Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726257
Nº Convencional: JTRP00041027
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
Nº do Documento: RP200801290726257
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO COMPETÊNCIA.
Decisão: ATRIBUÍDA A COMPETÊNCIA.
Indicações Eventuais: LIVRO 263 - FLS 155.
Área Temática: .
Sumário: Não sendo aplicável o art. 29º do DL 76-A/06, de 29/3, que alterou a al. a) do nº 1 do art. 89º da LOFTJ, por vício de inconstitucionalidade orgânica, deve ser repristinada a redacção anterior desta norma, pelo que é competente para preparar e julgar o processo de insolvência de pessoas singulares o tribunal judicial e não o tribunal do comércio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO.
B………., engenheiro florestal, e esposa, C………., ajudante de lar em centro de dia, requerem a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre os M.mos Juízes do .º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho e o .º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, que se julgaram incompetentes para preparar e julgar a acção em que os AA. pediam a declaração da sua insolvência.
As autoridades em conflito foram notificadas nos termos e para os fins do art. 118º do CPC, mas nada disseram.
Cumprido o art. 120º do CPC, alegaram os requerentes, pedindo a resolução do conflito, e o MP junto deste Tribunal teve vista, emitindo parecer no sentido da competência ser fixada ao .º Juízo do Tribunal de Espinho.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
*
É útil a consignação dos seguintes factos, documentados nos autos:
1. Na acção intentada pelos requerentes, em 15.11.06, no .º Juízo do Tribunal de Espinho, em que requereram se declare a sua insolvência, por não terem bens nem rendimentos que lhes permitam solver os seus débitos, foi proferido despacho, datado de 16.11.06, que declarou aquele tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria, para apreciar da acção, e indeferiu liminarmente a petição, fundamentando tal decisão, em síntese, no seguinte:
- a competência dos tribunais judiciais é residual;
- o art. 89º, n.º 1, al. a) da L.O.F.T.J., com a redacção dada pelo DL 76-A/2006 de 29.03, atribui aos tribunais de comércio competência para preparar e julgar os processos de insolvência, e tendo deixado de se referir expressamente às sociedades comerciais e massa insolvente que integra empresa, deve entender-se que passou a ter, também, competência relativamente a pessoas singulares.
2. Transitado em julgado o referido despacho, os requerentes intentaram nova acção, em 14.12.06, com o mesmo pedido, no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, onde foi proferido despacho, datado de 20.12.06, transitado em julgado, que declarou aquele tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria, para apreciar da acção, e declarou extinta a instância, fundamentando tal decisão, em síntese, no seguinte:
- a alteração introduzida no art. 89º, n.º 1, al. a) da L.O.F.T.J. pelo DL. 76-A/2006 de 29.03 é organicamente inconstitucional, uma vez que o Governo não se encontrava autorizado a legislar sobre essa matéria, pelo que não se aplica a redacção em causa, antes se repristinando a anterior;
- assim sendo, o tribunal de comércio só é competente para preparar e julgar os processos de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa, e, sendo os requerentes pessoas singulares, é o tribunal judicial o competente para a acção.
3. O MP junto do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia interpôs recurso do despacho referido em 2., para o Tribunal Constitucional, vindo este tribunal a proferir decisão sumária, datada de 9.07.07, em que decidiu:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que veio conferir nova redacção à alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, atribuindo aos tribunais de comércio competência para preparar e julgar os processos de insolvência mesmo que o devedor não fosse uma sociedade comercial e que a massa insolvente não integrasse uma empresa; e, consequentemente,
b) confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
*
Dispõe o art. 17º, n.º 1 da L.O.F.T.J. que “na ordem interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território”.
E, relativamente à competência em razão da matéria, estipula o art. 18º, nº1 do referido diploma legal que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, ou seja, os tribunais judiciais têm competência residual, só sendo competentes se a lei expressamente não atribuir essa competência a um determinado tribunal de competência especializada, disposição legal que vem consagrada, também, no art. 66º do CPC.
Já o art. 67º do CPC estatui que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.
Os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, e, entre esses tribunais conta-se o tribunal de comércio de acordo com o enunciado na L.O.F.T.J. – arts. 64º, n.º 2 e 78º, al. e).
No caso sub judice, o conflito negativo suscita-se entre o tribunal judicial e o tribunal de comércio, competindo, pois, apreciar se a preparação e julgamento da matéria em questão (declaração de insolvência de pessoas singulares) está, por lei, atribuída ao tribunal de competência especializada (de comércio), caso em que será o competente, ou não, caso em que será competente o tribunal judicial, por competência residual.
A acção intentada pelos Requerentes com vista a obterem a sua declaração de insolvência foi intentada em 15.11.06.
Dispunha o art. 89º, n.º 1, al. a) da L.O.F.T.J., na redacção dada pela L. 53/04 de 18.03, que “compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: a) o processo de insolvência se o devedor for uma sociedade ou a massa insolvente integrar uma empresa”.
O DL. n.º 76-A/06 de 29.03, veio, no seu art. 29º, alterar a redacção do referido artigo 89º, que passou a ter, na parte que ora interessa, a seguinte redacção “1. compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: a) os processos de insolvência”.
Com a alteração introduzida, a competência dos tribunais de comércio “alargou-se” a causas que, anteriormente, eram da competência dos tribunais judiciais, face à limitação da lei da competência dos tribunais de comércio quando os processos de insolvência respeitassem a devedor que fosse uma sociedade ou a massa insolvente integrar uma empresa.
O Mmo Juiz do tribunal de comércio, no caso em apreço, recusou a aplicação do artigo em causa com a redacção introduzida pela L. 76-A/06 de 29.03, com o fundamento de a mesma violar a Constituição, padecendo de inconstitucionalidade orgânica.
A questão foi, já, apreciada pelo Tribunal Constitucional que, em decisão sumária, e por remissão para o decidido nos vários acórdãos aí referidos, confirmou a decisão do Mmo Juiz do Tribunal de Comércio, julgando “inconstitucional, por violação do disposto na alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que veio conferir nova redacção à alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, atribuindo aos tribunais de comércio competência para preparar e julgar os processos de insolvência mesmo que o devedor não fosse uma sociedade comercial e que a massa insolvente não integrasse uma empresa”.
Tal decisão, que sufragamos, faz caso julgado no processo quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada – art. 80º da LTC.
Fundamento para o decidido:
Em matéria de organização e competência dos tribunais, a Constituição atribui competência exclusiva à Assembleia da República para legislar sobre essas matérias – art. 165º, n.º 1, al. p).
Vem entendendo e decidindo o Tribunal Constitucional que se inclui na reserva parlamentar a definição da competência material dos tribunais.
Para proceder à alteração ao art. 89º da L.O.F.T.J., foi invocada no DL 76-A/06 a autorização legislativa concedida pelo art. 95º da L. 60-A/2005 de 30.12 (Lei do Orçamento de Estado para 2006).
Dispõe o referido art. 95º, sob a epígrafe “dissolução e liquidação de entidades comerciais”, que “1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime de dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades comerciais, das sociedades civis sob a forma comercial, das cooperativas e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às referidas entidades. 2 – O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número anterior são os seguintes: a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para que possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de um procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções previstas na alínea seguinte; b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de entidades comerciais pode ter lugar; c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem instaurados e pendentes em tribunal; d) Regulação das condições e requisitos de remessa às conservatórias de registo dos processos judiciais referidos na alínea anterior; e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais”.
Torna-se claro que o sentido e extensão “da autorização legislativa constante do aludido art. 95º e enunciados no seu n.º 2, não podem comportar um entendimento que conduza a considerar que nela foi delineado, por entre o mais, um programa legislativo que implicasse a atribuição de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o caso, afectando-a a determinados de competência especializada). ... E, mesmo focando a alínea b) do n.º 2 do citado artigo, torna-se patente que a autorização para o editando diploma governamental estabelecer as situações em que a dissolução e liquidação judicial das entidades comerciais pode ter lugar não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a atribuição de competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o “estabelecimento das situações” significa, inequivocamente, a definição dos casos e condicionalismos em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por via jurisdicional e não a definição do órgão judicial que vai aferir deles”.
Concluiu o Tribunal Constitucional, que o art. 29º do DL 76-A/06 de 29.03 que altera a al. a) do n.º 1 do art. 89º da L.O.F.T.J., enferma de vício de inscontitucionalidade orgânica, atenta a matéria que regula e a falta de credencial parlamentar do Governo para o efeito.
Assim, não deve a mesma ser aplicada, repristinando-se a redacção anterior, como defendido no despacho do tribunal de comércio, que era: “compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: a) o processo de insolvência se o devedor for uma sociedade ou a massa insolvente integrar uma empresa”.
Sendo os requerentes pessoas singulares, não tem aplicação a referida norma, competindo ao tribunal judicial preparar e julgar o processo de insolvência instaurado pelos requerentes.
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar competente para os termos da acção o .º Juízo do Tribunal de Espinho.
Sem custas.
*

Porto, 2008.01.29
Cristina Maria Nunes Soares Tavares Coelho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Mario João Canelas Brás