Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0622272
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA DE PAIVA
Descritores: RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RP
Data do Acordão: 03/30/2006
Votação: .
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO.
Decisão: DEFERIDA.
Indicações Eventuais: LIVRO 2 - FLS. 87.
Área Temática: .
Sumário:
Reclamações: RECLAMAÇÃO 2272/06-2.ª, do Tribunal da Relação do PORTO

ADS ……/03.1TYVNG-…..º, do Tribunal de COMÉRCIO de VILA NOVA de GAIA

A R., B………. - SA, vem, junto do Presidente da Relação, apresentar RECLAMAÇÃO do despacho que fixou a subida “com o primeiro que depois deste haja de subir imediatamente” e com efeito “devolutivo”, ao recurso do despacho que Defere o EXAME à Sua ESCRITA MERCANTIL, requerida pela A., C………., em acção de Anulação de Deliberação Social, entre outras, de Aprovação RELATÓRIO e CONTAS, de 2001, alegando o seguinte:
A A. pede que as deliberações tomadas na assembleia geral da Ré, B…………, S.A., de 28.03.2003, sejam declaradas e julgadas inválidas, nulas ou que seja declarada a sua anulação;
Requereu o exame pericial à escrita da 1.ª Ré, com o seguinte objecto: “... apurar se a contabilidade mercantil da sociedade Ré representa correcta, integral e adequadamente ou não a actividade da Ré e as suas contas reais respeitantes às transacções comerciais efectuadas nos exercícios de 2001 e 2002 e se tal contabilidade está elaborada nos termos da lei, verificando a que actividade ou actividades a que a Ré se dedicou durante os exercícios de 2001 e 2002, sindicando todos os respectivos actos nomeadamente os respeitantes a compras e vendas, pagamentos ou recebimentos, auscultação de preços reais e quaisquer arrendamentos em vigor e na pendência dos referidos exercícios”;
“A perícia deve fazer a sindicância e a recompilação dos elementos respeitantes a todas as operações da actividade da Ré com a reconciliação de todas as contas bancárias, próprias ou alheias, em que tenham sido movimentados recursos da R, utilizando todas as técnicas e critérios necessários a apurar a correspondência, ou falta dela, das operações realizadas de facto por contraposição das operações espelhadas na contabilidade”;
“Concretamente, deve a perícia revelar e informar: Que utilização foi dada aos recursos financeiros da Ré durante os exercícios de 2001 e 2002?”
“Que negócios ou operações realizou a Ré durante tais exercícios, em especial aquisições e alienações?”
“Que documentos suportam tais negócios ou operações (v.g. contratos promessa de compra e venda, escrituras públicas ou outros)?”
“Quais os respectivos valores?”
“Que meios de pagamento foram utilizados e onde foram depositados?”
“Que contratos estão em vigor, nomeadamente de arrendamento? Qual o valor das rendas? Quem as recebe? Onde são depositadas? Que destinos lhes é dado?”
Visa a A. a prova dos arts. 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26;
A execução imediata do despacho implica publicidade de informações e documentos;
Traduzir-se-ia em prejuízo irreparável, pela impossibilidade de voltar a tornar sigiloso o que já se tornou conhecido;
Como observa Luso Soares, em “O Agravo e o seu Regime de Subida”, p. 258, “a atribuição de efeito suspensivo ao abrigo do disposto no art. 740º, nº 2, al. d), e nº 3, implica a subida do agravo imediatamente e nos próprios autos;
O Tribunal considerou não parecer “que a execução imediata do despacho cause prejuízo”, porquanto “os Peritos estão obrigados ao dever de sigilo profissional e se, matéria sigilosa houver, todos os intervenientes estão sujeitos ao respectivo dever de sigilo, devendo os peritos responder aos quesitos de modo a salvaguardar aquele dever.”;
Não resulta que os Peritos estejam, sem mais, sujeitos a qualquer dever de sigilo, porquanto, por força da realização da perícia, não se estabelece nenhuma relação entre ele e a 1ª Ré da qual resulte qualquer dever de sigilo para os primeiros;
Ao contrário do advogado, do revisor oficial de contas ou do técnico de contas, sobre quem recai um específico dever de sigilo profissional no exercício das respectivas profissões, sobre o perito, na realização de uma perícia judicial, não recai, por si só, qualquer dever de sigilo;
Não invoca a A. ou o despacho qualquer norma de onde resulte tal dever;
Nos precisos termos em que foi ordenada, “a perícia implicará sempre o conhecimento e a divulgação pelos Peritos de informação, de factos e documentos, atinentes à esfera privada da Ré, cuja reserva é legítima” - Ac. STJ, de 21.04.1993, em www.dgsi.pt;
Por outro lado, considerando o objecto e a extensão da perícia, tal como foi requerida e ordenada, os Peritos não se poderão limitar a responder “provado” ou “não provado”, implicando necessariamente o resultado da perícia a divulgação de informações e documentos relativos à vida societária da Ré, aos quais a A. obviamente acederá, apesar de tal direito lhe estar vedado, por não preencher os pressupostos de que o art. 288.º, do C. Sociedades Comerciais faz depender o acesso a tais elementos;
Na verdade, a A. não reúne nenhuma das condições de que o preceito faz depender o direito à informação dos accionistas;
Por um lado, a A. apenas possui acções que representam 0,2 % do capital social da Ré (arts. 1º e 4º da p. i. );
Por outro, não invoca qualquer motivo justificativo, entendendo-se este motivo como um interesse sério e relevante, para a obtenção das informações que pretende;
A A. não invoca nenhuma situação em concreto, facto, contrato, pagamento, recebimento … enfim, nada, em concreto, que pretenda ver esclarecido com a perícia, excedendo a mesma, no que se refere ao seu objecto e extensão, as informações taxativamente enumeradas nas als. do art. 288º do C.S.C. a que o accionista pode aceder, preenchidos que estejam os pressupostos do direito à informação aí previstos;
A A. pretende claramente contornar o disposto no art. 288º do C.S.C., obtendo pela via da perícia aquilo que a norma, de natureza imperativa, não lhe permite;
Raúl Ventura, em Novos Estudos sobre Sociedades Anónimas e Sociedades em Nome Colectivo, Comentário ao CSC, p. 134, referindo-se aos arts. 288º, 289º, 290º e 291º do C.S.C, diz: “…são limitativos ou taxativos (ressalvadas as estipulações lícitas do contrato de sociedade já referidas): tanto no sentido de que a lei confere esses 4 direitos à informação e só esses; como, no sentido de que cada um deles só pode ser exercido nos precisos moldes em que a lei o confere.”;
A razão de ser de tais limitações explicita-a a p. 133: “Ao disciplinar nas sociedades anónimas o direito de informação dos accionistas (e doutras entidades com interesses na sociedade) o legislador teve de conciliar vários interesses; além do perigo, sempre existente em qualquer tipo de sociedade – agravado neste caso pela facilidade de compra de uma acção – de as informações prestadas poderem ser usadas em prejuízo da sociedade, o eventual grande número de accionistas e a consequente possibilidade de multiplicação dos pedidos de informação aconselham prudência na outorga deste direito aos accionistas”;
“Acresce que, nas sociedades anónimas, porque as acções e obrigações por elas emitidas constituem valores mobiliários, a lei – CSC e Cód. MVM – organiza um regime de publicidade dos factos sociais, que, embora destinado à generalidade dos investidores, também fornece informações aos actuais accionistas”;
A perícia traduz-se em vã tentativa de obter factos não alegados na p. i.;
A perícia cai na proibição do art. 41º, do C. Comercial, que visa a defesa do segredo, crédito e garantia dos comerciantes e o êxito das respectivas operações;
Com este segredo procura-se proteger “a privacidade do comerciante, de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as perspectivas do negócio” (L. Brito Correia; Direito Comercial, I, p. 309);
E, muito embora o art. 42º do CC permita a exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro e dos documentos a ela relativos a favor dos interessados em questões de sociedade, necessário é que tal exame se justifique, face às questões a decidir, o que manifestamente não é o caso dos autos;
A prova pericial traduz, na prática, um autêntico inquérito judicial;
Que a A. não está em condições de requerer, face ao disposto no art. 67º-nº 1 do CSC, já que a Ré apresentou atempadamente o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, que foram devidamente aprovados;
Assim como também não se verificam os pressupostos de que o art. 292º faz depender a instauração do inquérito judicial, pretendendo a A., pela via da perícia, contornar a impossibilidade de requerer inquérito judicial, resultante das aludidas normas;
O prejuízo que a perícia causaria à Ré seria grave, pela divulgação de factos, documentos e outros elementos protegidos pelo sigilo comercial e pela reserva da esfera privada da sociedade que sempre implicaria;
Tal prejuízo seria, obviamente, irreparável, pois, uma vez realizada a perícia, aos mesmos elementos, factos e documentos seria dada uma publicidade insusceptível de reparação;
Nestas circunstâncias, caso o Tribunal venha a julgar o agravo interposto procedente, já não terá qualquer efeito útil, pois todo o efeito do recurso se perderá com a subida diferida e o efeito devolutivo, face à imediata realização da perícia que tal implicará, quando é certo que o que a Ré pretende é impedir a sua realização.
CONCLUI: o agravo deve ser admitido com subida imediata.
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Conforme resulta da natureza do recurso de agravo interposto, a sua retenção torna-o absolutamente inútil, nos termos do art. 734.º-n.º2, do CPC, segundo o qual “sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis”. Na verdade, a retenção do recurso teria como consequência a produção dos efeitos imediatos do despacho recorrido, isto é, a Recorrente veria, desde já e antes de apreciado o recurso, proceder-se à perícia. Ora – tudo aponta para aí – o que a Recorrente-Reclamante pretende é tão somente que não seja invadida a sua esfera comercial, procedendo-se à requerida e ordenada perícia. Todavia, se o recurso tiver subida diferida e com efeito devolutivo, não há dúvida de que aquela ocorre.
Se o recurso vier a ser julgado provido, sem dúvida, que a perícia fica sem efeito, só que no sentido de que deixam de ser validados os elementos, eventualmente, colhidos como prova. Mas a perícia que tiver tido o seu início não deixa de ter sido iniciada e, como tal, a invasão do segredo comercial consumou-se. Com efeito, entretanto, a divulgação “pública” concretizou-se – “sem apelo ...nem agravo”! Daí a inutilidade do recurso.
De qualquer maneira, se o for, com o conhecimento imediato do recurso, pode o Tribunal de Recurso, ao abrigo do disposto no art. 689.º-n.º2, corrigir o que ora se decide, se se entender que não se justifica a subida imediata do recurso, por os verdadeiros fins do mesmo serem, exclusivamente, a obstrução à prova dos factos alegados pelo A..
Afirma AMÂNCIO FERREIRA, no “Curso de P. de Execução”, a fls. 291: “Respeitando o protesto a bens imóveis, não se tomam quaisquer cautelas quanto a eles, por o reivindicante poder confiar na sua entrega, em caso de triunfo da acção, dado ser difícil ocultar ou fazer desaparecer bens desta natureza”. Só que aqui está em causa não um “bem”, propriamente dito, não uma “coisa”, mas “acto”, “acção”, “situação”, que consistem em “entrar-sair duma esfera, privada e profissional, em que há interesses de todo um comércio. Constitui um exemplo das dificuldades na sua futura recuperação – nada será como antes.
Ora, caso o Tribunal viesse a dar provimento ao recurso, a decisão já não teria qualquer efeito útil. Nem sequer é um caso de correr riscos, de não surtir efeito algum, como nos casos em geral acontece. No caso dos autos, tal como nos é descrito, todo o efeito do recurso perde-se com a subida diferida e efeito devolutivo. A decisão, ainda que favorável à Reclamante, seria, inevitavelmente, inútil. Estamos perante um caso em que se conclui pela inutilidade, desde já, em termos de certeza absoluta.
“«Absolutamente» inútil”, como exige a lei? É, portanto, o que podemos afirmar.
Ainda que numa eventual equação de valores, optamos pela prevalência da preservação da privacidade, não só pela precariedade da nossa decisão.
Tem, pois, aplicação o estatuído no art. 734.º-n.º2, tornando completamente inútil o recurso.
“Quando a retenção é inútil...” o que ocorre quando resulta um prejuízo que, de forma alguma, pode ser solucionado, se o conhecimento do recurso ocorrer num momento ulterior. A lei exige que o recurso não seja tão só inútil como ainda com carácter “absoluto”. Ou seja, não deve aguardar-se o conhecimento do recurso, se, porque, entretanto, o conhecimento foi retardado, o recorrente não obtiver, apesar de provido, vantagem alguma ou qualquer eficácia dentro do processo.
A inutilidade que a lei defende não é a eventual dos actos processuais, mas, sim, a inutilização absoluta do «recurso».
Poder-se-ia argumentar que os perigos invocados não se revestem de grau sensível na medida em que quem executa o exame tem de guardar sigilo, que a “privacidade” em sociedade e comercial não será justificável. Só que o objecto da perícia não é, de forma alguma, limitado, enquanto é toda uma escrita, de 2 anos civis. É uma invasão e, como tal, é irrecuperável, pelo que, em decisão final e a nível de “Reclamação”, não nos devemos opor à pretensão. Nem haverá grande “mal” na subida imediata, enquanto o recurso sobe de imediato. Cada um é que sabe os valores que estão em causa.
Quanto a segundas intenções, quanto à falta de legitimidade e fundamentação, isso é outra questão, a apreciar e a decidir em sede de recurso, pelo que nos dispensamos de, nesse segmento, nos debruçarmos.
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Em consequência e em conclusão,
DEFERE-SE a RECLAMAÇÃO, interposta na ADS ……/03.1TYVNG-…..º, do Tribunal de COMÉRCIO de VILA NOVA de GAIA, pela R., B…….. - SA, do despacho que fixou a subida “com o 1.º que depois deste haja de subir imediatamente” e com efeito “devolutivo”, ao recurso do despacho que Defere o EXAME à Sua ESCRITA MERCANTIL, requerida pela A., C………., em acção de Anulação de Deliberação Social, entre outras, de Aprovação do RELATÓRIO e CONTAS, de 2001, pelo que REVOGA-SE o despacho reclamado, que deve ser SUBSTITUÍDO por outro que determine a subida imediata.
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Sem custas.

Porto, 30 de Março de 2006

O Presidente da Relação
José Ferreira Correia de Paiva
Decisão Texto Integral: