Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726574
Nº Convencional: JTRP00041132
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: FALÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
Nº do Documento: RP200802260726574
Data do Acordão: 02/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 266 - FLS. 126.
Área Temática: .
Sumário: 1. O incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, tão só, produzir modificação nos sujeitos da lide; produz, deste modo, efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objecto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir.
2. O incidente de habilitação, pelo seu restrito objecto, não é assim o meio processual adequado para resolver questões que possam suscitar-se sobre a existência, validade, âmbito, garantias e graduação dos créditos, questões estas que terão de ser discutidas no processo de reclamação e graduação de créditos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 6574/07-2
1.ª Secção Cível
Proc. n.º …..-Q/98 – VNGaia/…..º Juízo
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I

1. B………………, LDA., deduziu, ao abrigo do disposto no art. 376.º do Código de Processo Civil e por apenso aos autos de falência que correm termos no ...º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia com o n.º …/98, incidente de habilitação contra a MASSA FALIDA DA HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE C………………. e os CREDORES DA MASSA FALIDA, em que requereu que fosse habilitada no lugar do credor reclamante D………………., com as respectivas consequências legais.

Justificou a sua habilitação no contrato de cessão de créditos titulado a fls. 5 e 6, de 07-03-2002, através do qual o reclamante D……………. cedeu à requerente o crédito de que era titular e havia reclamado naqueles autos de falência, com todas as garantias e acessórios a ele inerentes, sendo, pois, a requerente a actual titular do referido crédito e garantias.

Contestaram a MASSA FALIDA, a E……………… e o F……………, S.A., estes na qualidade de presidente e membro da comissão de credores, respectivamente.

A primeira alegou que, inexistindo sentença de graduação de créditos, a qualidade de credor do cedente ainda não estava definida e estabilizada e, por isso, não podia proceder a habilitação de uma qualidade que ainda não estava reconhecida; para além disso, questionou a falta de título sobre o ali referido direito de retenção, não podendo tal direito ser discutido neste incidente. Opondo-se, desse modo, à requerida habilitação.

Os segundos também questionaram a existência e transmissão do direito de retenção aludido no contrato de cessão de créditos, considerando que o direito não estava reconhecido por sentença e ainda que estivesse, não podia ser transmitido porque se trata de uma garantia ligada à pessoa do credor e inseparável deste.

Face a estas contestações, a requerente juntou aos autos certidão de sentença transitada em julgado, proferida em 21-06-1999, em acção intentada pelo cedente D…………… contra a Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de C…………………, que reconheceu o crédito e direito de retenção transmitidos à requerente (fls. 82-88).

Em 03-02-2005, a fls. 153-159, foi proferida a seguinte decisão: “julgo a requerente B………….., LDA, habilitada no lugar de D…………….., considerando-se aquela titular do crédito reclamado por este no montante de 31.050.000$00, bem como de todas as garantias a ele inerentes, nomeadamente o direito de retenção que lhe foi reconhecido pela sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira”.

2. A E……………. não se conformou com essa decisão e recorreu para esta Relação, extraindo das suas alegações as conclusões seguintes:
1. Segundo a doutrina comum, só pode existir direito de retenção quando se verifique a detenção lícita (cfr. artigo 756.º, a), do CC) ou posse material da coisa que deve ser entregue a outrem; o detentor seja credor da pessoa com direito à entrega da coisa e se verifique entre os dois créditos do nexo constante da parte final da citada norma legal.

2. O direito de retenção, relacionado com o crédito, exerce-se sobre a coisa, é um poder directo e imediato sobre ela tendo, portanto, o carácter de direito real, representa a garantia do crédito.

3. Constitui elemento essencial do direito de retenção a posse, enquanto relação de facto de um sujeito com uma coisa, consubstanciada num corpus e num animus – artigo 1251.º do CC.

4. Pode ceder-se a posse, o que determina a sua perda como situação de facto, de acordo com a alínea c) do artigo 1267.º do CC. E, havendo tradição da coisa, o que surge é uma nova posse, que é adquirida – artigo 1263.º, alínea b). Assim, por tradição da coisa, perde o cedente a posse e o cessionário adquire-a.

5. Tradição da coisa, para efeitos de aquisição da posse, é a transferência duma coisa sujeita a uma relação de facto, por acto voluntário do titular, ou seja, de um querer do tradens que passe o accipiens a dispor da faculdade de deter, com animus e continuar a deter; simultaneamente, exigindo-se do cessionário a recíproca vontade de, por sua parte, possuir e continuar a possuir como possuia o cedente.

6. No contrato de cessão de créditos celebrado, não se demonstra que tenha sido também cedida a posse do terreno, ou seja, é inexistente a manifestação doquerer do cedente, como é a do cessionário, pelo que forçoso se torna concluir que este último não tem a posse.

7. Não tendo havido cedência da posse, não se transferiu para o cessionário o poder directo e imediato sobre a coisa, que é requisito sine qua non do direito de retenção.

8. É que, se para o reconhecimento do direito de retenção se exige que exista posse, não se pode admitir que por efeito de posterior cessão de créditos assistida daquela garantia, esta se transmita sem se verificar aquele mesmo requisito em relação à pessoa do cessionário.

9. Considerando a douta sentença que transmitido o crédito, se transmitiu a garantia inerente ao bem, independentemente do requisito essencial da existência daquela garantia – a posse – não fez a melhor interpretação da lei e uma justa aplicação do direito.

10. A requerente/cessionário apenas adquiriu, por efeito do contrato que celebrou com o cedente, o crédito, visto que não tem, nem nunca alegou ter, a posse.

11. A sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção e que correrem seus termos do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, é inoponível à ora recorrente.

12. A ora recorrente nunca foi parte naqueles autos.

13. De facto, a recorrente é terceira naquele processo em que foi reconhecido o direito de retenção ao cedente, designadamente por força do disposto nos artigos 479.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1, ambos do CPC.

14. E é terceiro juridicamente interessado.

15. O reconhecido direito de retenção limita fortemente a garantia hipotecária do crédito da recorrente, produzindo-lhe assim um grave prejuízo de natureza jurídica.

16. A sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção, apesar de transitada em julgado, não produz efeitos quanto à ora recorrente, por ser esta terceiro juridicamente interessado, sendo o direito de retenção aí reconhecido inoponível à recorrente, nos termos dos artigos 479.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1, ambos do CPC, prevalecendo, pois, os seus créditos sobre os do cedente.

17. Aceitar-se o entendimento do Exmo. Senhor Doutor Juíz “a quo”, é abrir caminho para, de forma injustificada, penalizar a recorrente e clara violação do disposto nos artigos 754.º e 1251.º, do CC e 479.º, n.º 1, e 671.º, n.º 1, ambos do CPC.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

II

3. De harmonia com as disposições contidas nos arts 684.º, n.ºs 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação que delimitam o objecto do recurso.

Tendo em conta o teor das conclusões formuladas no recurso, a questão que a agravante opõe à decisão recorrida refere-se ao reconhecimento da aquisição pela requerente do direito de retenção, considerando a recorrente que:

1) não podia, neste incidente, reconhecer-se à requerente a aquisição do direito de retenção, mas tão só o direito de crédito;

2) é legalmente inadmissível a cedência do direito de retenção sem a cedência da posse sobre a coisa retida e, no caso, não está demonstrada a cedência da posse;

3) a sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção é inoponível à recorrente.

4. A decisão recorrida baseou-se na seguinte factualidade provada:

1) Por contrato de cessão de créditos celebrado em 07-03-02, o reclamante D…………… cedeu à ora requerente o crédito de que era titular, com todas as garantais e acessórios a ele inerentes (doc. de fls. 4 a 6).

2) Em 17-11-98, no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, foi instaurada acção ordinária pelo reclamante D………….. contra a herança ilíquida e indivisa por óbito de C……………., representada pela viúva e filhos, pedindo a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre o falido e o A. e o pagamento de 30.000.000$00 e reconhecer o direito de retenção sobre o terreno (cfr. certidão a fls. 82).

3) Foi proferida decisão em 21-06-99, transitada em julgado, na qual a R. foi condenada a: a) ver resolvido o contrato-promessa mencionado no art. 1.º a 4.º da pi; b) pagar ao autor a quantia de 30.000.000$00; c) reconhecer que assiste ao Autor o direito de retenção relativo ao prédio objecto desse contrato-promessa (cfr. certidão a fls. 83-87).

4) Em 18-08-99, por apenso ao processo de falência e nos termos do disposto no art. 205.º do CPEREF, foi instaurada acção sumária pelo reclamante D…………… contra a Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de C……………., pedindo que o seu crédito fosse reconhecido ou verificado e graduado nos termos legais (cfr. fls. 144-149).

5) Em 02-11-99, foi proferida sentença, transitada em julgado, que julgou procedente a acção e julgou a falida devedora ao Autor de 30.000.000$00 e considerou tal crédito reclamado (cfr. fls. 150-152).

5. Em primeiro lugar, entende a agravante que a decisão recorrida não podia, neste incidente, reconhecer à requerente a aquisição do direito de retenção, mas tão só o direito de crédito, para concluir que a sentença deveria ter-se limitado a declarar habilitada a requerente no lugar de D……………… quanto ao crédito por aquele reclamado, sem o direito de retenção reconhecido àquele.

Vejamos se lhe assiste razão.

O incidente de habilitação do adquirente ou cessionário, regulado no art. 376.º do Código de Processo Civil, visa concretizar a substituição na lide de alguma das partes, por motivo de alteração na titularidade da relação substantiva em litígio, ocorrida na pendência do processo, resultante de transmissão por acto inter vivos da coisa ou direito em litígio, a que aludem os arts. 270.º, al. a), e 271.º do mesmo Código (cfr. ac. desta Relação de 25-09-2007, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0723841).

Assim, dispõe aquele primeiro preceito legal, nos segmentos aqui aplicáveis, que a instância pode modificar-se, quanto às pessoas, em consequência da substituição de alguma das partes, por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio.

O n.º 2 do art. 271.º dispõe que a substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo. Na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.

Quanto ao modo procedimental de realizar esta substituição, o n.º 1 do art. 376.º do Código de Processo Civil prescreve que a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, far-se-á nos termos seguintes:

a) Lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que será autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar: na contestação pode o notificado impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;

b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, se decidirá; na falta de contestação, verificar-se-á se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declarar-se-á habilitado o adquirente ou cessionário.

Das disposições legais acabadas de transcrever decorre, em primeiro lugar, que, o incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, tão só, produzir modificação nos sujeitos da lide (modificação subjectiva, como a designam os arts. 269.º e 270.º do Código de Processo Civil). Essa modificação opera-se colocando o adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio no lugar e na posição processual que o cedente ocupava no processo, para que a causa prossiga entre os actuais titulares da relação jurídica controvertida. O habilitado, sucedendo na posição processual do cedente, passa a exercer os mesmos direitos e fica sujeito ao cumprimento das mesmas obrigações processuais que àquele competiam, sem interferir com o objecto da causa (cfr. os acs. da Relação de Lisboa de 02-11-2005 e 06-02-2007, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ procs. n.º 2913/2005-4 e 9198/2006-1). Produz, deste modo, efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objecto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir (cfr. ac. desta Relação de 03-05-2001, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0130577).

Não se compreendendo nas finalidades do incidente a discussão do direito substantivo em litígio na causa principal, justifica-se que a oposição à habilitação pela parte contrária esteja limitada a dois fundamentos, em alternativa, referidos na al. a) do n.º 1 do art. 376.º do Código de Processo Civil: 1) a invalidade do acto de cessão ou transmissão, quer quanto ao objecto, quer quanto às pessoas que nele intervieram, ou 2) que a cessão ou transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição na causa principal (cfr. Eurico Lopes-Cardoso, em Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, actualizado por Álvaro Lopes-Cardoso, 1992, 360; J. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 78; e Salvador da Costa, em Os Incidentes da Instância, p. 257).

De modo que, havendo acordo, isto é, não sendo deduzida oposição, a habilitação, sendo embora facultativa, só pode ser recusada se o acto que é invocado como fundamento da habilitação não estiver documentado, for nulo ou não provar a aquisição ou cessão (arts. 271.º, n.º 2, e 376, n.º 1, al. b), 2.ª parte, do Código de Processo Civil). Tendo sido contestada e, portanto, não havendo acordo, como aqui sucede, a habilitação só pode ser recusada, quando se verificar, além daqueles fundamentos: 1) que o acto é inválido, aqui se abrangendo não só a nulidade mas também a anulabilidade e ineficácia do acto, desde que alegadas, visto que, ao contrário da nulidade (art. 286.º do Código Civil), não são do conhecimento oficioso do tribunal (art. 287.º do Código Civil); 2) ter sido alegado e provado pela parte contrária que a cessão ou transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição na causa principal (arts. 271.º, n.º 2, 2.ª parte, e 376.º, n.º 1, al. a), 2.ª parte, do Código de Processo Civil).

6. Analisando o caso concreto em apreciação, constata-se que a sociedade requerente, através do presente incidente, pretende ocupar a posição processual que era ocupada, no processo de falência, pelo reclamante D……………….

Fundamenta este seu pedido de habilitação no contrato de cessão de créditos que está titulado pelo documento escrito a fls. 5 e 6, no qual o D……………. declara ceder à requerente o crédito que lhe foi reconhecido contra a herança falida, por sentença judicial transitada em julgado, com todas as garantias e acessórios a ele inerentes.

Do ponto de vista formal, não foi suscitada, nem se suscita, qualquer invalidade relativamente ao contrato que titula a cessão do crédito. E do ponto de vista substancial, a agravante também já não questiona, em sede de recurso, o acto da cessão do crédito. Questiona, apenas, a transmissão do direito de retenção, como garantia do crédito transmitido, fazendo-o na base de dois fundamentos: 1) que é inadmissível a cedência do direito de retenção sem a cedência da posse sobre a coisa retida e, no caso, não está demonstrada a cedência da posse do terreno a que respeita o direito de retenção do cedente; 2) que a sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção é inoponível à recorrente.


6.1. Ora, importa começar por dizer que nenhum destes fundamentos foi alegado, em sede de contestação, pela ora agravante, pelo menos nos exactos termos e contexto que agora invoca.

Com efeito, a agravante apenas questionou a existência do direito de retenção aludido no contrato de cessão de créditos, considerando que esse direito não estava reconhecido por sentença e ainda que estivesse, não podia ser transmitido ao cessionário porque se tratava de uma garantia ligada à pessoa do credor e inseparável deste.

Também a Massa Falida, na sua contestação, se limitou a opor à habilitação da requerente que a qualidade de credor do cedente ainda não estava definida e estabilizada, por não existir, no momento, sentença de graduação de créditos, e, para além disso, também questionou a falta de título sobre o direito de retenção do cedente e que tal direito não podia ser discutido neste incidente.

Como se vê, qualquer das partes que contestou o incidente de habilitação e, em particular, a agravante, não levantou a questão da inoponibilidade da sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção. O que ambas questionaram foi que esse direito não existia ou não estava provado que existia. Sucede que a existência do direito de retenção do cedente contra a herança falida está provada por sentença transitada em julgado, certificada nos autos a fls. 82-88, e é oponível à falida (art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Que é o que aqui importa, porquanto, é contra a falida que esse direito está a ser exercido, e não contra a agravante, que, procedendo ou improcedendo a habilitação, é mera concorrente com o cedente (ou com a requerente da habilitação) à execução do património da falida.

O que quer dizer que, no plano das relações entre os diversos credores reclamantes, incluindo a agravante e o cedente (ou a habilitanda), todas e quaisquer questões que possam ou devam suscitar-se sobre a existência, validade, âmbito, garantias e graduação dos respectivos créditos, terão que ser colocadas, discutidas e resolvidas no processo de reclamação e graduação de créditos, como decorre do disposto nos arts. 188.º, 191.º e 192.º do CPEREF e 128.º a 130.º do CIRE. Manifestamente, o incidente de habilitação, pelo seu restrito objecto, já acima analisado, não é o meio processual adequado para tratar e resolver tais questões de direito substantivo, como bem salientou a requerida Massa falida na sua contestação a este incidente.

De qualquer modo, repete-se que esta questão não havia sido suscitada na contestação da agravante e, por isso, também não foi apreciada na sentença recorrida (o que foi apreciado na sentença recorrida foi a oponibilidade dessa anterior sentença à requerida Massa falida). Configurando-se como questão suscitada ex novo neste recurso. O que não cabe no âmbito do objecto dos recursos, como decorre do disposto nos arts. 676.º, n.º 1, e 684.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil (cfr. Aníbal de Castro, em Impugnação das Decisões Judiciais, Lisboa, 1981, p. 26; Jorge Augusto Pais do Amaral, em Direito Processual Civil, 3.ª edição, Almedina, p. 364; Ac. do STJ de 20-09-2007, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 07B1836, e Ac. do S.T.A. de 26-09-2007, em www.dgsi.pt/jsta.nsf/ proc. n.º 0109/07).


6.2. Ainda a propósito do efeito do caso julgado da sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção, diz a agravante que “o reconhecido direito de retenção limita fortemente a garantia hipotecária do crédito da recorrente, produzindo-lhe assim um grave prejuízo de natureza jurídica”.

Como já ficou dito acima, o preceito da al. a) do n.º 1 do art. 376.º do Código de Processo Civil permite que a habilitação do adquirente ou cessionário seja contestado com o fundamento de que a cessão ou transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição na causa principal.

Porém, o que a agravante alega é coisa bem diferente. Não é o acto da cessão do crédito e respectivas garantias, incluindo o direito de retenção, que causa prejuízo à agravante. É a existência do próprio crédito do cedente e das inerentes garantias. O que não cabe no âmbito do que prevê aquele preceito legal.

De todo o modo, sendo os créditos da agravante e do cedente concorrentes entre si à massa falida, é recíproco o prejuízo que podem causar um ao outro. O mesmo se passando relativamente aos demais créditos reclamados. O que não pode constituir fundamento para afastar uns a favor dos outros. Se bem que, como também já se disse atrás, o processo adequado para colocar, discutir e resolver essas questões é o do processo de reclamação, verificação e graduação de créditos.

O que aqui importa relevar é que não é o acto da cedência do crédito e das inerentes garantias invocadas pelo cedente e pelo cessionário que pode prejudicar a agravante. O eventual prejuízo que este crédito e o direito de retenção reconhecido a favor desse crédito possa causar à agravante é exactamente o mesmo estando na acção o cedente ou o cessionário.

Falece, assim, também este argumento.


6.3. Finalmente, também a questão da inadmissibilidade da cedência do direito de retenção não foi colocada pela agravante, na sua contestação, nos exactos termos e contexto que agora apresenta no recurso. O que então alegou foi que o direito de retenção não podia ser transmitido ao cessionário porque não existia, ou se existia não estava reconhecido, e porque se tratava de uma garantia ligada à pessoa do credor e inseparável deste. Invocando o disposto nos arts. 571.º, n.º 1, e 582.º, n.º 1, do Código Civil.

Agora põe a questão da não cedência da posse sobre a coisa retida como fundamento para a inadmissibilidade da cedência do direito de retenção.

Ora, basta confrontar a matéria de facto provada para se constar que é de todo insuficiente para apreciar e resolver esta questão. Nem os elementos documentados nos autos permitem saber se houve transmissão, ou não, da posse da coisa retida. O que, todavia, não releva para o deferimento do incidente de habilitação.

Com efeito, o que neste incidente importa averiguar é se o acto da cessão invocado como fundamento da habilitação está documentado e faz prova da cessão. O que aqui se verifica: a habilitação é fundamentada em contrato de cessão de crédito, abrangendo todas as garantias de que o crédito beneficia; o contrato está documentado nos autos e é título idóneo à transmissão do direito; e esta transmissão é permitida por lei, nos arts. 582.º, n.º 1, e 760.º do Código Civil.

Importa, porém, acrescentar, acerca das considerações que a agravante faz sobre os requisitos do direito de retenção para justificar a sua intransmissibilidade, que, como a própria também reconhece, a lei (art. 754.º do Código Civil) não exige a posse material da coisa, bastando a detenção lícita (cfr. Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, 567). Os casos especialmente previstos no art. 755.º do Código Civil são globalmente exemplos de meras detenções da coisa.

Também não cremos que se possa subscrever a afirmação de que o direito de retenção é uma garantia ligada à pessoa do credor e inseparável deste, no sentido que consta dos arts. 577.º, n.º 1 (parte final) e 582.º, n.º 1, do Código Civil, porquanto, o que nos parece decorrer dos preceitos dos arts. 754.º e 761.º do Código Civil é que se trata de um direito ligado à coisa detida, de modo que a sua duração está limitada à detenção da coisa (sendo pois uma garantia real, e não pessoal). Entregue a coisa, extingue-se o direito (art. 761.º do Código Civil).

Ora, neste caso, haveria que confrontar a data da cessão do crédito e do direito de retenção com a data em que se produziram os efeitos da declaração de falência, designadamente os relativos à imediata apreensão e entrega ao liquidatário judicial de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (art. 128.º, n.º 1, al. c), 175.º, n.º 1, e 176.º do CPEREF) e, bem assim, os que se produzem em relação aos direitos dos credores e inerentes garantias, à data da declaração de falência (art. 151.º e ss. do CPRREF). Só que esta matéria não pode ser aqui apreciada, porque este incidente não é o meio idóneo e porque não dispõe dos elementos necessários a essa análise.

III

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo.

Custas pela agravante (art. 446.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).


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Relação do Porto, 26-02-2008

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António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues