Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0624769
Nº Convencional: JTRP00039721
Relator: ALZIRO CARDOSO
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RP200611140624769
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 231 - FLS. 193.
Área Temática: .
Sumário: I- Estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar (por erro judiciário cometido por tribunais não pertencentes à jurisdição administrativa) a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa.
II- Tratando-se da apreciação de acção de responsabilidade por actos atribuídos aos Magistrados do Ministério Público, por estes exercerem uma função jurisdicional, privativa dos juízes, a competência cabe aos tribunais administrativos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I- Relatório
B………….. instaurou acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária contra o Estado Português, pedindo a sua condenação no pagamento da indemnização de € 50.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Fundamentou o pedido alegando, em resumo, que:
No dia 3 de Dezembro de 2004, pelas 16h25m, foi dado cumprimento, nas instalações do Tribunal Judicial de Gondomar, a um mandado de detenção do Autor “para no prazo máximo de quarenta e oito horas ser presente a interrogatório judicial – art.s 141º e 254º, n.º 1, al. a) e 257º n.º 1 do Código Processo Penal», mandado esse emitido dias antes por um Magistrado do Ministério Público no âmbito do Processo n.º ……/03.6TAGDM da ….ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Gondomar, o qual foi cumprido por agentes da Policia Judiciária após apresentação voluntária do Autor nas instalações do Tribunal precisamente para ser ouvido no âmbito desse processo, agentes esses que, tal como o Magistrado do Ministério Público que emitiu o mandado, sabiam da presença voluntária do Autor no local onde o mesmo foi cumprido, presença essa que, para além do mais, havia sido acordada após troca de requerimentos e faxes entre o mandatário do Autor e o Magistrado do Ministério Público que havia emitido o mandado, na sequência de pedido efectuado pelo Autor, ao abrigo dos artigos 59º e 58º, n.º 1, al. a), do Cód. Processo Penal, para ser ouvido em declarações no âmbito do referido processo, para ser constituído (ou não) arguido.
A apresentação voluntária do Autor fez cessar a fundamentação cautelar dos mandados na perspectiva da sua emissão para aplicação de uma medida coacção, pelo que o seu cumprimento, com a consequente privação da liberdade até ser restituído à liberdade pela Mª .Juiz de Instrução Criminal, à qual foi presente às 19h30m, visava dar ao Autor um tratamento vexatório.
Tal desnecessária privação da liberdade e a manifesta ilegalidade da execução da detenção, não eliminada pelas autoridades judiciárias, logo que de todos os contornos da mesma tiveram conhecimento, pela carga negativa associada à ideia de detenção e face à divulgação dada pela comunicação social e aproveitamento por antagonistas do Autor, bem como pelo facto de ter sido determinada para ser executada na véspera do lançamento de um livro de autobiografia, lesaram o seu direito à honra e bom nome, constituindo fundamento para indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos que avalia em quantia não inferior a € 50.0000,00.

Citado, o Réu contestou, impugnando parcialmente os factos alegados pelo Autor e pugnando pela improcedência do pedido, uma vez que o mandado de detenção tinha que ser necessariamente cumprido para o fim a que se destinava – primeiro interrogatório judicial de arguido detido – e que a Mª Juiz de Instrução Criminal considerou válida a detenção «porque ordenada pelo Ministério Público ao abrigo do disposto nos art.s 257º/1 do Código de Processo Penal, e realizada com as formalidades previstas sob o art. 258º do mesmo diploma legal, tendo o mesmo sido presente dentro do prazo legal e constitucional máximo para a duração da mesma, de 48 horas», tendo ainda considerado que se verificavam fortes indícios da prática dos crimes constantes do mandado e de outros, bem como as exigências cautelares que determinaram a aplicação ao Autor das medidas de coacção – não privativas da liberdade – que lhe foram aplicadas após a realização do interrogatório judicial, pelo que inexiste qualquer acto ilegal susceptível de fundamentar a alegada obrigação de indemnizar.

Foi realizada audiência preliminar, na qual foi facultada às partes a discussão da competência material do tribunal para conhecer da responsabilidade civil do Estado que se pretende efectivar através da presente acção, atendendo a que se funda na prática de actos atribuídos a Magistrados do Ministério Público e não a actos praticados no exercício da função jurisdicional.
As partes pronunciaram-se por escrito, tendo tanto o Autor com o Ministério Público defendido a competência material do tribunal judicial.
De seguida foi proferida decisão que julgou o Tribunal incompetente em razão da matéria, com a consequente absolvição do Réu da instância, por se entender que a competência para a presente causa cabe aos Tribunais Administrativos.

Discordando da referida decisão o Autor interpôs o presente recurso, admitido como agravo com subida imediata, tendo na sua alegação, oportunamente apresentada, formulado as seguintes conclusões:
a)- Há contradição entre os fundamentos e a inferência e erro de interpretação de norma dizer-se que não há elementos de conexão entre a causa de pedir e a actuação de um Juiz, nem alegação de dano decorrente dessa intervenção,
se, do confronto dos artigos 1º, 7º, 8º, em confronto com os artigo 40º e 41º da p.i., bem como com os artigos 100º, 120º e 121 da mesma, se pode ver que o Autor alegou ter havido “manifesta ilegalidade da execução da detenção …(que) não foi eliminada pelas autoridades judiciárias”.
- usando plural, em relação a conceito aliás legalmente fixado -, até porque, em vez de colocar imediatamente termo à privação injustificada de liberdade, como impunha o artigo 261º do C.P.P., a Mª Juíza julgou “a mesma válida”, limitando-se a “não prolongar (!!) a sua detenção” – douto despacho junto à p.i. como doc. n.º 2 – fls. 8448 do inquérito,
Violou-se, pois, o regime do artigo 668º n.º 1, al. c), por aplicação do n.º 3 do artigo 666º, ambos do C.P.C.
b) – Há erro de interpretação do regime do artigo 659º, 660º e 288º, como do n.º 2 do artigo 2º, do C.P.C. ao considerar-se que não se verifica pressuposto de competência, porque – apesar do exposto em 80º, 90º e 109º, como 69º e 70º! – se não teria alegado que a prolação pela Sr.ª Juíza de Instrução Criminal do despacho a validar a detenção efectuada tenha causado quaisquer danos …”,
pois, declarar – ou não – o dano (e não só patrimonial!) é algo que contende com o mérito da acusa.
c) Além dos argumentos que se usaram no requerimento apresentado em 02-05-06 e que se pede vénia para dar por reproduzidos acima e em 16,
os artigos 66º e 107º do C.P.C., consagram a natureza comum do tribunal judicial – cf. Ac. Rel. do Porto de 21-11-05, in C.J., tomo III, pág. 186 -, além de que o artigo 1083º do C.P.C. estende a actos do Ministério Público que nunca seriam jurisdicionais, exactamente porque são «denegação de júris dictio», a responsabilidade que imputa a actos dos Magistrados Judiciais.
d) Se na al. c) do n.º 2 do art. 4º do ETAF, fica excluída a competência dos tribunais administrativos quanto a “actos relativos ao inquérito …, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões”, e esta função se insere na dos tribunais – artigos 202º da CRP, 53º e 268º a 270º do C.P.P. -, mas, ao menos o “exercício da acção penal”, e por imperativo constitucional, só cabe ao MºPº - artigo 219º, n.º 1, do texto fundamental -,
esvaziado fica o argumento de que erro de autoridade judiciária para efeitos de competência em caso de responsabilização tinha que ser cometido por tribunais e que neste conceito não caberiam actos do MºPº,
demais que “tribunal” deve ser entendido como conceito não “sinónimo” de “juiz”,
antes relativo a “estrutura atinente à função soberana jurisdicional” – cf. artigo 202º, incluído no Titulo V da CRP, onde se englobam Magistraturas diferenciadas – capítulos III e IV.
Há, pois, erro de interpretação do artigo 66º do C.P.C., bem como da al. c) do n.º 2 do artigo 4º do ETAF, 202º e, sobremaneira, 219º da CRP e dos artigos 53º e 268º a 270º do C.P.P.

Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida, reconhecendo-se a competência do tribunal comum.

Contra-alegou o Ministério Público, defendendo a procedência do recurso.

A única questão a decidir consiste em saber se a competência para a presente acção cabe ao tribunal comum ou, como decidido na decisão recorrida, aos Tribunais Administrativos.

Corridos os vistos cumpre decidir.

II- Fundamentos
Os factos a ter em conta na apreciação do recurso são os descritos no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidos.
Segundo os arts. 18 da LOFTJ (Lei 3/99, de 13/1) e 66.º do CPC, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
Assim, a atribuição de competência a tribunal de jurisdição especial depende da verificação de um duplo pressuposto: - o objecto da acção e a existência de uma norma específica atributiva de competência à jurisdição especial.
Daí que a competência dos tribunais comuns seja genérica ou residual, cabendo-lhes conhecer de todas as causas que não esteja atribuídas por lei a alguma jurisdição especial.
No presente caso, a decisão recorrida entendeu que a competência para a causa cabe aos tribunais administrativos, defendendo o recorrente a competência dos tribunais comuns.
A competência da jurisdição administrativa encontra-se prevista e regulada nos arts. 212.º-3 da Constituição da República e nos artigos 1º e 4º do actual E.T.A.F., aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro.
Nos termos do artigo 212º n.º 3, da CRP “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Dispõe o artigo 1º, n.º 1, do actual ETAF que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
E o artigo 4º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal definido em termos gerais pelo artigo 1º, n.º 1, quer de forma positiva, enumerando o objecto dos litígios sujeitos a tal jurisdição (efectuada no n.º 1), quer de forma negativa, enumerando determinados litígios de natureza administrativa, cuja apreciação é expressamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (nos seus nºs 2 e 3).
Entre outras questões que, não relevam no caso dos autos, nos termos da alínea g), do n.º 1, do citado artigo 4º do actual ETAF, cabe aos Tribunais Administrativos a competência para a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
“Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa” (n.º 1, alínea g).
Mas a competência dos tribunais administrativos é limitada pelos os n.º 2 e 3, do mesmo artigo que, no que ao caso dos autos interessa, excluem do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
“Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal” - n.º 2, alínea b);
“Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões” - n.º 2, alínea c);
Fica igualmente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
“A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso – n.º 3, alínea a).
Assim, a citada alínea g) do n.º 1, do artigo 4º do ETAF, atribui aos tribunais administrativos a competência para julgar todas as acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo-se nessa competência as acções em que a responsabilidade resulte do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
Mas essa competência é limitada pelo n.º 3 do mesmo artigo 4º que exclui do âmbito de competência dos tribunais administrativos a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição (que não a jurisdição administrativa).
Concordamos com a decisão recorrida, para cuja fundamentação, nessa parte se remete, na parte em que conclui que os actos praticados pelo Ministério Público, designadamente, em sede de inquérito no âmbito das suas competências próprias no exercício da acção penal não têm natureza jurisdicional, pelo que as acções de responsabilidade civil extracontratual por actos praticados pelo Ministério Público não estão abrangidas pela exclusão de competência da jurisdição administrativa prevista na citada alínea a), do n.º 3, do artigo 4º do ETAF.
Merece igualmente a nossa concordância a afirmação de que o conceito de erro judiciário constante do n.º 3, alínea a), do artigo 4º do ETAF, nada tem a ver com o conceito de autoridade judiciária constante do artigo 1º, alínea b), do Código Penal, não permitindo este último conceito concluir que o conceito de erro judiciário abrange o erro do Ministério Público enquanto autoridade judiciária nos termos da definição constante do Código de Processo Penal. Desde logo e, como refere a decisão recorrida, estando em causa a competência para a apreciação de acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado que não se restringem à jurisdição penal, o conceito de erro judiciário não pode interpretar-se como erro de autoridade judiciária.
Por outro lado, tal interpretação afasta, sem que haja na lei elementos que apontem nesse sentido, o conceito tradicional de erro judiciário, associado aos casos de decisões jurisdicionais erradas e portanto ligado à essência da função jurisdicional – v. Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, Livraria Almedina, Coimbra, 1999, citado na decisão recorrida.
Estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar (por erro judiciário cometido por tribunais não pertencentes à jurisdição administrativa), a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa.
Tratando-se da apreciação de acção de responsabilidade por actos atribuídos aos Magistrados do Ministério Público, por estes não exercerem uma função jurisdicional, privativa dos juízes, a competência cabe aos tribunais administrativos.
Ao contrário do que sustenta o Autor não se retira da invocada alínea b), do n.º 1, do artigo 4º do ETAF, qualquer argumento útil quanto à competência para a presente acção, dado que não está em causa a impugnação de qualquer acto, mas sim a eventual responsabilidade extracontratual do Estado.
Todavia, entendemos que assiste razão ao Autor na parte em que defende que não fundamentou o pedido de indemnização apenas em actos atribuídos o Ministério Público e Agentes da Polícia Judiciária e, nessa medida, a competência cabe aos tribunais judiciais.
Embora deficientemente por falta de adequada concretização, ao alegar que a “manifesta ilegalidade da execução da detenção …não foi eliminada pelas autoridades judiciárias” (usando o plural) e que a Mª Juiz de Instrução ao validar a detenção corroborou a promoção do Ministério Publico, em vez de colocar imediatamente termo à privação injustificada da liberdade, parece inequívoco que não limitou a fundamentação da acção a actos do Ministério Público e dos Agentes da Polícia Judiciária, mas também na actuação da Sr.ª Juiz de Instrução que validou a detenção, concluindo por pedir uma quantia global a titulo de indemnização por alegados danos não patrimoniais.
Se a prolação pela Sr.ª Juiz de Instrução Criminal do despacho a validar a detenção efectuada, é ou não susceptível de ter causado quaisquer danos ao Autor, é questão respeitante ao mérito da acção que não tem de ser equacionado para efeitos de fixação da competência, dado que este se afere apenas face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir (cf. Prof. Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, 1976, p.91).
Tendo a acção sido instaurada com fundamento em actos atribuídos ao Ministério Público e também em actos atribuídos à Mª Juiz de Instrução, que conjunta e combinadamente terão, alegadamente, atingido direitos fundamentais do Autor e lhe terão causado danos, estamos perante uma situação não prevista pelo legislador, no citado artigo 4º do ETAF.
Situação em que a competência deve ser atribuída aos tribunais comuns, por a estes caber a competência residual, para as causas que não atribuídas por lei a qualquer jurisdição especial (v. nesse sentido, o Ac. da Rel. de Lisboa de 14-06-05, in CJ, tomo III, p. 103).
Procedendo, nessa medida e apenas com esse fundamento, o recurso interposto pelo Autor.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o tribunal comum competente em razão da matéria, no qual deverão prosseguir os autos.
Sem custas (artigo 2º, al. a) e g), do C.C.J.).
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Porto, 14 de Novembro de 2006
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva