Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0526828
Nº Convencional: JTRP00038696
Relator: CÂNDIDO LEMOS
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SOCIEDADE
GERENTE
Nº do Documento: RP200601170526828
Data do Acordão: 01/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - A sociedade só pode ser condenada como litigante de má fé na pessoa dos seus representantes que, para tal, têm de previamente ser ouvidos.
II - Só a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas – que não pensam, não falam, não agem por si, mas apenas a través dos seus representantes – levou a lei a pôr a cargo do representante que esteja de má fé na causa a responsabilidade pela respectiva condenação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

No ..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de .........., B.........., Lda. foi condenada como litigante de má fé na indemnização ao réu de €500,00 no processo de cumprimento de obrigação emergente de transacção comercial (Injunção) que moveu a C.......... da Comarca e no qual pedia a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €4.600, acrescida de €184 de juros moratórios.
Notificado o requerido, deduz oposição, invocando o pagamento de duas tranches, uma de mil euros e outra de três mil, justificando os restantes seiscentos como compensação pelos defeitos não corrigidos a que imputa o mesmo valor. Pede a condenação do autor como litigante de má fé em multa e indemnização.
Então o autor apresenta novo articulado, em que confessa os pagamentos invocados, reduzindo o pedido a €1.253,55.
Veio a ser proferida sentença que condenou o réu a pagar à autora a quantia de €350,00, para além da condenação como litigante de má fé na indemnização ao réu de €500,00.
Inconformada a autora apresenta este recurso de agravo e nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
1.ª- A autora vendeu ao réu uma mobília de cozinha.
2.ª- Tendo posteriormente vendido um móvel de casa de banho.
3.ª- Por mero lapso, a autora não contabilizou os valores à nota de encomenda referente à cozinha.
4.ª- Tendo sido notificada para concretizar o pedido expresso na injunção e tendo verificado o seu erro, reconheceu-o, esclareceu-o e reformulou o seu pedido.
5.ª- Colaborou desta forma com o tribunal no sentido da descoberta da verdade material.
6.ª- Assumiu sempre uma posição de colaborante com o Tribunal.
7.ª- Foram provados vários factos alegados pela autora, tendo em consequência sido o réu condenado a pagar parte do preço.
Pugna pela procedência do recurso, sendo retirada a condenação da litigância de má fé.
A decisão foi tabelarmente mantida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos a ter em consideração para a decisão são os que resultam do antecedente.
Temos que a Sociedade ré é condenada como litigante de má fé por ter pedido o pagamento de uma factura já parcialmente paga; perante a alegação desse pagamento pelo réu, emenda a petição, admite o erro e invoca “erro contabilístico”.
Salvo o devido respeito a decisão não pode manter-se.
Na vigência da anterior redacção do art. 456.º do CPC, vinha sendo entendido que só a conduta dolosa, consubstanciada em dolo instrumental ou substancial, podia dar lugar à condenação por má fé (v., entre outros, os Acs. do STJ de 28-10-75, BMJ, 250, p. 156 e de 8-4-97, CJ-STJ, Tomo II, p. 37).
Na nova redacção, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais, foi também alargado o âmbito de aplicação do instituto da litigância por má fé, passando a ser punidas não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes.
Assim, nos termos do actual n.º2, do artigo 456° do C.P.C., litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d)ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Tratando-se de pagamentos em numerário, a efectuar por terceiro, admitido que foi o erro, parece-nos demasiado pesada a condenação da litigância de má fé. Tudo aponta para a existência efectiva de erro ou lapso de contabilidade da empresa ré.
Por aqui estaria afastada a condenação.
Mas também a ré não pode ser condenada, face ao disposto no art. 458.º do CPC.
Consta do sumário do Proc 1885/01-2ª Sec. in www.dgsi.pt., Acórdão de 29/01/2002: “Quando for parte na causa uma sociedade, esta pode ser condenada como litigante de má fé, apesar de a responsabilidade pelo pagamento da multa, indemnização e custas caber ao seu representante que estiver no processo. Por isso, e porque a actividade processual que conta é a do representante da sociedade, tal condenação não pode ter lugar sem prévia audição desse representante.”
Consoante o art. 458º citado, quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
A responsabilidade dos gerentes das sociedades (ou dos representantes da pessoa colectiva) é, assim, uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem.
Não significa esta norma que a sociedade não possa ser condenada por má fé, pois quem é condenada é a parte (art. 456º, nº 1). Partes são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da acção, a providência judiciária [Antunes Varela e outros, Manual de Processo civil, 2ª ed., 107] e, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC, porque quem tem personalidade jurídica (pessoas jurídicas, singulares ou colectivas) tem igualmente personalidade judiciária, forçoso é que as pessoas colectivas, designadamente as sociedades, sejam representadas na lide por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem - art. 21º CPC. Parte na causa não é o representante da pessoa colectiva. «As sociedades, embora agindo necessariamente em juízo por meio dos seus representantes estatutários, são as verdadeiras partes da acção, sempre que esta seja proposta em nome delas ou contra elas» [Ibidem, 110]. As sociedades por quotas, dotadas de personalidade jurídica - art. 5º do CSC - são representadas, nas acções com terceiros [Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 146], pelos gerentes - 252º, nº 1 do mesmo CSC - e é de lei - art. 258º do CC - que o negócio jurídico realizado pelo representante produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado. Só que a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas - que não pensam, não falam, não agem por si mas apenas através dos seus representantes - levou a lei (art. 458º do CPC) a pôr a cargo do representante que esteja de má fé na causa a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização em que a sociedade, parte na causa, tenha sido condenada por via da actuação (maliciosa) do seu representante.
O Tribunal Constitucional [Ac. do TC, de 22.2.95, no DR., II Série, de 17.6.95, pág. 6676] já se pronunciou sobre a aplicação destes preceitos, isto é, sobre a aplicação da litigância de má fé às sociedades, no sentido que deixámos transcrito. Para além do mais, sempre se imporia a audição prévia dos representantes da sociedade com intervenção nos autos.
Conclui-se, pois, pela impossibilidade de condenação da autora Sociedade, nos termos em que o foi nos autos.
DECISÃO:
Nestes termos se decide dar provimento ao agravo, revogando-se a decisão em crise.
Sem custas.
PORTO, 17 de Janeiro de 2006
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Alberto de Jesus Sobrinho
Mário de Sousa Cruz