Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0721517
Nº Convencional: JTRP00040276
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
ACTO ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP200704240721517
Data do Acordão: 04/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 247 - FLS 87.
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos dos artºs 212º, nº 3 da CRP e 1º, nº 1 do ETAF, compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas, isto é, aqueles que emergem de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
II – Emerge de relações jurídicas disciplinadas por normas de direitos administrativo a possibilidade de determinar a causalidade para a ocorrência de determinados danos no património e na exploração de um estabelecimento comercial de um acto administrativo consistente no despejo administrativo do prédio onde o estabelecimento se encontrava instalado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo em separado interposto na acção com processo declarativo e forma ordinária nº…./05.6TVPRT, da .ª Vara Cível do Porto.
Interveniente Principal pelo Lado Passivo / Agravante – Câmara Municipal ………. .
Agravados / Autora – B………., Ldª, e Réus – Rede Ferroviária Nacional, Refer, EP, e C………. .

Pedido
Que a 1ª Ré seja condenada:
1 – A proceder à realização de todas as obras de reparação necessárias ao normal funcionamento do restaurante da Autora, reconstituindo a sua situação anterior aos alegados factos danosos e, designadamente, às obras seguintes:
i) Reparação das fendas e fissuras nas paredes estruturais do mesmo;
ii) substituição do tecto falso;
iii) substituição do pavimento existente;
iv) substituição dos tubos de esgoto danificados;
v) verificação da origem das infiltrações de água no pavimento junto às paredes e injecções de selagem e respectivo conserto;
vi) reparação do mobiliário danificado, designadamente portas, balcão e armários;
vii) demolição da parede do painel de azulejo, verificação das infiltrações de água na mesma e respectivas injecções de selagem e reparações adequadas.
2 – Pagar à Autora a quantia de € 4.200, referente à troca do sistema de esgotos, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados da citação até integral pagamento.
3 – Pagar à Autora a quantia de € 5.245, a título de danos patrimoniais resultantes da danificação de móveis e equipamentos, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados da citação, até integral pagamento.
4 – Pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar posteriormente, nos termos do artº 378º C.P.Civ., relativamente aos restantes danos causados em outros equipamentos e que a Autora não pode quantificar nesta altura.
5 – Indemnizar a Autora pelos lucros cessantes resultantes da privação parcial do uso do restaurante, que deverá ser quantificado em valor não inferior a € 200/dia, desde Janeiro de 2004 a 14/6/04 (165 dias), o que perfaz a quantia de € 33 000, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados da citação, até integral pagamento.
Que ambos os RR. sejam solidariamente condenados a pagar à Autora:
1 – A quantia de € 1.291, a título de danos patrimoniais relativos ao plano de publicidade, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
2 – A quantia de € 7.044,33, relativa aos consumíveis perdidos (“stock” de alimentos e bebidas), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
3 – A quantia de € 38.939,88, relativas a despesas fixas de Julho de 2004 até Julho de 2005, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
4 – A quantia de € 36.603,23, relativa a custos que terá na reabertura do seu estabelecimento comercial.
5 – A quantia de € 29.285,49, a título de lucros cessantes por privação total do uso, em virtude de não poder explorar o restaurante, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
6 – A quantia de € 2.252,73 por mês, a título de lucros cessantes pelos benefícios deixados de auferir por ter sido impedida de exercer a sua actividade comercial e até o imóvel estar disponível para reabertura ao público.
7 – A quantia de € 50.000, a título de danos morais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Tese da Autora
Dedica-se à indústria hoteleira e, desde Agosto de 1999, explorava um estabelecimento de restauração.
A Ré Refer foi a dona da obra designada por “empreitada de construção do interface Poente e acabamentos do terminal do ………. e da nova passagem inferior de peões, em ……….”.
Tal obra afectou no tempo a actividade do restaurante da Autora, até ao respectivo encerramento, em 14/6/04.
Na execução da dita obra, a Ré colocou um tapume em frente do restaurante da Autora e aí fez abrir uma vala; cobriu o acesso ao dito estabelecimento de “tout-venant”, facto que deixou intransitável o referido acesso.
A clientela do restaurante ficou reduzida a alguns trabalhadores da Refer.
As obras provocaram também diversos danos no interior do restaurante, por via, p.e., de inundações.
A Autora foi notificada pela Câmara Municipal ………., por despacho do Vereador do Pelouro, para despejar o local e bens nele existentes, o que se consumou na data supra indicada. Na verdade, o prédio onde a Autora tem o seu estabelecimento ameaçava ruína, na sua totalidade, por arrastamento do imóvel do 2º Réu, prédio contíguo, que se encontrava, este, em estado de ruína iminente, e se encontrava, já em data anterior às obras, em avançado estado de degradação.
Invoca danos emergentes e lucros cessantes derivados das ocorrências e responsabilidades supra relatadas.

Citada a Ré Refer, veio a mesma apresentar Contestação, na qual requereu a intervenção principal da ora Agravante Câmara Municipal, alegando em síntese ter sido aquela autarquia a ordenar o despejo da Autora e serem alguns dos danos pela Autora alegados também decorrentes desse facto.
A intervenção requerida foi admitida pela Mmª Juiz “a quo”.
No articulado que apresentou, a ora Agravante defende que o acto que a Ré Refer considera estar na origem de parte dos prejuízos que a Autora reclama – o despejo administrativo ordenado em 7/6/04 pelo Sr. Vereador do Pelouro do Urbanismo, Mobilidade e Desenvolvimento Social – foi praticado pela Interveniente Câmara Municipal no uso das suas competências administrativas e nas vestes do “jus imperii”.
Nesse sentido, excepcionou a incompetência em razão da matéria do tribunal comum para apreciar da responsabilidade da Interveniente nas ocorrências danosas invocadas pela Autora.

Despacho Recorrido
No pressuposto de que a Ré Refer visa com o chamamento (e porque o ordenamento jurídico prevê a solidariedade passiva no instituto da responsabilidade civil, ou seja, uma pluralidade de devedores) apurar se aquele acto administrativo concorreu ou não para os danos, e não se o acto é lícito ou não o é, questão que só pode ser apreciada pelos tribunais administrativos; e ainda porque o chamamento não visa a condenação da autarquia, mas apenas que a decisão final a proferir tenha, relativamente àquela, a eficácia de caso julgado relativamente à contribuição para os danos alegados pela Autora, independentemente de, a haver concorrência para a produção deles, serem os mesmos ou não indemnizáveis pela Câmara Municipal ………., questão que caberá à jurisdição administrativa, a Mmª Juiz “a quo” julgou o tribunal comum competente, em razão da matéria, para a acção.
Deste despacho vem interposto o presente recurso de agravo.

Conclusões do Recurso de Agravo (resenha):
A – O acto que a Ré Refer considera estar na origem de parte dos prejuízos que a Ré reclama – o despejo administrativo ordenado em 7/6/04 pelo Sr. Vereador do Pelouro do Urbanismo, Mobilidade e Desenvolvimento Social – foi praticado pela Recorrente no uso das suas competências administrativas e nas vestes do “jus imperii” – cf. artºs 89ºss. D.-L. nº 555/99 de 16/12, na redacção dada pelo D.-L. nº 177/01 de 4/6 (RJUE) e artº 64º nº5 als. a), b) e c) Lei nº 169/99 de 18/9, alterada e republicada pela Lei nº 5-A/2002 de 11/1.
B – O Tribunal “a quo” é portanto absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar o “grau de responsabilidade de tal acto administrativo nos efeitos da indemnização pretendida pela Autora”, tal como alega a Ré Refer para justificar o chamamento à acção da aqui Recorrente.
C – Isto porque a apreciação de tal questão implica necessariamente um juízo sobre: a legalidade do acto praticado pelo Sr. Vereador do Pelouro do Urbanismo, Mobilidade e Desenvolvimento Social; a responsabilidade civil extracontratual da Recorrente por um acto de gestão pública.
D – Ao julgar improcedente a excepção de incompetência material a Mmª Juiz “a quo” violou o disposto nos artºs 66º nº1, 101º, 105º nº1, 288º nº1 al.a), 493º nº2 e 495º C.P.Civ., 1º e 4º als. b), g) e h) ETAF e 13º CPTA.

Os Agravados não apresentaram contra-alegações.

Factos Provados
Encontram-se provados os factos atinentes à tramitação processual e demais alegações constantes do processo, para além do teor do despacho judicial impugnado, acima resumidamente expostos.

Fundamentos
A questão em causa no presente recurso cinge-se a saber se se verifica a incompetência em razão da matéria, por parte do tribunal comum, para conhecer da responsabilidade da Ré Câmara Municipal nos danos invocados pela Autora e cujo ressarcimento vem peticionado.
Vejamos pois.

A Interveniente Câmara Municipal exarou uma ordem de despejo administrativo.
A intervenção principal, quando requerida pelo Réu e admitida, é litisconsorcial ou coligatória (artºs 320º e 325º nº1 C.P.Civ.).
Dos autos não transparece a fundamentação da admitida intervenção – todavia, a Ré Refer foi demandada no petitório com base na prática de acto ilícito, consistente na ofensa do direito de propriedade da Autora sobre o respectivo estabelecimento comercial, acto esse praticado no decurso de determinadas obras de construção, contíguas ao prédio onde a Autora tinha instalado o seu estabelecimento de restauração.
Já a Interveniente Câmara viu admitida a dita intervenção com base na prática de um acto administrativo, qual haja sido o do despejo ordenado do prédio onde a Autora tinha instalado o respectivo estabelecimento. O pedido de intervenção foi formulado pela Ré Refer.
Encontramo-nos assim perante causas de pedir diversas, razão por que se nos afigura que a admitida intervenção principal o foi no quadro da intervenção principal coligatória – artº 30º nº2 C.P.Civ.
Seja como for, a Interveniente defende a incompetência do tribunal comum para conhecer da responsabilidade da Câmara Municipal derivada da prática de acto administrativo.
A Mmª Juiz “a quo”, porém, entende que o chamamento não visa a condenação da autarquia, mas a formação de caso julgado contra a mesma autarquia quanto à concorrência do acto para a produção dos danos, independentemente de tal apreciação poder conduzir, ou não, à indemnização da Autora por parte da Câmara Municipal, condenação que só caberá à jurisdição administrativa.
Não sufragamos o dito entendimento.
A consabida norma dos artºs 211º nº1 C.R.P., 66º C.P.Civ. e 18º nº1 L.O.F.T.J. atribui à jurisdição comum competência para as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Diz-se assim que a competência material dos tribunais judiciais possui natureza residual, sendo determinada de forma negativa: verificando-se que a causa de que em concreto se trata não cabe na competência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal comum (ut J. Alberto dos Reis, Anotado, I/201).
Nos termos do artº 212º nº3 C.R.P., compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Idêntica ideia é transmitida pelo artº 1º nº1 E.T.A.F. (Lei nº 13/2002 de 19/2, com entrada em vigor no dia 1/1/2004).
Daí que se possa afirmar que o factor atributivo da competência aos tribunais administrativos resida na verificação de uma relação jurídica administrativa – cf., por todos, Ac.R.P. 23/1/06 in dgsi.pt, relator: Marques Pereira.
Em comentário à norma constitucional, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição Anotada, 3.ª ed., pg. 815) que nessa norma “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Poder-se-á também afirmar que este tipo de relação jurídica pressupõe sempre a intervenção da Administração Pública investida no seu poder de autoridade (jus imperium), isto é, o exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público (Marcelo Caetano, Manual, I (10ª ed.), pg.44).
Trata-se dos chamados actos de “gestão pública” da Administração.
Marcelo Caetano, para distinguir gestão pública da gestão privada, entendia “por gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e por gestão privada a actividade da Administração que decorre sob a égide do Direito Privado; como o Direito Público que disciplina a actividade da Administração é quase composto por leis administrativas, pode dizer-se que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito” (cf. Manual, 9ª edição, 1983, II - pg.1222).
Nesse conceito de acto de gestão pública se integra o despacho do Vereador camarário, em aplicação da norma do artº 92º D.-L. nº555/99 de 16 de Dezembro, determinando o despejo administrativo de um prédio, a fim de nele se realizarem urgentes obras de recuperação ou reedificação.
Só munida de “jus imperium” poderia a autarquia ordenar uma providência desse tipo.
A decisão recorrida procede a um distinguo que não colhe, para efeitos do supra exposto – quer se analise a causalidade, em concreto ou em abstracto, de um acto para a ocorrência de determinados danos, quer se analise a possibilidade de indemnização por via de um tal acto, em ambas as hipóteses o tribunal deverá sindicar relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
Razões suficientes para o provimento do agravo.

Resumindo a fundamentação:
I - Nos termos dos artºs 212º nº3 C.R.P. e 1º nº1 E.T.A.F., compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, isto é, aqueles que emergem de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
II - Emerge de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo a possibilidade de determinar a causalidade para a ocorrência de determinados danos no património e na exploração de um estabelecimento comercial de um acto administrativo consistente no despejo administrativo do prédio onde o estabelecimento se encontrava instalado.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
No provimento do agravo, revogar o despacho recorrido e, em consequência, julgar procedente a invocada incompetência em razão da matéria do tribunal comum para apreciar a responsabilidade da Interveniente Câmara Municipal, absolvendo da instância a dita interveniente – artºs 101º, 493º nº2 e 494º nº1 al.a) C.P.Civ.
Custas a cargo da Ré Refer.

Porto, 24 de Abril de 2007
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva
Maria das Dores Eiró de Araújo