15.9.
18.9 Das diversas pessoas que frequentaram o curso do dia 11 de Setembro de 2006, nenhuma delas pagou o referido curso.
19.ª - O aparelho identificado no item 7.9 não chegou a ser entregue à Autora.

Refre-se, ainda, na sentença que não se provaram os seguintes factos:
a) que a presença da Ré no curso realizado no dia 11 tivesse ficado condicionada à aquisição pela mesma do aparelho "TMT System";
b) que nessa data tivesse sido comunicado à Ré que caso não adquirisse o aparelho teria que pagar o valor do curso;
c) que o referido curso tivesse o preço de 1.210,00 euros (IVA incluído);
d) que quando frequentou o referido curso a Ré soubesse que o mesmo iria ser pago;
e) que a Ré tivesse acordado com a Autora que frequentaria o curso do dia 11, mediante o pagamento do respectivo preço;
f) que a referida factura devesse ser paga na data da sua emissão ou qualquer outra;
g) que a Ré tivesse pago à Autora a quantia de 271,76 euros, por conta do preço do referido curso ou a qualquer outro título;
h) que a Ré deva à Autora a quantia de 938,24 euros ou qualquer outra;
i) que o curso de formação do dia 11 de Setembro fosse apenas para clientes que já possuíssem o aparelho "Meso System TMT";
j) que na data do curso frequentado pela gerente da Ré, lhe tivesse sido dito por qualquer pessoa da Autora que as informações só seriam prestadas após a aquisição do aparelho;
1) que os fármacos utilizados no sistema de electroporação efectuado pelo aparelho "Meso System TMT", após terem sido absorvidos pela-pele não entrem na corrente sanguínea;
m) que quando foi ao curso de formação do dia 11 de Setembro a gerente da Ré não tivesse qualquer interesse em adquirir o aparelho supra referido e quisesse apenas obter informações à custa do trabalho da Autora;
n) não se provaram quaisquer outros factos, para além dos dados como provados, com interesse para a boa decisão da causa.”

III. O DIREITO:

Apreciemos, então, a questão suscitada pela agravante, que consiste, como referido, em saber se não deveria ter a Autora sido condenada por litigância de má fé.

No artº 266º-A do CPCivil consagra-se o chamado "dever de boa-fé ou de probidade processual".
A mais grave violação desses deveres constitui justamente a litigância de mà fé, cujos contornos se acham definidos no artº 456º daquela lei adjectiva civil.
Nos termos do disposto no nº 2 do artº 456º do CPCivil, diz- se litigante de fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão de impedir a descoberta da verdade".
A má fé é sancionada com condenação em multa e indemnização à parte contrária, se esta o requerer – nº 1 do citado preceito.
O quantitativo da multa vem previsto no artº 102º, al. b), do C. C.J.
Por outro lado, a indemnização pode consistir no reembolso das despesas a que a má fé deu causa, aqui se incluindo os honorários do mandatário.

O dever de litigar de boa-fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos art.s 266º e 266º-A do C.P.C.º para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respectivas partes.
Se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má-fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má-fé.
Mas tem-se entendido que tal sanção apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, cujo fim último é a busca em descobrir a verdade e cumprir a justiça, como também ao seu antagonista no processo.
E esta actuação da parte, conforme se vinha entendendo na doutrina e Jurisprudência[1], exige que haja dolo ou negligência grave do actuante.

Na redacção dada ao artº 456º do CPCivil, antes da última revisão (DL nºs. 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/09), existia uma "intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas com leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético).
Não bastava a imprudência, o erro, a falta de justa causa. Era necessário o querer e o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais. No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecia - dolo directo - ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial - dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável[2]
O regime instituído após a última reforma do direito processual civil traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva. A condenação por litigância de má fé pode fundar-se, além de numa situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave.
No entanto, esta concepção explícita agora de litigância de má-fé não se pode confundir com erro grosseiro, com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer.
Mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má-fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador e para existir condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.

Na decisão recorrida entendeu-se, no essencial, que a autora deduziu contra a ré pedido de pagamento de serviços prestados quando sabia não serem devidos, “por tal pagamento não ter sido acordado entre as partes ou comunicado à Ré (antes da frequência do curso). Além de que “pretendeu fazer crer em audiência que a Ré só manifestou interesse na aquisição do aparelho para frequentar o curso e desistiu para ir comprar um aparelho em empresa concorrente”.

Discordamos da decisão recorrida, ao condenar a agravante como litigante de má fé.

Com efeito, é certo que pode entender-se, até, haver nos autos alguns indícios de que a conduta processual da autora não tenha sido a mais correcta, nomeadamente, considerando que a autora alegara que a ré já pagou por conta do preço dos serviços (curso) a quantia de 271,76€, quando a ré lhe tinha entregue 688,00€ a título de sinal para a compra do aparelho, bem assim considerando o alegado e provado de alguma forma atinente à questão de saber se a autora sabia, ou não, que o curso era fornecido gratuitamente.
No entanto, estando em causa, essencialmente, a questão da exigência do preço dos serviços prestados pela autora -- consubstanciados na possibilidade concedida à ré de frequência do aludido curso --, a verdade é que o que os autos patenteiam é tão somente -- e, repete-se, independentemente da convicção com que possamos ficar sobre a conduta processual da agravante, pois uma coisa é uma mera convicção, outra (bem diferente) a sua sustentação em factos… provados -- a existência de um conjunto de factos alegados pela autora mas que esta não logrou provar-- e de que se não provou o contrário --, parecendo-nos que é fundamentalmente desta falta de prova que a decisão recorrida acaba por extrair a conclusão de conduta processual da autora a justificar a sua condenação por litigância de má fé.

Lembra-se que, como é pacificamente aceite-- a falta de prova a um quesito (ou a um facto relevante controvertido, a provar nos autos, entenda-se), ou resposta negativa, significa que os factos constantes de tal quesito têm de entender-se como não alegados, sequer. Ou seja, apenas significa não se terem provados tais factos controvertidos e não que se tenham demonstrado os factos contrários.
O que vale para dizer que não é legítimo extrair da simples falta de prova de factos alegados pela autora a conclusão de que litigou com má fé, por se entender que, nessa situação, .…é verdadeira a versão contrária!

Vejam-se alguns excertos da decisão recorrida:
Ali se diz que “ Nenhuma prova se apurou no sentido de que este curso”-- o tal de que a autora pretende ver-se ressarcida por via destes autos -- “fosse a pagar ou que tal tivesse sido acordado entre as partes ou comunicado à ré”.
Mas também se não provou o contrário!, não sendo verdade o que na sentença se refere -- que, “pelo contrário, segundo se apurou, a gerente da ré frequentou o curso a convite da Autora e gratuitamente”.
Que foi a “convite”, está provado (cfr. facto provado sob o nº 3º). Mas que fosse gratuitamente já não resulta (claro) dos factos provados.

Também ali se refere que “ao contrário do que a autora alegou, nenhuma prova foi feita de que a Ré apenas pretendesse obter os ensinamentos do curso e pretendia adquirir ou tenha mesmo adquirido uma máquina semelhante em empresa concorrente”.
Mas também se não provou o contrário do alegado pela autora!

O mesmo se diga, mutatis mutandis, no que tange à afirmação vertida na sentença, de que “nenhuma prova foi feita ou sequer alegado que tinha sido comunicado à Ré que tinha que pagar o curso caso desistisse do negócio”.

Ou seja, tudo se resume, afinal, a uma questão de falta de prova por banda da autora relativamente à factualidade atinente às circunstâncias que alegara relativamente ao aludido curso em que fundamenta o direito de crédito sobre a ré: Nada se provou sobre o que foi, afinal, acordado entre as partes quanto à eventual exigência de pagamento do curso, quanto às intenções da ré ao frequentá-lo, etc., etc….
E assim sendo, não se vê como condenar a Autora como litigante de má fé.

Com efeito, como supra referimos, a concepção de litigância de má fé subjacente à aludida reforma processual civil “não se pode confundir com erro grosseiro, com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer.”.

No caso sub judice, como vimos, está-se perante uma situação em que o decaimento da autora/agravante parece ter sobrevindo apenas por mera fragilidade da sua prova e por, por isso mesmo, não ter logrado convencer da realidade por si trazida a tribunal.
Assim, portanto-- como vem sendo reiterado por inúmeros Acórdãos[6] e já várias vezes temos sustentado --, não constitui má fé a improcedência da acção proposta por inexistência de prova de factos alegados, antes se impondo a prova de outros factos em oposição aos pessoais alegados. Não é, na verdade, por se não ter provado determinada matéria de facto alegada por uma parte que se pode concluir pela litigância de má fé dessa parte[7].
Dito de outra forma: não é possível deduzir que a (mera) falta de prova de factos alegados, ainda que de natureza pessoal, e a consequente improcedência da acção, equivale à litigância de má fé por banda da parte que os alegara e sobre quem incidia o respectivo onus probandi .

Não pode, assim, proceder a condenação da autora como litigante de má fé, sob pena de -- como (de forma bem expressiva) se escreveu no Ac. do STJ, de 27.02.2003, in Cadernos de Direito Privado, nº3, pág. 55-- “… se coarctar o legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o regime jurídico que os enquadram, por mais minoritárias (em termos jurisprudenciais) ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas”.

Procede, assim, a questão suscitada pela agravante nas conclusões das suas alegações de recurso.

CONCLUINDO:
● A simples falta de prova de factos alegados, ainda que de natureza pessoal, com a consequente improcedência da acção, não permitem concluir pela litigância de má fé por banda da parte que os alegara e sobre quem impendia o respectivo onus probandi, sob pena de se estar a coarctar o legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o regime jurídico que os enquadram, por mais minoritárias (em termos jurisprudenciais) ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas.

3. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida na parte em que condenou a Autora/Agravante como litigante de má fé.

Sem custas.

Porto, 13 de Março de 2008
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
____________
[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 343 e Alberto dos Reis, Código Proc. Civil Anotado, II, pág. 259 e Ac. Rel. de Lisboa de 09.01.97, Col. Jur., Ano XXII, Tomo I, pág. 88.
[2] Menezes Cordeiro; “Da Boa Fé no Direito Civil", I, Almedina, 1984, pág. 380.
[3] Cfr. Ac. STJ de 20.06.90, citado por Abílio Neto, anotações ao artº 456º.
[4] Cfr. v.g., Ac. Rel. Porto de 14.04.94, Cil. Jur 1994-II-213 e Jur. e Doutrina ali referidas.
[5] Ainda, os Acs. STJ de 8.2.66, 28.5.68,30.10.70,11.6.71,23.6.73,5.6.73,23.10.73,4.6.74, in Bol. M.J., respectivamente, 154-304,177-260,200-254,208-159,218-239,228-195,228-239 e 238-211.
[6] Veja-se, v.g., o da Rel. do Porto, de 09.05.2006, in DGSI.PT
[7] Sobre a matéria, e no sentido ora exposto, pode ver-se ainda os Acs. desta Relação do Porto, de 12.05.2005 e da Relação e Coimbra, de 30.04.2002, no mesmo site da dgsi.pt.