Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
378/10.8TTVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERREIRA DA COSTA
Descritores: SANEADOR
FACTOS PROVADOS
OMISSÃO
Nº do Documento: RP20110704378/10.8TTVNG.P1
Data do Acordão: 07/04/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADO O SANEADOR-SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I – Decidida a causa através de saneador-sentença, sem se ter assentado os factos provados e não provados e respectiva fundamentação, tal decisão é de anular, atento o disposto no Art.º 712.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil, devendo os autos seguir a sua normal tramitação.
II – Não se tratando de decisão deficiente, contraditória ou obscura, mas omissa, quanto à matéria de facto, a necessidade de anulação é, se não maior, pelo menos idêntica, tendo em vista a possibilidade de sindicância por parte da Relação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Reg. N.º 776
Proc. N.º 378/10.8TTVNG.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B… intentou em 2010-03-22 contra C…, Ld.ª, a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, pedindo que se condene a R. a pagar ao A. a quantia de € 7.675,55, sendo € 1.452,00 de indemnização de antiguidade e a restante relativa a diferenças salariais, retribuição vencida, subsídio de alimentação, férias e respectivo subsídio vencidos e férias, respectivo subsídio e subsídio de Natal, proporcionais ao tempo de trabalho prestado no ano da cessação do contrato de trabalho, sendo tudo acrescido de juros, à taxa legal, a contar da citação até efectivo pagamento.
Alega o A., para tanto e em síntese, que tendo sido admitido ao serviço da R. em 2006-09-25 para, por tempo indeterminado, exercer as funções correspondentes à categoria profissional de armador de ferro de 2.ª, mediante a retribuição mensal de € 484,00 e diária de € 5,93, a título de subsídio de alimentação, por carta de 2009-04-16 resolveu o contrato de trabalho, com alegação de justa causa, consistente na falta culposa de pagamento da retribuição dos meses de Janeiro a Março de 2009 e na circunstância de a R. ter colocado o A. em total inactividade desde 2009-04-03. Mais alega que não lhe foram pagas as diferenças salariais verificadas na retribuição desde Outubro de 2006.
Contestou a R., por impugnação, invocando o abuso de direito e a litigância de má fé do A. e deduziu reconvenção a pedir a quantia de € 532,00, correspondente à indemnização por falta de aviso prévio pois, em seu entender, não ocorreu justa causa para o A. resolver o contrato de trabalho com esse fundamento.
O A. respondeu à contestação, por impugnação, o que fez também relativamente a um documento junto pela R. e assinado pelo A., tendo alegado que o fez porque, caso contrário, a R. não lhe pagava o salário e ele tinha necessidade do mesmo para pagar a mensalidade da casa e outros encargos, tendo havido erro na declaração de vontade, a determinar a sua anulabilidade, sendo nula na parte em que renuncia a direitos, pelo que o documento apenas demonstra que a R. pagou ao A. a quantia de € 670,00.
A R. juntou a fls. 95 um documento intitulado “Declaração”, assinado pelo A., cujo teor, na parte que ora interessa considerar, é o seguinte:
“B… … declara para os devidos e legais efeitos, ter recebido nesta data da empresa C…, Ld.ª … a quantia de 670,00€…
Com o recebimento desta quantia, da qual se dá a devida quitação através desta declaração, o declarante considera-se integralmente ressarcido de todos os créditos resultantes de direitos emergentes da relação contratual que detém para com a empresa em causa, pelo que expressamente e por sua livre iniciativa declara que a referida empresa nada mais lhe deve, a qualquer título que seja.
Esposende, 10 de Abril de 2009”.
Proferido despacho saneador tabelar e sem assentar os factos considerados provados e não provados e respectiva fundamentação, o Tribunal a quo julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a R. dos pedidos formulados pelo A.
Inconformado com o assim decidido, veio o A. interpôr recurso de apelação, tendo formulado a final as seguintes conclusões:

A - A Jurisprudência e a Doutrina são pacíficas ao considerar que os direitos dos trabalhadores a salários e subsídios são irrenunciáveis durante a vigência do contrato de trabalho.
B - Em 10 de Abril de 2009 o contrato de trabalho estava vigente e nessa data não se imaginava que iria cessar em 16 de Abril de 2009.
C - Pelo que a declaração subscrita pelo A. nessa data nunca poderia constituir quitação de direitos irrenunciáveis como salários e subsídios e muitos menos poderia constituir remissão abdicativa de créditos futuros, ainda não vencidos e que ninguém sabia quando se iriam vencer, designadamente férias vencidas e proporcionais e subsídios decorrentes e ainda indemnização de antiguidade.
D - No domínio do Direito do Trabalho e no que diz respeito à obrigação de pagar salários na forma devida a um trabalhador, é imperioso ter em consideração princípios de Ordem Pública e Social, que justificam o afastamento dos princípios gerais das obrigações, nomeadamente o disposto no art. 863º do Cod. Civil.
E - Como ensinam Jorge Leite e Coutinho de Abreu " As declarações do trabalhador reduzidas ou não a escrito,feitas,em geral, por ocasião da extinção do contrato de trabalho de que "nada mais tem a exigir da entidade patronal ","se considera pago de tudo quanto lhe era devido" , "recebeu todas as importâncias que lhe eram devidas", ou outras equivalentes, não têm o valor de recibo de quitação. E não o têm, desde logo, em atenção à natureza dos direitos em causa. Na verdade, o direito à retribuição é irrrenunciável e é indisponível, ou pelo menos parcialmente indisponível. Parece não poder qualificar-se de modo diferente o crédito que é constitucionalmente garantido (art. 60º, 1 da CRP). ( vide in Colectânea de Leis do Trabalho, a pag. 96 em anotações ao art. 94º da LCT).
F - Na vigência do contrato de trabalho tal declaração não tem validade, sendo nula e de nenhum efeito.
G - Tanto mais que em 10 de Abril de 2009 não tinha cessado a prestação laboral, já que o A. estava colocado em casa por ordem da Ré, na perfeita disponibilidade desta.
SEM PRESCINDIR.
H - O A. invocou na sua resposta à contestação que só assinou a declaração que a Ré junta sob doc. nº 5 porque se o não fizesse a Ré não lhe pagava o salário e o A. tinha necessidade imperiosa do mesmo para fazer face aos seus compromissos com prestação da casa e outros e que só o fez por ter sido coagido, com a ameaça de não pagamento do referido salário vital para a satisfação das necessidades básicas do A. e sua família.
I - O A. tinha indicado na PI testemunhas com conhecimento directo do ocorrido no dia 10 de Abril de 2009, que podiam por isso testemunhar sobre os factos alegados na resposta à contestação, não havendo qualquer impedimento legal ou processual a que tais testemunhas depusessem em julgamento sobre tal matéria.
J - Pelo que não tinha que as arrolar na resposta à contestação.
L - O alegado pelo A., aqui recorrente, demonstra, a ser provado, que a entidade patronal, aqui recorrida, violou o principio da boa fé consagrado no art. 126º, 1 do Código do Trabalho.
M - A entidade patronal que coloca um trabalhador no dilema de assinar o "recibo de quitação" ou não receber o salário, pois se não o assinar não lhe entrega o dinheiro vital para o trabalhador pagar as suas necessidades básicas e de subsistência, bem como da sua família" viola tal princípio, o que implica que o recibo de quitação assim obtido não seja válido.
N - A declaração de quitação não tem as virtudes que lhe achou o M.Juiz a quo, pelo que a sentença nela baseada deve ser revogada e substituída por outra que mande prosseguir o processo para a fase de julgamento.
O - A douta sentença fez errada interpretação da lei, tendo violado o disposto nos artigos 236°, 255°, 393°, 787°, 863°, 1 do CC, nos art. 126,127 do C. Trabalho e nos art. 59° e 60°, 1 da CRP.
P - Deve, pois, ser revogada a douta sentença, ordenando-se o prosseguimento do processo para a fase de julgamento, com as legais consequências.

A R. apresentou a sua contra-alegação, pedindo a confirmação da decisão.
O Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação, emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento
Recebido o recurso, elaborado o projecto de acórdão e entregues as respectivas cópias aos Exm.ºs Juízes Desembargadores Adjuntos[1], foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.

Estão provados os factos constantes do antecedente relatório.

Fundamentação.
Sendo pelas conclusões do recurso que se delimita o respectivo objecto[2], como decorre do disposto nos Art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo diploma referido na nota (1), ex vi do disposto no Art.º 87.º, n.º 1 do Cód. Proc. do Trabalho[3], a única questão a decidir nesta apelação consiste em saber se deve ser revogada a decisão recorrida.
Vejamos.
Entendeu o Tribunal a quo no saneador-sentença que, face ao teor do documento de quitação acima transcrito e junto aos autos a fls. 95, o A. renunciou a todos os eventuais direitos que tinha contra a R. e que tal é legal, uma vez que a declaração foi emitida em data posterior – 2009-04-10 – à da cessação de facto do contrato de trabalho, em 2009-04-03.
Já o A. entende que o contrato apenas cessou na data da recepção da carta emitida em 2009-04-16, na qual declarou à R. que resolvia o contrato com alegação de justa causa, consistente na falta culposa de pagamento da retribuição dos meses de Janeiro a Março de 2009 e na circunstância de a R. ter colocado o A. em total inactividade desde 2009-04-03, pelo que a declaração de fls. 95, tendo sido efectuada na vigência do contrato, é anulável ou nula, pois os direitos em causa ainda eram irrenunciáveis e a declaração foi obtida mediante coacção.
Destas duas posições, sumariamente expostas, decorre com meridiana clareza que há divergência acerca da data em que o contrato cessou, o que é da máxima importância para a solução do litígio, atentas as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Aliás, como se refere no antecedente relatório, proferido despacho saneador tabelar e sem assentar os factos considerados provados e não provados e respectiva fundamentação, o Tribunal a quo julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a R. dos pedidos formulados pelo A.
Dispõe o Art.º 712.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil:
Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.

Desta disposição decorre que se a decisão da matéria de facto contiver os vícios apontados, a decisão pode ser anulada pela Relação, mesmo oficiosamente.
Tem-se entendido que tal estatuição deverá ser aplicada àquelas situações em que se assentou os factos na sentença, mas se omitiu o despacho de resposta aos quesitos e respectiva fundamentação ou o despacho a assentar a matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação. Igualmente se tem entendido que se a decisão da matéria de facto omitir a relação dos factos não provados, é de aplicar a mesma disciplina. Por último, também se tem entendido que a norma é de aplicar nos casos em que a decisão da matéria de facto foi completamente omitida, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados, quer quanto à respectiva fundamentação, como sucede in casu. Ora, relativamente a esta última situação, que é a nossa, a alicação da norma impõe-se, se não por maioria, pelo menos por identidade de razão. Na verdade, se uma decisão da matéria de facto, deficiente, obscura ou contraditória, impede a Relação de sindicar, quer a decisão de facto, quer a decisão de direito, a omissão da decisão de facto impede, em absoluto e em toda a extensão, a referida sindicância. Daí que, a nosso ver, a disciplina constante da norma em apreço é igualmente aplicável aos casos em que a decisão da matéria de facto foi completamente omitida.[4]
Do exposto decorre que, in casu, deve ser anulado o saneador-sentença, atento o disposto no Art.º 712.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil, devendo proceder-se a julgamento com vista ao apuramento da data da cessação do contrato de trabalho, bem como dos factos alegados a respeito da invalidade da declaração de fls. 95, assentando os factos provados e não provados e respectiva fundamentação, devendo de seguida ser proferida sentença em conformidade.
Procede, destarte, a apelação, embora por razões não coincidentes.

Decisão.
Termos em que se acorda em anular o saneador-sentença, atento o disposto no Art.º 712.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil, devendo proceder-se a julgamento com vista ao apuramento da data da cessação do contrato de trabalho, bem como dos factos alegados a respeito da invalidade da declaração de fls. 95, assentando os factos provados e não provados e respectiva fundamentação, devendo de seguida ser proferida sentença em conformidade.
Custas pela parte vencida a final.

Porto, 2011-07-04
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
António José Fernandes Isidoro
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho
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[1] Atento o disposto no Art.º 707.º, n.º 2 do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, ex vi do disposto nos Art.ºs 11.º, n.º 1 – a contrario sensu – e 12.º, n.º 1, ambos deste diploma.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, 1981, págs. 308 a 310 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1986-07-25 e de 1986-10-14, in Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, n.º 359, págs. 522 a 531 e n.º 360, págs. 526 a 532.
[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13 de Outubro.
[4] Cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1999-02-24, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 484, págs. 304 a 307, n.º 360, págs. 526 a 532, da Relação do Porto de 2008-10-20, Processo 0855096, in www.dgsi.pt e da Relação de Lisboa de 1999-07-01, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIV-1999, Tomo IV, págs. 90 e 91.
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S U M Á R I O
I – Decidida a causa através de saneador-sentença, sem se ter assentado os factos provados e não provados e respectiva fundamentação, tal decisão é de anular, atento o disposto no Art.º 712.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil, devendo os autos seguir a sua normal tramitação.
II – Não se tratando de decisão deficiente, contraditória ou obscura, mas omissa, quanto à matéria de facto, a necessidade de anulação é, se não maior, pelo menos idêntica, tendo em vista a possibilidade de sindicância por parte da Relação.