Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0552404
Nº Convencional: JTRP00038067
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
CONDIÇÃO
COMPENSAÇÃO
CRÉDITO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP200505160552404
Data do Acordão: 05/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I – Se as partes, num negócio de cessão de quotas, estipulam a possibilidade de compensação de créditos, na hipótese do balanço da sociedade – onde o cedente detinha uma participação social – vier a revelar “passivo oculto”, existente ao tempo de tal cessão, está-se perante um negócio jurídico submetido não a condição resolutiva, mas a “condição imprópria”.
II – Havendo estipulação de “condição imprópria” os efeitos do negócio produzem-se desde a data da sua celebração.
III – O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Por apenso à execução ordinária, que lhe foi movida por:

B.........., pela .. Vara Cível da Comarca do Porto, veio, em 18.9.2002, a executada;

C.........., Ldª

Deduzir Embargos de Executado, alegando, em síntese, a inexistência do crédito do exequente, em virtude de o ter extinto, por compensação, nos termos previstos na escritura pública que titulou o contrato de cessão de quotas, invocado como título executivo.

Regularmente notificado, o embargado contestou, a fls. 21 e seguintes, pugnando, em síntese, pela improcedência da excepção aduzida pela embargante e concluindo pela total improcedência dos presentes embargos e pela condenação da embargante, em multa e indemnização como litigante de má-fé.

Foi proferido o despacho saneador, e foram seleccionadas a matéria assente e a base instrutória, que não foram objecto de qualquer reclamação.

Procedeu-se ao julgamento, que decorreu pela forma constante da acta, e com observância de todo o formalismo legal e foi proferido o despacho, que decidiu a matéria de facto controvertida.
***

A final foi proferida sentença julgando os embargos improcedentes com a inerente prossecução da execução.
***

Inconformada recorreu a exequente/embargada “C.........., Ldª” que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso da douta sentença proferida nestes autos em 03.11.2004, pela qual, por não provados, foram julgados improcedentes os embargos de executado deduzidos pela ora alegante, decisão que consubstanciou, pese embora o máximo respeito, que muito é, pelo Digno. Magistrado que a proferiu, um flagrante erro de julgamento, radicado em deficiente ponderação, interpretação e integração dos factos apurados nos autos, que haveriam de ter conduzido à procedência dos embargos.

2. A oposição à execução aqui deduzida funda-se na insubsistência de qualquer situação devedora da embargante perante o exequente, por terem resultado prejudicados, por compensação expressamente prevista no próprio título exequendo, a escritura pública de 23.05.1995, os direitos de crédito que o embargado invocava.

3. A embargante demonstrou cabalmente nos autos a existência dos pressupostos e condições contratualmente previstas para se operar tal compensação — e exercitou esse direito, expressa e legitimamente, para valer nestes autos como declaração receptícia, nos termos dos arts. 847° e 848° do Código Civil.

4. Que esses pressupostos e condições estão reunidos decorre, à saciedade, do teor integral e incindível da escritura pública que constitui o título executivo dos autos principais; da matéria que consta das alíneas P) a T) dos factos assentes; da matéria dos quesitos 1° e 3º da base instrutória, que resultou provada; e da matéria factual apurada e carreada para os autos no âmbito da perícia colegial nestes oportunamente efectuada, cujo resultado está espelhado no Relatório, e posterior Aditamento, unânimes, elaborados pelos Srs. Peritos para tanto nomeados.

5. De toda essa matéria factual provada resulta a demonstração do que a embargante alegara – já melhor explanada e dissecada no contexto destas alegações, mas que se pode sintetizar na constatação de que a situação líquida da sociedade embargante, face à realidade plasmada em P), Q), R) e S) dos factos assentes, e em 1° e 3° da base instrutória, era de falência técnica, em qualquer dos exercícios de 1993, 1994 e 1995.

6. Ou seja, a escritura pública de cessão de quotas que vem oferecida à execução nos autos principais respeitou, de facto, a uma sociedade tecnicamente falida – e sabe-se em que medida, porque tal foi apurado pelos Srs. Peritos, com o capital social da “C.........., Ldª” totalmente consumido pelos prejuízos decorrentes da falta de oportuna provisão, e total incobrabilidade dos créditos supra-referenciados.

7. Prejuízos ocultos são, obviamente, “passivo oculto” e “outros encargos” — não relevados como tal no Balanço anexo à escritura aqui em causa, mas que constituem a “diferença” que vai da falência técnica à capacidade de assumir obrigações, ainda que a prazo, de mais de 53.000 contos!

8. A douta sentença aqui recorrida fez absoluta tábua rasa desta realidade — o que só pode compreender-se à luz de uma calamitosa interpretação da letra e do espírito do clausulado da escritura que é o título executivo aqui em crise — e do entendimento, técnico e jurídico, que há que fazer do que seja a situação líquida de uma sociedade.

9. É que, como expressamente consta da escritura aqui em causa, nela quiseram as partes consagrar que o embargado “garante que a situação líquida da C.........., Ldª em quinze de Maio do ano em curso [1995], é a espelhada no respectivo Balanço reportado a essa data...” balanço esse anexo à mesma escritura.

10. Ora, resultou cabalmente demonstrado nos autos que a situação líquida da sociedade não era a espelhada nesse Balanço, antes estava a ser transaccionado o capital de um sociedade em situação de falência técnica há mais de dois anos.

11. Mais, na imediata e lógica sequência dessa garantia quanto à situação líquida da sociedade, o aqui embargado assumiu expressamente a obrigação de reembolsar a mesma, “nos termos e nas condições referidas na parte final do número um das declarações dos cessionários precedentemente referidas, relativamente a quaisquer dívidas, responsabilidades ou outros encargos da “C.........., Ldª”, não evidenciados no Balanço Anexo Dois, e que se reportem a data anterior ao mesmo”.

12. Quiseram assim as partes, ao outorgar a escritura de 23.05.1995, que o embargado assumisse a obrigação de reembolsar a sociedade — mediante compensação sobre o que esta resultava obrigada a pagar-lhe, tanto como pensão complementar como por reembolso de suprimentos na exacta medida em que a situação líquida da mesma resultasse prejudicada, à luz do Balanço Anexo II, por factos anteriores ao mesmo e nesse não evidenciados.

13. E tal obrigação de reembolso, via compensação, ficou inequivocamente prevista — quanto à pensão complementar de reforma — a fls. 5 e 6 da escritura: “… caso em que se operará a compensação do referido diferencial distribuído proporcionalmente por cada uma das quantias referidas no dito Anexo Um, sob a epígrafe Renda Mensal, e na parte correspondente.”

14. Assim, a compensação que a embargante aqui veio exercitar ficou desde logo fixada pelas partes para operar, automaticamente, como excepção à deliberação social que fixou a pensão complementar de reforma — mecanismo legítimo à embargante no caso de se verificar, objectivamente, a respectiva previsão contratual — pelo que se afigura descabido o que parece vir entendido na douta sentença recorrida, quando aponta para a necessidade de a embargante “provocar” uma sua deliberação social para cumprir o expressamente previsto na escritura “sub-judice”.

15. Por tudo resulta também refutado o entendimento plasmado na douta sentença recorrida, de que haveriam de merecer tratamento diferente as obrigações de reembolso de suprimentos e as de pensão complementar de reforma — pois a compensação aqui exercitada pela embargante ficou expressamente prevista no título exequendo relativamente a qualquer das obrigações nesse assumidas pela mesma, e relativamente a ambas aquelas se verificaram, e provaram, os respectivos pressupostos.

16. De resto, tem-se por tão evidente que assim é, que deixa recorrente aqui expressa a sua convicção de que – mesmo que tão linear não pudesse ser a interpretação do sentido e teor da escritura aqui em apreço – sempre a pretensão do embargado, ao oferecê-la à execução e a prosseguir esta, constituiria, face aos factos pertinentes apurados, um flagrante abuso do direito, que a moral reprova e a Lei não consente, nos inequívocos termos do disposto no art. 334° do Código Civil.

17. É que, através da escritura em que se baseiam os autos principais, quiseram os outorgantes transmitir a totalidade do capital social da aqui embargada, pelo valor nominal desse de 20.000 contos, que foi dado como recebido, e aceitaram os cessionários, como únicos titulares da empresa que ficaram a ser, que esta se obrigasse ainda a pagar aos cedentes, posto que diferidamente, quantia superior a 53.000 contos: como está apurado nos autos, a sociedade objecto deste negócio, realizado em 23.05.1995, estava tecnicamente falida, nos anos de 1993, 1994 e 1995!

18. Por todo o exposto, e pelos motivos melhor dissecados no contexto, verifica-se que a douta sentença aqui recorrida fez errada ponderação dos factos apurados e dados como provados nos autos, consequentemente prejudicando o direito de compensação que a embargante legitimamente exercitou e arguiu, ao abrigo do disposto nos arts. 847° e 848° do Código Civil,

19. Pelo que deve aquela ser revogada, proferindo-se, em seu lugar, douto Acórdão que julgue no sentido da legitimidade da referida compensação, com a consequente procedência destes embargos, e declaração de extinção da execução dos autos principais.

Assim decidindo farão cabal e inteira Justiça.

O Exequente contra-alegou batendo-se pela confirmação do Julgado.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta a seguinte matéria de facto:

A) O embargado, esposa e filho, eram os únicos sócios da embargante “C.........., Ldª”, os quais, em 23 de Maio de 1995, por escritura realizada no .. Cartório Notarial do .........., cederam as suas quotas a D.......... e esposa E.........., F.......... e outros (doc. de fls.20 a 37)

B) - Nessa escritura, estipularam que, “como únicos sócios que passaram a ficar da mencionada sociedade, procedem e obrigam-se:

1. Atribuir ao primeiro outorgante, na sua qualidade de gerente de C.........., Ldª, uma pensão complementar de reforma, pelo prazo de dez anos e a pagar em mensalidades de duzentos e cinquenta mil escudos, cada uma, vencendo-se a primeira em trinta do ano em curso as restantes em igual dia dos meses subsequentes, tudo conforme Anexo Um à presente escritura, que se junta e dela passa a fazer parte integrante (…); deliberação esta que se obrigam a não revogar ou alterarem, salvo se, entretanto ocorrer qualquer passivo oculto não espelhado no balanço que adiante se junta como Anexo Dois à presente escritura, caso em que se operará, a compensação do respectivo diferencial (…)”.

2. Reembolsar o primeiro outorgante dos suprimentos por este prestados à sociedade “C.........., Ldª”, no montante global de vinte e três milhões setecentos e quarenta mil cento e noventa escudos, no prazo de dez anos, e mediante prestações mensais dos montantes e vencimentos constantes do referido Anexo Um (...).

C) - As prestações ali referidas foram pagas até Dezembro de 2000, com excepção da relativa a Março de 2000, e de então até hoje nada mais foi pago.

D) - O embargado enviou à embargante a carta, cuja cópia se encontra junta a fls. 44, considerando vencida a totalidade da dívida.

E) - Nos termos da escritura supra referida, ficou estipulado que no caso de falta de pagamento tempestivo de qualquer uma das quantia mensais indicadas nos anteriores números (o constante de E e do Anexo 1) os montantes em mora poderiam ser satisfeitos no prazo de doze meses, acrescidos de juros moratórios à taxa anual de 8,43%, calculados desde o vencimento das mesmas até integral e efectivo pagamento.

E) - Mais estipularam que, decorridos que fossem doze meses sem que se mostrassem pagas as quantias atrás referidas, considerar-se-ia imediatamente vencida toda a dívida ao primeiro outorgante, quer a referente à pensão complementar de reforma, quer a referente a pagamentos de suprimentos.

G) – Estipularam, ainda, que o primeiro outorgante garantia que a situação líquida da “C.........., Ldª”, em 15 de Maio de 1995 era a espelhada no balanço referido reportado a essa data.

H) - Bem como, que o mesmo primeiro outorgante reembolsaria a “C.........., Ldª”, nos termos das condições referidas na parte final do número um das declarações dos ora cessionários precedentemente referidas, relativamente a quaisquer dívidas, responsabilidades ou outros encargos da “C.........., Ldª”, não evidenciados no balanço referido e que se reportassem a data anterior ao mesmo.

I) - A embargante detinha sobre a sociedade “C.........., Ldª”, um crédito no valor de 49.119.539$00, o qual se revelou totalmente incobrável, já que a referida sociedade cessou totalmente a sua actividade sem património penhorável.

J) - Bem como detinha um crédito sobre a sociedade G.........., S.A., no valor de 34.686,85 Euros, que se veio também a revelar totalmente incobrável, e detinha uma dívida à sociedade H.........., sociedade italiana, que após redução, foi pela embargante paga pelo valor de 34.933,79 Euros.

L) - A embargante entregou ao senhorio, Banco X.........., contra a entrega de “avultada” verba, as instalações da Rua .........., .........., e adquiriu novas instalações em sistema de locação financeira.

M) - Os créditos supra referidos em 1) e J) (apenas o da G.........., S.A.) não foram oportunamente provisionados.

N) - Os créditos e responsabilidades supra referidos em 1) e J) são, relativamente ao balanço referido em G, preexistentes.

Fundamentação:

Sendo teor das conclusões das alegações do recorrente que – em regra – se afere do objecto do recurso, à parte as questões de conhecimento oficioso, importa saber:

- se, no quadro factual e negocial concreto, a embargada, ora apelante, poderia opor ao exequente a compensação de créditos, e se a sua dívida, deveria ter sido considerado extinta por tal modo;

- se o embargante actuou com abuso do direito.

Vejamos:

O exequente ofereceu como título executivo a escritura pública de divisão e cessão de quotas, datada de 23.5.1995, através do qual o exequente, sua mulher e filho, cederam a totalidade das quotas que detinham no capital social da ora apelante, pretendendo que, por incumprimento do que ali ficou clausulado, os cessionários se acham em dívida de € 149.614,41 sendo € 14.239,69 de juros de mora – cfr. petição executiva, a fls. 273 a 278 – em 11.6.2002.

Tendo desistido do pedido, como se alcança de fls. 44, em relação aos executados D.......... e esposa E.........., a execução apenas prosseguiu contra sociedade executada.

Importa abordar as cláusulas de tal contrato, cujo alegado incumprimento desencadeou o processo executivo e os embargos da executada-sociedade.

Nessa escritura, fls.293 a 302, ficou acordado [no que se refere aos cessionários (agora só está em causa a sociedade embargante)]:

“Que como únicos sócios que passaram a ficar sendo da mencionada sociedade, por efeitos das precedentes cessões, por esta escritura, procedem e obrigam-se ao seguinte:

1 - Atribuir ao primeiro outorgante, [o ora exequente] na sua qualidade de gerente de C.........., Ldª”, uma pensão complementar de reforma, pelo prazo dez anos e a pagar em mensalidades de duzentos e cinquenta mil escudos, cada uma, vencendo-se a primeira em trinta de Junho do ano em curso e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, tudo conforme o Anexo Um à presente escritura que se junta e dela passa a fazer parte integrante, sem prejuízo de a sociedade, querendo, poder antecipar total ou parcialmente o valor global de tal pensão, mediante a aplicação de uma taxa de actualização correspondente a oito vírgula quarenta e três por cento ao ano; deliberação esta que se obrigam a não revogarem ou alterarem, salvo se, entretanto, ocorrer qualquer passivo oculto não espelhado no balanço que adiante se junta como Anexo Dois à presente escritura, caso em que se operará, a compensação do respectivo diferencial, distribuído proporcionalmente por cada uma quantias referidas no dito Anexo Um, sob a epígrafe de “Renda Mensal”, e na parte correspondente;

2 – Reembolsar o primeiro outorgante dos suprimentos por este prestados à sociedade “C.........., Ldª”, no montante global de vinte e três milhões setecentos e quarenta mil cento e noventa e quatro escudos, no prazo de dez anos mediante prestações mensais montantes e constantes do referido Anexo Um, sem prejuízo de a sociedade, querendo, poder antecipar total ou parcialmente o valor global de tais suprimentos, mediante a aplicação de uma taxa de actualização correspondente a oito vírgula quarenta e três por cento ao ano.

3 - No caso de falta de pagamento tempestivo de qualquer uma das quantias mensais indicadas nos anteriores números e constantes do anexo um a esta escritura, os montantes em mora poderão ser satisfeitos no prazo de doze meses, acrescidos de juros moratórios à taxa anual de oito vírgula quarenta e três por cento, calculados desde o vencimento das mesmas até integral e efectivo pagamento.

4 - Decorridos que sejam doze meses sem que se mostrem pagas as quantias atrás referidas, considerar-se-á imediatamente vencida toda a dívida ao primeiro outorgante, quer a referente à pensão complementar de reforma, quer a referente a pagamentos de suprimentos.

5 - Ocorrendo o circunstancialismo previsto no número anterior, e após o primeiro outorgante ter interpelado para o efeito a sociedade “C.........., Ldª”, através de carta registada com aviso de recepção, os ora cessionários ficam obrigados a: -

a) - deliberar em reunião de Assembleia Geral, convocada para o efeito, a realização do trespasse das instalações da sede de “C.........., Ldª”, para, com o produto do mesmo amortizar a parte da dívida então existente ao primeiro outorgante, se esta, entretanto não for regularizada doutro modo, extinguindo-se, em consequência, a divida da sociedade “C.........., Ldª” para com este outorgante;

b) – não deliberar trespassar as instalações da sede da sociedade enquanto não se mostrarem integralmente pagas ao primeiro outorgante quer a mencionada pensão complementar de reforma, quer o reembolso dos suprimentos referidos, quer ainda enquanto não se mostrarem liquidadas todas as dívidas da sociedade que estejam garantidas pessoalmente pelos ora cedentes, salvo ocorrendo o caso previsto na alínea seguinte:

c) - só deliberarem trespassar as instalações da sede da sociedade, desde que previamente realizem o pagamento primeiro outorgante, quer da totalidade dos montantes da pensão complementar de reforma, em dívida nessa altura, quer dos suprimentos igualmente então em dívida, quer ainda das eventuais dívidas da sociedade “C.........., Ldª”, garantidas pessoalmente pelos ora cedentes; o prévio pagamento da pensão complementar de reforma e dos suprimentos, a ocorrer, far-se-á mediante a aplicação de uma taxa de actualização correspondente a oito vírgula quarenta e três por cento ao ano;

d) – não alienarem qualquer quota representativa do capital da sociedade “C.........., Ldª” enquanto o primeiro outorgante for titular de um crédito sobre a mesma de montante correspondente a metade do que for devido ao de suprimentos, salvo se para tanto obtiverem o consentimento dos ora cedentes ou o adquirente subscreva documento mediante o qual. Declare inequivocamente a aceitação da posição contratual que paira o alienante emerge da presente escritura.
e). - (…)

Disse o primeiro outorgante:

- Que aceita o previsto nos anteriores números um a cinco e suas alíneas, nos termos e condições aí exaradas.
- Que garante que a situação líquida da “C.........., Ldª” em quinze de Maio do ano em curso, é a espelhada no respectivo balanço reportado a essa data, que adiante se junta como Anexo Dois.
- Que reembolsará a "C.........., Ldª", nos termos das condições referidas na parte final do número um das declarações dos ora cessionários precedentemente referidas, relativamente a quaisquer dívidas, responsabilidades ou outros encargos da “C.........., Ldª”, evidenciados no balanço anexo dois, e que se reportem a data anterior ao mesmo.”.

Vê-se, assim, que os intervenientes no negócio em causa previram situações que, por um lado, garantissem ao exequente-cedente o pagamento duma pensão complementar de reforma e o reembolso de suprimentos de que era credor e, por outro lado, foi estabelecida uma cláusula segundo a qual a sociedade não revogaria nem alteraria o pagamento da pensão “salvo se entretanto, ocorrer passivo oculto não espelhado no balanço”, que se juntou à escritura.

Para hipótese de se revelar qualquer passivo oculto, a executada poderia operar a “compensação do respectivo diferencial…” sob a renda mensal (pensão complementar de reforma).

Além disso, ficou acordado que, em caso de incumprimento da cessionária, esta se obrigava a “efectuar negócios”, sob condição, ou omissivos… [não trespassar em certas condições… não alienar quotas enquanto não tivesse pago ao exequente a renda/reforma e os suprimentos…] cfr. Cláusula 5ª alíneas a) a d).

As partes ao acordarem que a compensação só seria invocável pela ora apelante se, após a escritura de 23.5.1995, se constatasse a existência de “passivo oculto não espelhado no balanço” constante do Anexo Dois, de 15.5.1995, estabelecerem um negócio condicional – art. 270º do Código Civil – sob condição imprópria. [“As cláusulas apostas a um negócio jurídico para condicionar a produção dos seus efeitos, que não se refiram a um acontecimento simultaneamente futuro e incerto chamam-se “condições impróprias” – Heinrich Ewald Hörster – “A Parte Geral do Código Civil Português”, pág.491] / [- In “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª edição, Maio de 2005, do Professor Mota Pinto, pelos Professores António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, a fls.562, sob a epígrafe – Diversas figuras de condições impróprias, é dada a seguinte definição – “Condições referidas ao passado ou ao presente, visto que o evento condicionante não é futuro; não existe, portanto, incerteza objectiva (nem, consequentemente, o período de pendência que nela se baseia); acontece apenas que a circunstância da verificação ou não verificação está subtraída ao conhecimento das partes no momento do negócio; os efeitos do negócio ou se produzem logo ou não se produzem”. (sublinhámos)]

A verificação do facto que permitiria à embargante proceder à compensação seria o vir a revelar-se passivo oculto não contemplado no balanço.

Verificada a condição, ou seja, a evidência de passivo oculto existente á data de 15.5.1995, então a executada poderia invocar a compensação para se livrar do pagamento em função do diferencial da dívida que assumiu, a distribuir, proporcionalmente, por cada uma das quantias que se obrigou a pagar a título de renda, é que o resulta ponto 1) do acordo plasmado na escritura.

O ora exequente garantiu que a situação líquida da executada, em 15.5.1995, era a que constava do balanço reportado a essa data – cfr. fls. 89 da referida escritura.

Nos embargos, a executada pretende que ocorreu a verificação de factos que lhe permitem invocar a compensação, porquanto se evidenciou que, à data em que o exequente celebrou o negócio em causa, existiam créditos incobráveis, preexistentes à data de 15.5.1995, aquela em que o exequente garantiu uma situação líquida da empresa e, portanto, deixou de pagar as prestações mensais da reforma, por lhe ser legítimo exercer a compensação prevista no acordo.

Refira-se que a embargante não refere em que a data tal ocorreu, sendo certo que, como consta do contrato em causa, as prestações da reforma que se iniciaram em 30.6.1995 foram cumpridas até Dezembro de 2000, excepto a devida em Março desse ano, não mais sendo pagas as que, entretanto, se venceram.

A embargante considera, pois, nada dever.

Estando perante a verificação da condição que lhe permitia invocar a compensação e cessar os pagamentos, teria que provar não só a existência de passivo oculto á data de 13.5.1995, e para cessar os pagamentos, teria que provar que o seu crédito superava o débito que reconheceu existir para com o exequente, já que foi estabelecido no contrato que a compensação seria feita proporcionalmente, tendo em conta as prestações da renda (reforma).

Com efeito, no art. 23º a petição de embargos, alegou – “Na verdade, e como o aqui exequente bem sabe, sendo certo que foram interrompidos os pagamentos previstos na escritura aqui em causa – por reais, mas conjunturais, dificuldades financeiras da “C.........., Lda.” – tal mora no pagamento ficou a dever-se, em grande parte, ao desequilíbrio financeiro com que a empresa se viu confrontada, face ao surgimento de um enorme volume de créditos incobráveis, e de responsabilidades da sociedade para com terceiros, preexistentes mas não evidenciadas no Balanço anexo à escritura aqui controvertida”.

Competia à embargante fazer a prova da responsabilidade do exequente, relativamente à existência de passivo oculto á data em que foi garantida pelo exequente a situação líquida da executada – 13.5.1995 – nos termos do Anexo dois – por se tratar de factos constitutivos do seu direito – art. 342º, nº1, do Código Civil.

“A compensação é exactamente o meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor. Logo que se verifiquem determinados requisitos, a lei prescinde do acordo de ambos os interessados, para admitir a extinção das dívidas compensáveis, por simples imposição de um deles ao outro. Diz-se, quando assim é, que as dívidas (ou os créditos) se extinguem por compensação legal (unilateral).” – Das Obrigações em Geral, II Volume, pág.195, 5ª edição Professor Antunes Varela.

A compensação, a que vulgarmente se poderia chamar “acerto de contas”, é um dos meios de extinção das obrigações, que se torna efectiva através da declaração de uma das partes à outra – art. 848º, nº1, do Código Civil – feita judicial ou extrajudicialmente – arts. 217º e 224º do Código Civil e 261º do Código de Processo Civil – (cfr. art. 854º do Código Civil).

O art. 847º do Código Civil define os requisitos da compensação, do seguinte modo.

“1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.

2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.

3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.”

Todavia, circunstâncias há, que obstam à compensação, como resulta do art. 853º do Código Civil, que não são convocáveis para o caso em apreço.

Dos cinco quesitos incluídos na Base Instrutória, todos eram do ónus da prova da embargante e deles só o 1º e º 3º foram considerados provados.

Ou seja, provou-se que os créditos referidos em P) e R) não foram oportunamente provisionados, sendo, relativamente ao referido balanço, preexistentes.

Mas já não se provou que os créditos e responsabilidades referidos em P), R) e T) não se encontravam evidenciados no balanço referido em E).

Ora, a prova deste facto era crucial, porquanto as partes – naturalmente conhecedoras da situação da empresa á data do negócio – certamente que tiveram, desde 15 de Maio de 1995, acesso ao balanço constante do Anexo Dois – fls. 36 e 37 do processo principal – e, por fotocópia, a fls. 306 e 307.

A embargante, reportando-se à prova pericial [de livre apreciação como é consabido, – art.389º do Código Civil] pretende que a executada estava em situação de falência técnica já antes do negócio, o que, salvo o devido respeito, seria absurdo porque então teríamos de concluir que, mesmo assim tal facto não foi impeditivo do negócio de aquisição das quotas.

Diversamente, o que os Peritos afirmam, a fls. 157, em aditamento à sua perícia, é que “casos os créditos fossem considerados incobráveis a empresa estaria em situação de falência técnica”.

Formularam, assim, um juízo dubitativo e não uma afirmação peremptória, mesmo ante os elementos de que puderam dispor.

Não afirmaram, nem se demonstrou, que tais créditos foram considerados incobráveis ou que, nem sequer, foram incobrados.

Como se escreve na sentença recorrida “… face á não prova pela embargante da existência de passivo “oculto”, conforme resulta da resposta negativa ao quesito 2°, sempre teriam os embargos que improceder.
Na verdade a dívida da sociedade embargante à sociedade H.......... está espelhada no balanço, e os créditos daquela que se revelaram incobráveis, não constituem qualquer passivo, responsabilidade ou encargo, mas sim créditos, relativamente aos quais não se imputa sequer ao ora embargado qualquer culpa na incobrabilidade dos mesmos, ou até má-fé por saber que os mesmos eram incobráveis, aquando da constituição da obrigação exequenda”.

A embargante sustenta que “passivo oculto” é o que não é revelado no Balanço anexo à escritura, mas a questão crucial para se ajuizar do imputado incumprimento pelo executado, era provar que os créditos e responsabilidades da ora executada, não se encontravam evidenciados no balanço – Anexo Dois de 31.5.1995 – a prova desse facto era crucial para que se pudesse responsabilizar o exequente pela ocultação de passivo.

Por outro lado, não tendo a embargante alegado quando é que tal “passivo oculto” se tornou “ostensivo”, mal se compreende que durante cerca de cinco anos tenha cumprido para com o executado as obrigações contratualmente assumidas, sabendo que, anualmente, tem ao seu alcance elementos contabilísticos que lhe permitem acompanhar a situação financeira da sociedade.

Ante a falência dessa prova não se pode considerar que a embargante tenha fundamento legal para alegar a compensação de créditos – que, ademais, nem sequer quantificou.

Finalmente, sustenta a apelante, que o apelado agiu com abuso do direito por a sociedade estar tecnicamente falida, desde 1993 a 1995, e ter desembolsado 20.000 contos para adquirir o capital social da embargada que pagou ao exequente.

Vejamos:

Dispõe o art. 334º do Código Civil – “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O instituto do abuso do direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial, são meios de que os tribunais, devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que – objectivamente – e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça, prevalecente na comunidade.

Como se sentenciou no douto Ac. do STJ, de 10.12.91, in BMJ, 412-460:

“Nos termos do artigo 334º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762º, nº2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”.
Os bons costumes entendem-se por seu turno como um “conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social”.
Finalmente, o fim social ou económico do direito, no âmbito dos direitos de crédito – o conteúdo da obrigação desdobra-se no direito à prestação e no dever de prestar – consiste precisamente na satisfação do interesse do credor mediante a realização da prestação por banda do devedor (artigo 397º do Código Civil)...”.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536:
- “Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido”, em termos clamorosamente ofensivos da justiça”. – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 7.1.93, in BMJ 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.
Com o devido respeito, não resulta dos factos provados, que o exequente/embargado tenha agido em violação das regras impostas pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 16 de Maio de 2005
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale