Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0753577
Nº Convencional: JTRP00040599
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
COMODATO
Nº do Documento: RP200710010753577
Data do Acordão: 10/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 312 - FLS 38.
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo instrumental relativamente à acção declarativa, a restituição provisória de posse está igualmente sujeita ao prazo de caducidade previsto no art. 1282.º do CC. O mesmo prazo se aplica ao procedimento cautelar comum possessório.
II - Mesmo não estando especificadamente na lei, é de admitir o contrato de comodato modal.
III - Apesar do comodatário ser tido como mero detentor ou possuidor precário, atribui-lhe a lei tutela possessória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, B………. instaurou procedimento cautelar comum contra C………., pedindo que seja ordenada a restituição provisória da posse à Requerente, das fracções de que é proprietária, identificadas no art. 1 da petição inicial, bem como do recheio mencionado no art. 27 do mesmo articulado.
Mais pedindo que a Requerida seja condenada no pagamento de sanção pecuniária compulsória correspondente a € 20,00 diários, desde a data da entrada do procedimento cautelar e da multa que se considerar adequada a favor do Estado.
A petição deu entrada na Secretaria do Tribunal recorrido em 12 de Setembro de 2006.

A Requerida deduziu oposição, por excepção, invocando a caducidade, nos termos do art. 1282 do C. Civil e, ainda, por impugnação.
Na sua versão dos factos, a escritura que serviu de base à aquisição do andar em causa, em nome da requerente, não corresponde à efectiva vontade das partes, já que nunca a Requerente tencionou adquiri-lo para si própria, mas sim para a Requerida, que tem, desde sempre, habitado o referido andar, actuando como sua verdadeira proprietária, tendo mesmo contribuído com a quantia de € 30.000 para a aludida compra, só não tendo a sido a aquisição sido formalizada em seu nome, devido a intrigas familiares.

Produzidas as provas, foi proferida decisão, que julgou procedente o procedimento cautelar, como preliminar de acção de reivindicação a instaurar, condenando a Requerida:
a)A proceder à restituição à Requerente, para que delas possa dispor, das fracções de que esta é proprietária, identificadas no art. 1 do requerimento inicial, ou seja, das fracções autónomas correspondentes ao ..º andar direito, arrecadação n.º .., sita na cave e garagem n.º .., sita na sub-cave, do prédio urbano sito na Rua ………., Edifício ………., Bloco ., em Santo Tirso, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º 01321/070294, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4595;
b)No pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 20,00, por cada dia de atraso no cumprimento da decisão.
Custas pela Requerida.

Recorreu a Requerida, formulando as seguintes conclusões:
1. São pressupostos do decretamento de providência cautelar não especificada: a) a probabilidade séria do direito invocado; b) o fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; c) que a providência seja adequada à situação de lesão eminente; e não exista providência específica que acautele aquele direito.
2. Ora, a Requerente, ora Agravada, não se definiu claramente se pretendia a providência não especificada ou a restituição provisória de posse.
3. Se a Recorrida pretendeu instaurar providência não especificada teria que obedecer aos requisitos que mencionamos em I).
4. Se a Agravada pretendeu instaurar providência de restituição provisória da posse teriam de ter ocorrido actos de turbação na posse ou de esbulho nas fracções em causa, o que como bem diz o meritíssimo juiz não ocorreu na situação sub Júdice embora na parte final se contradiga falando em restituição
5. Admitindo que a Requerente pretendeu uma providência de restituição provisória de posse tal direito já teria caducado por quanto nos termos do art. 1282 do Código Civil, tratando-se de actos turbativos continuados o prazo para requerer a providência cautelar de restituição provisória da posse conta-se a partir da data da prática do primeiro acto.
6. O primeiro acto de acordo com a matéria considerada provada terá ocorrido em 2000/2003, sendo de aceitar que terá ocorrido caducidade do exercício do direito conforme Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Dezembro de 2005 -Processo 0556451.
7. Face à matéria provada não podemos deixar de admitir que se foi intentada uma providência cautelar de restituição provisória de posse esta obrigatoriamente teria de ter caducado porquanto o prazo de um ano não se refere só aos meios definitivos de tutela da posse mas também é extensivo ao procedimento cautelar, atenta a sua função instrumental relativamente à acção principal;
8. Se considerarmos que a Agravada instaurou uma providência cautelar não especificada, teria que se basear num receio fundado o qual só existe, quando se apoie em factos que permitam objectivamente afirmar a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
9. Pressupõe-se ainda que exista a iminência da verificação ou repetição de uma lesão no direito devendo usar-se de um critério rigoroso e objectivo na apreciação dos factos integradores do "periculum in mora".
10. Não bastará portanto que se verifique uma qualquer lesão, tendo ela de ser grave e mesmo a existência de uma lesão grave não é bastante, pois exige-se ainda que a mesma seja de difícil reparação e que a não ser tomada uma medida cautelar dificilmente o lesado consiga ser reparado do prejuízo que sofra ou possa sofrer.
11. De acordo com a matéria dada como provada as lesões invocadas estão longe de ser de difícil reparação porquanto todas elas se traduzem em valores pecuniários facilmente ressarcidos monetariamente, sendo que as ditas lesões não foram provadas documentalmente mas apenas indicada a probabilidade da sua existência.

A Requerente contra-alegou, concluindo:
1. A providência cautelar foi interposta no âmbito do disposto no Artigo 381 do C.P.C. pois, o próprio Artigo 395° daquele diploma legal refere que quando não ocorram as circunstâncias previstas no Artigo 393, "é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum".
2. A probabilidade séria do Direito invocado existe a partir do momento em que a ora Agravada, enquanto proprietária das fracções em apreço, requer a entrega das chaves e, consequentemente, das fracções, à Agravante, sua irmã, não as obtendo até ao presente, não obstante as diversas diligências nesse sentido, conforme resulta das certidões prediais, da prova produzida em audiência de julgamento e, consequentemente, da douta sentença do Tribunal a quo.
3. Por outro lado, conforme resulta provado da douta sentença em crise, existe a probabilidade séria de a entidade bancária credora executar a hipoteca que detém sobre as fracções, por falta de pagamento das prestações, na medida em que o acordado entre o Banco e a Agravada era de proceder ao pagamento da quantia mutuada através da venda das fracções, o que não se conseguiu ou consegue, uma vez que Agravada, intitulando-se proprietária do imóvel, não permite qualquer acesso ao mesmo por parte das empresas imobiliárias, donde se conclui justo receio de dano grave e irreparável à Agravada.
4. Este dano, por si só, é extremamente grave e irreparável.
5. Acresce, ainda, que existe uma probabilidade séria da fracção destinada à habitação estar deteriorada em consequência de uma inundação ocorrida em Agosto de 2005.
6. Existiu, e existe, fundado receio de que a ora Agravante cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, tanto mais que, conforme supra referido, a ora Agravante, tem a correr termos contra si diversos processos executivos, por falta de pagamento de custas judiciais.
7. Existe má - fé da Agravante na medida em que, sempre alega não possuir condição económica bastante que lhe permita custear os encargos com o imóvel que ocupa ilicitamente mas, agora, diz que as lesões sofridas pela Agravada, são de fácil reparação pecuniária. Salvo melhor opinião, resta saber: com que dinheiro?
8. Ora, face ao supra exposto, parece óbvio que o risco de lesão especialmente prevenido não é abrangido por qualquer das providências tipificadas no Código de Processo Civil pelo que, a Agravada adoptou a forma devida, não especificada, sendo o petitório conforme com o pedido.
9. Pelo que, naturalmente não invocou a Agravada na sua providência a ocorrência de actos de posse com esbulho violento das fracções.
10. Sempre se dirá que, ainda que se admitisse (o que só por mera hipótese académica se concebe) que houve esbulho violento, a agravada estaria em tempo para apresentar a competente providência, porquanto os actos determinantes, para a sua propositura, foram dados a conhecer à agravada apenas em 2005 – penhora de bens próprios da agravada, dívida ao condomínio (da obrigação da agravante, conforme acordado), inundações na fracção destinada à habitação, falta de acesso às fracções para os fins descritos em 13 deste articulado, conforme arts. 27 e 32 da p.i., e cf. resulta dos factos dados como provados na sentença do Tribunal “a quo”.
11. Não estando, portanto, esgotado o prazo previsto na lei.

Foi proferido despacho de sustentação.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Matéria de facto dada como provada:
a) Encontra-se inscrito/registado, desde 08.07.1996, em nome da Requerente, o direito de propriedade sobre as fracções autónomas "IV", "GX" e "BL", correspondentes, respectivamente, ao .º andar direito, arrecadação nº .., sita na cave, e garagem nº .., sita na sub-cave, e pertencentes ao prédio urbano sito na R. ………., Edifício ………., Bloco ., em Santo Tirso, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o nº 01321/070294, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4595;
b) Para a aquisição de tais fracções, a Requerente contraiu um empréstimo bancário junto do "D……….", hoje, "E……….";
c) Logo após a sua aquisição, a utilização das fracções identificadas em a) foi gratuitamente cedida, de forma verbal, pela Requerente à Requerida, que passou a habitar o apartamento, apenas com a obrigação de efectuar o pagamento das despesas de condomínio e das relativas aos consumos domésticos, designadamente, de água e electricidade;
d) Ficou, porém, acordado com a Requerida que, assim que a Requerente delas necessitasse, a Requerida, de imediato, lhe devolveria as fracções em causa;
e) A situação referida em c) manteve-se inalterada por alguns anos, por um lado, porque a Requerente não necessitava dos imóveis e, por outro, porque a situação económica e familiar da Requerida evidenciava dificuldades, tendo a Requerente, que é sua irmã, sido sensível a esse facto;
f) Porém, a Requerente começou e tem vindo, também ela, a atravessar dificuldades económico-financeiras, as quais remontam ao ano de 2001, e que a Requerida bem conhece;
g) Por essa razão, a partir do ano de 2002, a Requerente passou, inúmeras vezes, a solicitar à Requerida que esta lhe entregasse os imóveis, tendo a Requerida solicitado à Requerente para continuar a habitar a fracção no mesmo, ao que a Requerente foi inicialmente anuindo;
h) Contudo, porque a capacidade económico-financeira da Requerente ficou muito abalada desde 2001, só a muito custo, e com atraso, conseguia efectuar o pagamento das prestações mensais do crédito à habitação, concedido para aquisição dos imóveis em causa;
i) Tais atrasos fizeram com que a Requerente fosse, e continue a ser, objecto de incidente bancário no Banco de Portugal, sendo que, neste momento, a Requerida tem várias prestações atrasadas do crédito à habitação referente ao imóvel, motivo pelo qual está prestes a ser judicialmente accionada pela instituição bancária financiadora;
j) Por tais motivos, a Requerente, em 2003, celebrou com a Imobiliária "F……….", um contrato com vista à venda do imóvel;
k) Tendo a Requerida sempre tido conhecimento desse contrato e do seu objecto, comprometeu-se a franquear o apartamento ao encarregado de venda da referida Imobiliária, para que este pudesse mostrá-lo a eventuais interessados na sua aquisição, e, bem assim, a abandoná-lo logo que a venda fosse concretizada;
l) Tendo inicialmente colaborado nos termos referidos na alínea anterior, tendo em vista a venda do andar em causa, a Requerida passou a recusar-se sistematicamente a mostrá-lo a possíveis compradores, marcando e desmarcando datas de visita;
m) Essa circunstância chegou ao conhecimento da Requerente por intermédio do vendedor da "F……….", que informou não conseguir levar a cabo o seu trabalho, em virtude de não lhe ser possível mostrar o imóvel aos seus clientes;
n) Em relação a uma determinada visita, por várias vezes adiada, como na data, por fim, marcada para a sua realização, a Requerida estivesse incontactável, a Requerente, após várias tentativas frustradas de contacto com a Requerida, prontificou-se a acompanhar aquele vendedor e o potencial comprador ao imóvel, facto de que deu conhecimento à Requerida;
o) Após os factos referidos na alínea anterior, a Requerida, sem que disso desse, sequer, conhecimento à Requerente, referiu ao vendedor da "F………." que iria proceder à substituição da fechadura da porta de entrada do imóvel;
p) Devido à recusa da Requerida em proceder à entrega à Requerente do imóvel em causa nos autos e suas fracções complementares, as relações entre ambas deterioraram-se, tendo chegado ao ponto de ruptura;
q) Em 2002/2003, havia sido efectuada uma penhora contra a Requerida, que incidiu sobre o recheio do imóvel, em causa nos autos, o qual é composto também por alguns imóveis que são pertença da Requerente, tendo a Requerente apenas tido conhecimento de tais factos em 2005;
r) A partir do ano 2000, a Requerida, ao contrário do que se tinha inicialmente comprometido e vinha sendo habitual, deixou de pagar o condomínio, quer geral quer o do Bloco em que se situa a fracção habitacional, em causa nos autos, ultrapassando actualmente a dívida os 3.600,00 Euros;
s) Só em 2005 é que a Requerente teve conhecimento que a Requerida tinha deixado de pagar as despesas de condomínio e que as cartas enviadas pela empresa encarregada da sua administração, a exigir o pagamento, e dirigidas à Requerente, para a morada do imóvel, nunca chegaram ao seu conhecimento, tendo sido recebidas pela Requerida, sendo que algumas delas, registadas, foram devolvidas por não reclamadas;
t) Sempre que a Requerida é abordada por alguém no condomínio, no sentido de regularizar os montantes em dívida, responde que é a Requerente que tem de resolver o problema por ser a proprietária da fracção;
u) Em Agosto de 2005, houve uma inundação na fracção "IV" (apartamento), que provocou danos na fracção do piso inferior;
v) A Requerida não só não permitiu aos representantes da empresa responsável pelo condomínio geral que os mesmos examinassem o andar, apenas franqueando a porta ao administrador do bloco, como não tem permitido que a companhia de seguros efectue a respectiva peritagem no andar, para detecção das causas do sinistro e da avaliação dos danos, a fim de ser paga a correspondente indemnização;
w) Tal peritagem, a não ser realizada, fará com que a seguradora se desresponsabilize de indemnizar os referidos danos, fazendo recair essa responsabilidade sobre a Requerente;
x) A não realização da peritagem em causa faz a Requerente ter legítimas dúvidas acerca do estado de conservação actual do imóvel, e respectivo recheio, quanto aos bens que ali se encontram e são pertença da Requerente;
y) Em virtude dos factos acima referidos, a Requerente encontra-se na iminência de ver recair sobre si dois ou mais processos judiciais, seja devido ao atraso nos pagamentos das despesas de condomínio, seja devido ao atraso nos pagamentos das prestações do crédito bancário concedido para aquisição das fracções em causa, seja ainda devido ao pagamento da indemnização dos prejuízos causados pela inundação verificada no andar habitado pela Requerida;
z) As dificuldades financeiras da Requerente vieram a agravar-se em virtude do seu divórcio, em 2004/2005, tendo a Requerente um filho a seu cargo, resultante desse casamento;
aa) Devido a toda a situação descrita, a Requerente viu-se obrigada, por motivos familiares, económicos e profissionais, a mudar a sua residência para o concelho de ………., distrito de Vila Real e, devido ao agravamento da sua situação económico-financeira, não lhe resta outra alternativa que não seja a de vender o imóvel em causa, o que só poderá fazer se tiver a possibilidade de o mostrar a eventuais interessados na compra.

Matéria de direito:
Delimitado o âmbito objectivo do recurso pelas conclusões das alegações da recorrente (arts. 684, n.º 3 e 690, n.º 1 do CPC), a matéria em discussão é, apenas, de direito, sendo, essencialmente, duas questões as questões a resolver:
Em primeiro lugar, a da caducidade da providência;
Em segundo lugar, não havendo caducidade, a da verificação dos pressupostos legais do procedimento cautelar que foi requerido.

De que procedimento cautelar falamos?
Inquestionavelmente, do procedimento cautelar comum, deduzido no uso da faculdade concedida ao possuidor pelo art. 395 do CPC.
A Requerente, considerando-se esbulhada, mas sem violência, no exercício da sua posse, vem pedir a restituição provisória da posse, mediante providência não especificada (não têm, assim, razão de ser as dúvidas postas pela Recorrente sobre qual o procedimento cautelar deduzido).

Na oposição, a Requerida invocou a caducidade da providência, com fundamento no disposto no art. 1282 do CC, nos termos do qual, “A acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a ocultas”.
Alegou que o procedimento cautelar foi intentado decorrido mais de um ano, contado desde a alegada prática de actos turbativos da posse da Requerente.

Não há dúvida de que, sendo instrumental relativamente à acção declarativa, a restituição provisória da posse está, também, sujeita ao mesmo prazo de caducidade. [1]
Por outro lado, tem-se entendido, maioritariamente, que o prazo de caducidade estabelecido no art. 1282 do CC se aplica, igualmente, ao procedimento cautelar comum possessório. [2]

Escreve-se, sobre a justificação da caducidade, no Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed.ª, de Pires de Lima e Antunes Varela, que:
“O prazo relativamente curto estabelecido para a proposição da acção e a inadmissibilidade da sua suspensão ou interrupção (art. 328) justificam-se não só pela necessidade de esclarecer rapidamente situações duvidosas, que pelo decurso do tempo mais obscuras se podem tornar e mais difíceis de provar quanto á matéria de facto, como ainda pela presunção de que o perturbado ou esbulhado, se não reage prontamente contra o autor da turbação ou do esbulho, é porque desiste das suas pretensões ou reconhece a posse de outrem. Relativamente á acção de restituição, ainda é de atender a que o esbulhado perde a sua posse decorrido um ano e um dia (art. 1267, n.º 1, alínea d)), deixando de poder fundamentar o seu pedido”.
Considerando a razão de ser da caducidade das acções de restituição de posse, entende, também, Mota Pinto, em Parecer publicado na CJ Ano X, Tomo III, p. 32 e ss., que:
“I – O art. 1282 do CC, ao estabelecer prazo de caducidade para a acção de restituição de posse, pressupõe o surgimento de uma posse no esbulhador que, ao fim de um ano e dia, extingue a posse do anterior possuidor esbulhado.
II – Se não surgir uma nova posse de ano e dia no esbulhador, que extinga ou faça caducar a posse do anterior esbulhado, não haverá caducidade do direito de accionar o esbulhador.
III – Isso acontece se, durante esse período de tempo, o esbulhador reconheceu que não possuía em nome próprio, sendo apenas mero detentor, por actos de tolerância”.

Atentando nos factos apurados, vemos que, em 1996, a Requerente/proprietária entregou, gratuitamente, à Requerida, por acordo verbal, entre ambas, o uso das fracções identificadas no requerimento inicial, passando esta, desde então, a habitar o apartamento em causa, apenas, com a obrigação de efectuar o pagamento das despesas de condomínio e das relativas aos consumos domésticos, designadamente, de água e de electricidade.
Acordaram, ainda, que, logo que a Requerente delas necessitasse, a Requerida, de imediato, restituiria as referidas fracções (als. c) e d) dos factos provados).

Se julgamos bem, as partes terão realizado, deste modo, entre si, um contrato de comodato, definido no art. 1129 do CC, como “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Contrato gratuito: não se mostra estipulada qualquer contraprestação como equivalente ou correspectivo do uso da coisa.
Não impedindo tal conclusão, o facto de terem sido impostos à Requerida certos encargos, já mencionados: o pagamento das despesas de condomínio, de água e de electricidade. [3]

Voltando a nossa atenção para os factos apurados, verificamos que a partir de 2002, a Requerente passou a solicitar à Requerida que esta lhe entregasse as fracções em causa.
A Requerida solicitou à Requerente para continuar a habitar as mesmas, no que esta foi anuindo.
Em 2003, uma vez que, só com muito custo e com atraso, ia conseguindo pagar as prestações mensais do crédito à habitação, estando prestes a ser accionada judicialmente pelo Banco, a Requerente celebrou com a imobiliária “F……….” um contrato com vista à venda das fracções em causa.
Tendo-se a Requerida comprometido a franquear o apartamento ao encarregado da venda da referida imobiliária, para que este pudesse mostrá-lo a eventuais interessados, comprometendo-se, igualmente, a abandonar as mesmas, logo que a venda fosse concretizada (als. g) a k) dos factos provados).

Significa isto, a nosso ver, que a Requerente, tendo em conta a solicitação da Requerida, por um lado, e a premência da sua própria situação financeira, por outro, terá, aparentemente, concordado na continuação do comodato, com o compromisso por parte da Requerida de franquear o andar ao encarregado da venda da imobiliária e de abandonar o mesmo logo que a venda se concretizasse.

Sucedeu, porém, que a Requerida passou a recusar-se sistematicamente a mostrar o andar em causa aos possíveis compradores.
A divida de condomínio, que a Requerida deixou de pagar desde o ano de 2000, ultrapassa já os € 3.600,00.
Ocorreu uma inundação no apartamento, que provocou danos no piso inferior, mas, a Requerida não permitiu que a companhia de seguros efectuasse a necessária peritagem.
Continuaram a agravar-se as dificuldades financeiras da Requerente.
Esta acabou, assim, por intentar o presente procedimento cautelar, pedindo a restituição da posse das fracções emprestadas.

Ora, o comodatário é, geralmente, tido como um mero detentor ou possuidor precário, [4] embora a lei lhe atribua tutela possessória (cfr. art. 1133, n.º 2 do CC). [5]
Sendo, ainda, certo que a descrita actuação da Requerida (designadamente, no período de tempo em análise) não é, manifestamente, a de quem se considera possuidor em nome próprio. Ao contrário, da sua conduta, ressalta que a Requerida não tinha “animus possidendi” sobre os bens em causa.
Apurou-se, mesmo, que, sempre que é abordada por alguém do condomínio, no sentido de regularizar os montantes em dívida, a Requerida responde que é a Requerente quem tem de resolver o problema por ser a proprietária (als. r) e t) dos factos provados).
Assim, não se tendo formado uma nova posse de ano e dia na Requerida, não chegou a Requerente a perder a sua posse (cfr. art. 1267, n.º 1 al. d) do CC).
Não tendo caducado a posse da Requerente/esbulhada, não é possível concluir pela caducidade do direito de accionar a Requerida/esbulhadora.

Afastada a caducidade, estarão preenchidos os pressupostos da providência não especificada definidos nos arts. 381, n.º 1 e 387, n.º 1 do CPC?
Como refere António Santos Abrantes Geraldes, [6] partindo do modo como vem regulada a matéria, a jurisprudência tem frequentemente afirmado que o decretamento de providências não especificadas está dependente da conjugação dos seguintes requisitos:
a) Probabilidade séria da existência do direito invocado;
b) Fundado receio de que outrem, antes de acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
c) Adequação da providência à situação de lesão iminente;
d) Não existência de providência especifica que acautele aquele direito.

Não vamos alongar-nos sobre cada um deles, dados como verificados, na decisão recorrida.
Sobre a probabilidade forte da existência do direito, observaremos, apenas, em face das considerações acima feitas, que, apresentando-se, claramente, no seu início, como um comodato sem prazo (sujeito ao regime do art. 1137, n.º 2 do C. Civil), não terá deixado de o ser, após o compromisso pela Requerida de abandonar o andar em causa, logo que fosse concretizada a respectiva venda (aparentemente, aceite pela contraparte): este compromisso terá tido o significado de uma condição (incertus an), podendo a comodante exigir a restituição da coisa a todo o tempo. [7] / [8]
Sobre o chamado “periculum in mora”, considera-se, na decisão recorrida:
“A Requerente encontra-se privada da posse sobre as fracções descritas nos autos e impossibilitada de dispor das mesmas, designadamente, para as poder alienar, se assim o entender e, dessa forma, resolver o problema financeiro que deriva do direito de propriedade de que é titular sobre as fracções em causa.
Esse problema financeiro, que se tem vindo a agravar, e ao qual a Requerente pretende pôr termo, respeita, quer à acumulação da dívida das prestações relativas ao crédito bancário concedido para aquisição das fracções em causa, quer à acumulação de despesas não pagas relativas ao condomínio onde as referidas fracções se inserem, quer ainda à possibilidade real de a requerente vir a ser judicialmente accionada para pagar indemnizações resultantes dos prejuízos causados no andar do piso inferior do prédio, pela inundação ocorrida no andar de que é proprietária, conforme resultou da matéria de facto apurada.
A tudo acresce ainda o facto de a Requerente desconhecer o estado dos bens que lhe pertencem e fazem também parte do recheio do apartamento, assim como desconhece o estado do próprio apartamento, sobretudo após o sinistro acima referido, dado encontrar-se impedida de o verificar”.
Acrescentamos nós: e como há-de a Requerente conseguir encontrar comprador para o andar, cuja venda tem necessidade premente de efectuar (v. alíneas y), z) e aa) dos factos provados), se não o pode mostrar a eventuais interessados?

Cremos, deste modo, estarem genericamente preenchidos os requisitos do procedimento cautelar comum.

Todavia, ao abrigo do art. 392, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, segundo o qual, “o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida”, e sem violar o princípio do pedido, entendemos que a providência mais adequada ao caso concreto será a de impor à Requerida as seguintes obrigações: que faculte o exame das fracções em causa (além de, evidentemente, à própria Requerente), [9] quer ao funcionário da empresa imobiliária contratada e aos potenciais interessados na compra das mesmas, quer ao perito da seguradora incumbida de efectuar a peritagem dos danos resultantes da inundação ocorrida; e que, uma vez realizada a venda das fracções em causa, proceda à sua imediata restituição à Requerente. [10]

Por outro lado, nos termos do art. 829-A do CC, a sanção pecuniária compulsória será fixada em 20 euros, por cada infracção ou, uma vez realizada a venda, por cada dia de atraso na restituição das fracções em causa.

Decisão:
Acorda-se assim, em, no provimento parcial do agravo, alterando a decisão recorrida, impor à Requerida C………. que: faculte o exame das fracções em causa (além de á própria Requerente B……….), ao funcionário da empresa imobiliária contratada, aos potenciais interessados na compra das mesmas e ao perito da seguradora incumbida de efectuar a peritagem dos danos resultantes da inundação ocorrida; uma vez realizada a venda das fracções em causa, proceda à sua imediata restituição à Requerente.
Nos termos do disposto no artigo 829-A do Código Civil, fixa-se uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 20,00, por cada infracção ou, realizada a venda, por cada dia de atraso na restituição das fracções em causa.
Custas por ambas as partes, na proporção de 1/3 para a Requerente e de 2/3 para a Requerida.

Porto, 1 de Outubro de 2007
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues

_________________________________________
[1] Como escreve Menezes Cordeiro, in A Posse, 3.ª ed., p. 144, “A restituição provisória não impede, por si, a caducidade referida no artigo 1282 do Código Civil: apenas as acções possessórias aí previstas o poderão fazer. Em compensação, a própria restituição provisória não caduca se, depois, for movida uma acção de reivindicação: esta última tem eficácia possessória, podendo, pois, amparar um procedimento cautela possessório”.
[2] Neste sentido, v., entre outros, José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, p. 82; António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, p. 65. Na jurisprudência, v., p.e. Ac. da RC de 4 de Novembro de 1998, CJ Ano XXIII, Tomo V, p. 11.
[3] No sentido da admissibilidade da figura do comodato modal, apesar de não estar expressamente prevista na lei, v., entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 4.ª ed., p. 742; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume III, Contrato em Especial, 3.ª ed., p. 371; na jurisprudência, v.g. Ac. do STJ de 21 de Maio de 1998, CJ Acs. STJ Ano VI, Tomo II, p. 95.
[4] Neste sentido, p.e. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 4.ª ed., p. 749.
[5] É muito discutida a questão de saber se os direitos dos locatários, do parceiro pensador, do comodatário e do depositário se devem qualificar como reais: v, por todos, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., p. 298.
[6] Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 2.ª ed., p. 81.
[7] Cfr. Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, 3.ª ed., p. 384.
A não se entender assim, sempre, a nosso ver, em face dos factos provados, existiria fundamento para a resolução do contrato (cfr. art. 1140 do CC).
[8] Conforme refere Pedro Romano Martinez, na sua obra Da Cessação do Contrato, p. 361, “A interpelação para restituir a coisa, num contrato de duração indeterminada, em que nãos e fixou um uso determinado (e temporal) para essa coisa, tem de ser entendida como uma hipótese de denúncia”.
[9] Cfr. art. 1135, al b) do CC.
[10] Conforme adverte Lopes do Rego, em Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª ed., p. 345:
“Sendo da essência dos procedimentos cautelares a obtenção provisória de uma tutela para o direito ameaçado, não será viável – por contrariar tal finalidade conservatória ou antecipatória típica – obter uma sentença condenatória que represente a composição definitiva do litígio: assim, (Ac. da Relação, in BMJ 479, pág. 736) não será possível pedir a entrega imediata do prédio, no caso de se invocar cessação do contrato de arrendamento, já que tal representaria a pura e simples execução de uma decisão definitiva”.