Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0622574
Nº Convencional: JTRP00039693
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: HERANÇA JACENTE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP200611070622574
Data do Acordão: 11/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 230 - FLS. 156.
Área Temática: .
Sumário: I - Aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à "herança jacente" (art° 2046° C.Civ.) e quem poderá intervir como parte em processos judiciais são os titulares da herança, sem prejuízo das situações que cabem no âmbito de competências ou atribuições do cabeça-de-casal.
II – A habilitação dos sucessores da parte falecida ou extinta deve ser promovida no processo através do adequado incidente (art° 371° n°1 C.P.Civ.), a não ser que o Requerente se apresente em juízo, no incidente de oposição à penhora, invocando logo a respectiva legitimidade como habilitação.
III – O acordo de pagamento traduzido na adjudicação de bens relacionados ao credor da herança (art° 1357° C.Civ.) consubstancia um acto de disposição dos bens penhorados, praticado pelos herdeiros e executados, que viola a penhora anterior dos bens, nos termos do art° 819° C.Civ.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo incidental de oposição à penhora nº …..-C/2001, da Comarca de Miranda do Douro.
Agravante/Oponente – B……….., menor, representado por sua mãe C………….
Agravada/Exequente – D………., Ldª.

Tese da Oponente
O Oponente foi demandado na execução na qualidade de herdeiro da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai E……….. .
Acresce que o menor é também credor da herança, por força de sentença judicial e a título de pensões de alimentos, despesas de saúde e indemnização por litigância de má fé, no montante de € 9 945,37.
Tais quantias são impenhoráveis – artº 2008º nº2 C.Civ.
Ora, conforme se constata do mapa de partilha no inventário por óbito do pai do Oponente, a herança referida é insolvente e os bens foram adjudicados ao ora Oponente na qualidade de credor da herança e não na qualidade de herdeiro.
O crédito do Exequente foi constituído em momento posterior ao crédito do Oponente.

Despacho Liminar Recorrido
Com fundamento em que a executada nos autos é a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de E………. (e não o Oponente, enquanto pessoa individual), acrescendo que à data da apresentação em juízo da Oposição não havia sido proferida sentença homologatória da partilha, e acrescendo ainda que ao Oponente restava deduzir incidente de embargos de terceiro (que não o concreto meio incidental dos autos), a Mmª Juiz “a quo” indeferiu liminarmente o deduzido incidente.

Conclusões do Recurso de Agravo:
1 – Inconsistência entre o conteúdo do despacho e a fundamentação legal dos motivos do indeferimento, uma vez que a sua motivação não é inequivocamente contemplada pelos artigos alegados no despacho: “motivo pelo qual, sem necessidade de outras considerações se impõe concluir pelo indeferimento liminar da pretensão de B………, ao abrigo dos artºs 863º-A nº1, 863º-B nº2 e 817º nº1 al.c) C.P.Civ.
2 – Não cumprimento do disposto no artº 820º, com referência ao artº 812º nº2 al.b) “a contrario” e nºs 4 e 5 do mesmo, e ainda artºs 265º nºs 2 e 3, 508º nº1 als. a) e b), 494º al.e) e 495º C.P.Civ. – inobservância do princípio do poder-dever do Juiz de corrigir erros e suprir irregularidades susceptíveis de sanação.
3 – Nos termos do artº 56º C.P.Civ. existem desvios à regra geral da determinação da legitimidade da acção executiva que teriam necessariamente de ter sido considerados no despacho e impõem uma decisão oposta à constante do despacho recorrido.
4 – A partilha no pº de inventário nº……/02 encontra-se homologada por sentença desde 18/2/2006, pelo que a herança deixou de ser indivisa e os bens penhorados pertencem e encontram-se adjudicados ao menor B………., pelo que se deixaram de verificar os fundamentos alegados pela Mmª Juiz como fundamento do seu despacho.

Factos Apurados
Encontram-se provados os factos supra resumidamente descritos e relativos à tramitação processual, para além das posições assumidas no processo pelo Agravante e teor da decisão judicial impugnada.
Mais se prova que:
Nos autos de execução nº…..-A/2001, de que os presentes autos são apenso, foram penhorados diversos bens móveis e direitos (nomeadamente o saldo de depósitos bancários, seguro do ramo vida, plano poupança reforma e títulos de crédito), bens esses e direitos também relacionados no inventário por óbito de E………...
Tal penhora data de 17/3/2004, para os móveis; no que respeita aos direitos, os ofícios para notificação das entidades bancárias e seguradoras dataram de 17/2/2004; todas as ditas entidades acusaram a recepção da notificação, no máximo até finais de Abril de 2004.
No dito processo de inventário, a Conferência de Interessados realizou-se em 3/5/2004 e o mapa de partilha foi elaborado em 6/7/2004. Desse mapa constava que os bens agora penhorados seriam adjudicados ao ora Oponente.
A sentença homologatória da partilha foi proferida em 18/1/2006.
No inventário, os bens penhorados na execução foram assim adjudicados ao ora Oponente, que interveio no Inventário na qualidade de interessado e de credor da herança.
O Oponente foi citado para os termos da execução e da penhora em 29/7/2004.
A presente Oposição à penhora deu entrada em juízo em 12/11/2004.

Fundamentos
A pretensão do Agravante resume-se ao questionar de dois itens, sob cujos ângulos entende impugnar o despacho recorrido:
- em primeiro lugar, o não cumprimento do disposto nos artºs 820º e 812º nº4 C.P.Civ., por inexistência de convite, por parte da Mmª Juiz “a quo” no sentido da sanação da ilegitimidade do Oponente, ilegitimidade que a Mmª Juiz tenha invocado;
- em segundo lugar, o facto de o despacho recorrido não ter levado em conta que a partilha no pº de inventário nº…/02 se encontra homologada por sentença desde 18/2/2006, pelo que, ao contrário do invocado no despacho recorrido, a herança já não é indivisa e os bens penhorados pertencem agora e encontram-se adjudicados ao Oponente.
Vejamos então.

I
A primeira questão suscitada mostra-se, ela sim, incompreensível.
Por remissão do artº 820º C.P.Civ., o artº 812º nº4 C.P.Civ. é aplicável à oposição à execução. Da conjugação do disposto nos aludidos normativos, conclui-se que o juiz deve convidar o oponente a suprir as irregularidades do requerimento de oposição, bem como a sanar a falta de pressupostos, aplicando-se o disposto no artº 265º nº2 C.P.Civ.
O Oponente deduziu o incidente de “oposição à penhora” regulado nos artºs 863º-A e 863º-B C.P.Civ. Não obstante, pretende valer-se de uma norma que rege apenas para o incidente de oposição à execução, nanja para o concreto incidente suscitado, nem sequer por remissão de qualquer das normas dos artºs 863º-A e 863º-B citados.
Acresce que existe uma incompatibilidade manifesta entre os pressupostos da alegação do Oponente, de um lado, e a fundamentação do despacho recorrido, do outro - do ponto de vista da matéria invocada no requerimento de oposição, o interesse processual na oposição à penhora é do Oponente e apenas dele, já que, segundo alega, o bem lhe foi adjudicado no inventário por morte de seu pai; do ponto de vista sustentado no despacho recorrido, só a “herança ilíquida e indivisa” contra quem foi proposta a execução pode opor-se à penhora (artº 863º-A nº1 C.P.Civ.).
Não se vê como compatibilizar duas visões opostas, sendo certo que se tratariam de legitimidades excludentes, à face do conceito estrito de legitimidade que, para a execução, nos é fornecido pelo disposto no artº 55º nº1 C.P.Civ. – executado rectius pessoa com legitimidade para a execução e para a oposição à penhora, na tese do despacho recorrido, só pode ser quem tem legitimidade para a execução.
Não tendo tal legitimidade o ora Oponente, podia a Mmª Juiz “a quo” declará-lo, sem possibilidade de sanação, como declarou, isto a considerarmos as estritas normas invocadas pelo mesmo Oponente.

II
Interessa porém nesta instância indagar verdadeiramente se a herança indivisa, que no processo figura como “executada”, já não é verdadeiramente “indivisa”, porque haja sido proferida sentença final no inventário por óbito do pai do Oponente, constituindo os bens penhorados, neste momento, propriedade do Oponente, para além do mais por lhe terem sido adjudicados no falado inventário, e qual a relevância desse facto para o mérito da Oposição.
É adquirido que a execução de que os presentes autos são apenso foi proposta apenas contra a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de E………...
Desconhece-se a razão por que o foi (os autos principais não subiram, como não tinham de subir, com o presente recurso).
A verdade é que a lei adjectiva apenas atribuiu personalidade judiciária, possibilitando-lhe demandar e ser demandada, à “herança jacente”, conforme artº 6º al.a) C.P.Civ.
A herança jacente corresponde à “herança cujo titular não esteja determinado”, que constava da anterior redacção do citado normativo.
Daí decorre que, aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à “herança jacente” (artº 2046º C.Civ.) e quem poderá intervir como parte em processos judiciais são os titulares da herança, sem prejuízo das situações que cabem no âmbito de competências ou atribuições do cabeça-de-casal – neste sentido, entre muitos outros, cf. Ac.R.L. 26/2/02 Col.I/119, Ac.R.P. 6/1/03 Col.I/165, Ac.R.P. 28/9/00 Bol.499/383, Ac.R.P. 4/12/98 Col.V/211 e Ac.R.C. 27/9/95 Bol.449/450.
Ora, mostra-se inequívoco que, independentemente de, à data da proposição do presente incidente de oposição à penhora, ter sido ou não ter sido ainda proferida sentença final no processo de inventário, homologatória da partilha realizada, a herança se mostrava inequivocamente aceite, designadamente pelo ora Requerente e Agravante e outros herdeiros identificados, para efeitos do disposto nos artºs 2031º, 2032º e 2050º nº1 C.Civ.
Tinha cessado qualquer meramente eventual jacência da herança (que se invoca apenas por rigor de raciocínio) e, para todos os efeitos, qualquer questão a discutir relacionada com os direitos transmitidos deveria ter como interlocutor o sucessor – cf. Ac.R.L. 26/2/02 cit.
Contra este entendimento poder-se-ia esgrimir a perspectiva, meramente formal, de que a letra do artº 863º-A (corpo da norma) inculca que só o executado pode suscitar o incidente de oposição à execução.
Não pode olvidar-se, porém, que a sucessão no direito ou na obrigação, universal (como aquela que é realizada mortis causa) ou singular (como a que provém de transmissão ou cessão do direito ou da coisa), também acolhe previsão legal no âmbito da acção executiva – cfr. artº 56º nº1 C.P.Civ.
E se é verdade que a habilitação dos sucessores da parte falecida ou extinta deve ser promovida no processo através do adequado incidente (artº 371º nº1 C.P.Civ.), não é menos verdade que o Requerente se apresentou em juízo, no incidente de oposição à penhora, através do que é conhecido como habilitação-legitimidade (ut J. Alberto dos Reis, Anotado, I/pg.574), pois que alega directamente no requerimento inicial assumir a qualidade de herdeiro da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai.
Acresce um outro argumento, em nada despiciendo: a herança, para ter sido demandada, por via de possuir personalidade judiciária, encontrando-se jacente, devia ter assegurada no processo a respectiva representação, designadamente pelos seus administradores (Teixeira de Sousa, Estudos, pg.147) ou ainda, caso esses administradores não existissem, por curador especial (artº 2048º nº1 C.Civ.).
Ora, nada disso aconteceu no processo, tendo o ora Agravante sido citado para a execução na sua qualidade de herdeiro de uma simples “herança ilíquida e indivisa”, que não de uma “herança jacente”.
Nessa qualidade de titular da herança, era e é ao herdeiro que incumbe ser parte e exercer os direitos de parte, como supra se referiu.
Também se não pode acompanhar o despacho recorrido na parte em que invoca que ao Agravante cabia antes a dedução de embargos de terceiro – se tal se aceitava na redacção do Código anterior a 95 (artº 1037º nº2 C.P.Civ.61), essa interpretação é hoje manifestamente de considerar afastada, cabendo ao executado exercer os direitos que o normativo lhe atribuía na oposição à penhora (cf., entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao Código, artº 351º, nota II).

III
Existe porém um ponto fulcral do despacho recorrido que não podemos deixar de acompanhar – referimo-nos àquela parte em que se salienta que, na data da apresentação em juízo da Oposição, não havia sido proferida sentença homologatória da partilha, logo não havia sido transferido para os herdeiros e credores o domínio sobre os bens objecto de partilha.
E tal asserção releva não tanto para se insistir, como a Mmª Juiz “a quo”, na existência de um património autónomo, oposto ao património do Oponente, mas antes para que se possa chamar a atenção para o disposto no artº 819º C.Civ., normativo pelo qual “sem prejuízo das regras de registo, são ineficazes em relação ao Exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados”.
Como refere Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pgs. 154 e 155, “a regra tem aplicação indistintamente a todos os actos de disposição ou cessão, translativos ou constitutivos, seja de direitos reais de gozo ou de garantia, ou extintivos do crédito (compensação, novação, renúncia, perdão, etc.). Compreende ainda as próprias constituições de direitos de carácter não real, como locações e semelhantes”.
E, mais à frente, elucidativamente: “Não interessa à aplicação da regra a fisionomia ou a estrutura do acto, conquanto envolva transmissão de direito, v.g., transacção, amortização de quota, partilha, divisão, nem a sua natureza extrajudicial ou judicial, estendendo-se por isso às próprias transacções e partilhas ou divisão de coisa comum judicialmente feitas, bem como às sentenças proferidas contra o executado”.
Note-se como a penhora invocada é anterior quer ao acto de adjudicação de bens ao Oponente (na qualidade de credor da herança) em Conferência de Interessados, quer à sentença homologatória da partilha, pese embora se deva reconhecer que é a sentença judicial transitada, pela sua própria natureza, que torna definitivo qualquer acto que tenha integrado a partilha.
Por outro lado, o Exequente não interveio no inventário, bem como o crédito ora reclamado por execução não foi aí reconhecido como dívida passiva (única hipótese em que a partilha poderia ter sido oposta ao Exequente – ut Ans. de Castro, op. e loc. cits).
Por outro lado ainda, o requerimento apresentado pelo credor para que o pagamento da dívida fosse efectuado através da adjudicação de bens que compõem o activo da herança deve ser encarada pura e simplesmente como uma proposta negocial efectuada pelo credor para o estabelecimento de um acordo sobre a forma de pagamento da dívida vencida e aprovada; aceite tal proposta, ficou formalizado o acordo entre credor e herdeiros sobre a forma de pagamento da dívida.
Desta forma, tal acordo de pagamento consubstancia um acto de disposição dos bens penhorados, praticado pelos herdeiros e executados, aqui obviamente enquanto únicos representantes da herança ainda ilíquida e indivisa, à data da penhora – neste sentido, cf. Ac.R.C. 25/10/05 Col.IV/33.
Saliente-se também, pelo facto de o Oponente se lhe referir neste recurso, que não se encontra em causa o próprio crédito de alimentos do Oponente, conquanto seja, como é, impenhorável. Não foi esse crédito o penhorado na execução, mas apenas os bens em que se materializou o pagamento do crédito do Oponente, o que são realidades bem diversas.
Finalmente, saliente-se a latere (não constitui objecto do recurso, pois que a decisão recorrida não graduou quaisquer créditos) que o crédito de alimentos do Recorrente não goza de um eventual privilégio na execução, designadamente sobre a penhora.
Os créditos por alimentos que gozam de privilégio mobiliário geral são apenas os referidos no artº 737º nº1 al.c) C.P.Civ., abrangem apenas o sustento, que não a habitação, o vestuário ou a instrução referidos no artº 2003º C.Civ., e o crédito a que foi dado pagamento no inventário, reportando-se à condenação judicial de fls. 26 dos presentes autos (datada de 17/4/2001) é muito anterior aos “últimos seis meses” (artº 737º nº1 al.c), contados da data da penhora.
Concluiremos apenas que a eventual existência de bens não abrangidos pela concreta penhora, mas adjudicados em inventário ao ora Oponente, em nada prejudica a dita adjudicação (isto se refere nesta altura, pois que, aparentemente, os bens adjudicados, como demonstrado a fls. 19, 20 e 21 deste apenso, excedem os concretos bens penhorados na execução).
O acervo de razões supra permite-nos concordar com o sentido decisório do despacho recorrido, apontando para a manifesta inviabilidade da pretensão deduzida.

Resumindo a fundamentação:
I – Aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à “herança jacente” (artº 2046º C.Civ.) e quem poderá intervir como parte em processos judiciais são os titulares da herança, sem prejuízo das situações que cabem no âmbito de competências ou atribuições do cabeça-de-casal.
II – A habilitação dos sucessores da parte falecida ou extinta deve ser promovida no processo através do adequado incidente (artº 371º nº1 C.P.Civ.), a não ser que o Requerente se apresente em juízo, no incidente de oposição à penhora, invocando logo a respectiva legitimidade como habilitação.
III – O acordo de pagamento traduzido na adjudicação de bens relacionados ao credor da herança (artº 1357º C.Civ.) consubstancia um acto de disposição dos bens penhorados, praticado pelos herdeiros e executados, que viola a penhora anterior dos bens, nos termos do artº 819º C.Civ.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação:
No não provimento do agravo, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo Agravante.

Porto, 07 de Novembro de 2006
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves