Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9240946
Nº Convencional: JTRP00007532
Relator: ARAUJO BARROS
Descritores: INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
LEGITIMIDADE PASSIVA
CONDOMÍNIO
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RP199302099240946
Data do Acordão: 02/09/1993
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T CIV PORTO 8J
Processo no Tribunal Recorrido: 2364-3
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC67 ART193 N2 C ART470 N1 ART26.
CCIV66 ART1433 ART1434 N4.
Jurisprudência Nacional: AC RL DE 1990/02/08 IN CJ ANOXV T1 PAG161.
AC RL DE 1984/06/25 IN CJ ANOIX T3 PAG174.
Sumário: I - A incompatibilidade substancial de pedidos conduz à ineptidão e a absolvição da instância.
II - A incompatibilidade processual de pedidos, por lhes corresponderem formas de processo diferentes, tem como consequência a absolvição da instância em relação ao pedido para que é imprópria a forma de processo utilizada.
III - Em acção de impugnação de deliberações tomadas em assembleia geral de condóminos, a legitimidade passiva radica-se nos condóminos que votaram as deliberações e não no administrador de condomínio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
" S..... - Sociedade ..................,SA " intentou acção com processo na forma sumária, pelo 8º Juízo Cível da comarca do Porto, contra
" U......, .........., SA ", administradora do condomínio do prédio urbano sito na Rua ............... e Rua ......, no Porto, pedindo, com fundamento no facto de não ter sido convocada para as assembleias de condóminos em que se nomeou administrador ( que se verifica ter ocorrido em 17/12/91 ) e em que se tomaram deliberações no sentido de mandatar a Administração do Condomínio para efectuar uma cobrança extraordinária a fim de reunir os fundos necessários à liquidação dos débitos do condomínio perante o pessoal, fornecedores e condóminos, aprovar o orçamento para 1992, e incumbir a administração de recolher orçamentos para a substituição total dos elevadores ( esta ocorrida em 12/03/92 ), que se declarem nulas a deliberação que nomeou a ré para o cargo de administradora do prédio, e as tomadas em 12/03/92, com todas as consequências legais; bem como se nomeie o Senhor António ......, identificado na petição, para exercer o cargo de administrador do condomínio daquele prédio.
Contestando, além de impugnar parte dos factos alegados pela autora, veio a ré invocar as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial, por cumulação ilegal de pedidos, e de ilegitimidade passiva.
Depois de a autora, na resposta à contestação ter rebatido as excepções deduzidas, veio a ser exarado despacho saneador, em que o Meritíssimo Juiz, conhecendo das excepções, decidiu que a ré é parte ilegítima nesta acção, além de que a petição inicial é inepta, embora considerando a prevalência da questão da ilegitimidade, se tenha limitado a julgar a ré parte ilegítima, absolvendo-a da instância.
Inconformada, veio a autora interpôr recurso, admitido como de agravo, com efeito suspensivo ( fls. 70 e 71 ).
E, nas respectivas alegações, pugnando pela revogação do despacho recorrido, conclui da seguinte forma:
1 - A acta que contém as deliberações nulas não identifica os condóminos presentes ou ausentes.
2 - Tal inviabiliza a recorrente de obter a declaração de nulidade de deliberações que a afectam, dada a ilegitimidade de que o condomínio relapso se prevalece.
3 - Sendo de rejeitar, porquanto equivaleria a frustrar o " DIREITO DE ACÇÃO " que a lei expressamente confere no artigo 2 do Código de Processo Civil.
4 - E a postergar o disposto no artigo 1433, nº 4 do Código Civil que, para evitar situações como a descrita, confere expressamente legitimidade passiva ao administrador neste tipo de acção.
5 - A petição inicial não contém pedidos substancialmente incompatíveis.
6 - Não se verificando qualquer situação de ineptidão prevista no artigo 193 do Código de Processo Civil.
7 - O despacho recorrido violou o disposto nos nos artigos 9, nº 3, 1433, nº 4 do Código Civil e 2 e 193 do Código de Processo Civil.
A agravada não apresentou contra-alegações.
O Meritíssimo Juiz " a quo " manteve e sustentou o seu despacho em crise.
Verificados todos os pressupostos de validade e de regularidade da instância, e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
1. Ordem por que devem ser conhecidas as questões suscitadas pela agravante.
Em nosso entender, o Meritíssimo Juiz, no despacho recorrido, ao apreciar a excepção da ilegitimidade passiva, e só depois, a da ineptidão da petição inicial, considerando a primeira prevalecente, inverteu, sem justificação plausível, o comando do artigo 510, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil, segundo o qual devia conhecer, pela ordem designada no artigo 288, das excepções que podem conduzir à absolvição da instância.
É que, o citado artigo 288 do Código de Processo Civil, que enumera as excepções dilatórias que levam à absolvição da instância, coloca primeiramente a nulidade de todo o processo e, só posteriormente, a ilegitimidade ( alíneas b) e d) do nº 1 ).
Sendo certo que a nulidade de todo o processo ( como a que resulta da ineptidão da petição inicial - artigo 193, nº 1 do Código de Processo Civil )
é expressamente considerada por lei como um caso típico de excepção dilatória ( artigo 494, nº 1 do Código de Processo Civil ) - cfr. Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, " Manual de Processo Civil ", 2ª edição, Coimbra, 1985, página 383.
Assim, e atendendo às questões levantadas pela agravante nas conclusões da sua alegação, iremos analisá-las pela seguinte ordem:
1º - Será inepta a petição inicial por cumulação de pedidos incompatíveis?
2º - A ré é parte ilegítima para ser demandada nesta acção?
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2. A ineptidão da petição inicial
Diz-se inepta a petição: a) quando falte ou seja inintelegível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) quando se cumulem pedidos substancialmente incompatíveis. ( artigo 193, nº 2 do Código de Processo Civil ).
Sendo que a nulidade ( ou ineptidão ) resultante desta incompatibilidade substancial subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo
( nº 4 do artigo 193 ).
A autora, como vimos, formula, nesta acção, os seguintes pedidos:
1 - Declaração de nulidade das deliberações da Assembleia de Condóminos de 17/12/91 e de 12/03/92;
2 - Nomeação de administrador do condomínio de pessoa que indica.
Ora, refere o artigo 470, nº 1 do Código de Processo Civil que " pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se quanto à forma do processo e quanto à competência do tribunal não existirem os obstáculos fixados no artigo 31 ", isto é, se aos pedidos não corresponderem formas de processo diferentes ou da cumulação não resultarem ofendidas as regras da competência absoluta dos tribunais.
Assim, os preceitos dos artigos 193, nº 2, alínea c) e 470, nº 1 do Código de Processo Civil regulam diferentes incompatibilidades entre os pedidos formulados na mesma acção: o primeiro previne a incompatibilidade substancial; o segundo abrange a incompatibilidade processual.
E, obviamente, as consequências da verificação de uma ou outra dessas incompatibilidades são, também, diversas: a incompatibilidade substancial conduz à ineptidão da petição, anulação de todo o processado e absolvição da instância ( cfr. artigos 193, nº 1 e nº 2, alínea c), 494, nº 1, alínea a) e 288, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil ); " à ilegalidade derivada da incompetência do tribunal ou da aplicação de forma de processo indevida corresponde a sanção da incompetência ou a da nulidade do processo empregado, mas sanção restrita ao pedido para o qual o tribunal é incompetente ou o processo impróprio " ( Alberto dos Reis, in " Comentário ao ao Código de Processo Civil ", volume II, Coimbra, 1945, página 394; no mesmo sentido, Anselmo de Castro, " Lições de Processo Civil ", coligidas e publicadas por Abílio Neto, Coimbra, 1970, página 766 ).
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No presente caso, parece-nos, não existe entre os pedidos deduzidos pela autora qualquer incompatibilidade material ou substancial.
Com efeito, existe incompatibilidade substancial unicamente quando são incompatíveis as providências que o autor solicita ao tribunal, ou são incompatíveis os efeitos jurídicos que o autor se propõe obter com os vários pedidos ( cfr. Alberto dos Reis, obra e volume citados, página 390 ).
Embora possa haver - e certamente que há - uma relação de prejudicialidade ou dependência, uma vez que julgado improcedente o primeiro, o tribunal não poderá conhecer do segundo, não ocorre incompatibilidade, já que a procedência de um não afecta a procedência do outro: pelo contrário, procedendo o pedido de anulação da deliberação que nomeou administrador, encontra-se aberto o campo para que o pedido de nomeação de administrador possa igualmente proceder.
Todavia, não deixa de subsistir incompatibilidade processual entre os dois pedidos, quanto à forma de processo que lhes corresponde.
De facto, relativamente ao primeiro dos pedidos, a acção deve seguir a forma do processo comum ( artigos 460, nº 2 do Código de Processo Civil ); em contrapartida, e no que toca ao pedido de nomeação de administrador, é aplicável a forma de processo especial referida no artigo 1428 do Código de Processo Civil.
Donde, e como corolário do que deixamos exposto, a sanção que resulta desta incompatibilidade é a da nulidade do processo e a absolvição da instância da ré, mas apenas quanto ao pedido de nomeção de administrador do condomínio.
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3. A ilegitimidade da ré para ser demandada nesta acção ( ilegitimidade passiva )
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Quanto à legitimidade das partes, dispõe o artigo
26 do Código de Processo Civil:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida.
Importa, por isso, determinar quem é, nesta acção, o titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade passiva, ou, antes disso, saber se existe qualquer indicação da lei nesse sentido.
Ora, o artigo 1433 do Código Civil refere expressamente que " as deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado " ( nº 1).
Consequentemente, apenas os condóminos que as não tenham aprovado gozam de legitimidade activa em acção de anulação de deliberações.
E quanto à legitimidade passiva, ou seja, no que toca à determinação da pessoa contra quem deve ser proposta a acção?
Estabelece o nº 4 do citado artigo 1434 do Código Civil que " a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para esse efeito ".
Desde logo, se nos ativermos à interpretação do referido preceito em função do seu teor, isto é, da sua redacção ( artigo 9, nº 2 do Código Civil ), teremos que concluir que a legitimidade, nestes casos, é dos condóminos contra quem são propostas as acções.
E não se nos afigura que, em consonância com o pensamento legislativo, determinável através de uma operação hermenêutica não divorciada do circunstancialismo histórico ( artigo 9, nºs 2 e 3 do Código Civil ), possamos chegar a uma solução diferente.
É que o artigo 1344, nº 4 do Código Civil, ao atribuir ao administrador do condomínio a representação judiciária dos condóminos, não lhe quis conferir legitimidade, em termos de parte na causa.
Na verdade, " um representante judiciário nunca é, por definição, parte legítima numa acção, nem passiva nem activamente, pois só o seu representado como verdadeiro titular do interesse directo em contradizer ou demandar - nº 1 do artigo 26 do Código de Processo Civil - tem essa qualidade. No caso de acção de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos quem é o prejudicado pela procedência não
é o administrador; são-no sim os condóminos que votaram a dita deliberação " ( Acórdão da Relação de Lisboa de 08/02/90, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XV, Tomo 1, página 161 ).
E não se argumente - como, por exemplo, no Acórdão da Relação de Lisboa de 25/06/84, in Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, Tomo 3, página 174 - com o facto de que " o administrador é o órgão executivo do condomínio, cuja representação orgânica lhe compete e, como resulta do artigo 1437 do Código Civil, tem legitimidade passiva para estar em juízo no âmbito das suas funções ".
Desde logo, porque o caso presente escapa à previsão desse normativo, pois está em causa apenas uma deliberação tomada pelos condóminos, aos quais e só a eles pode ser assacada responsabilidade pelas respectivas deliberações ( cfr. M. Batista Dias da Fonseca, " Propriedade Horizontal ", página 195 ).
Doutro passo, " o condomínio não constitui um ente jurídico autónomo dotado de personalidade jurídica própria, nem tão pouco a lei lhe reconhece personalidade judiciária, isto é, não o dotou da possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em nome próprio, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei.
Consequentemente, o ou os condóminos que pretendem impugnar em juízo deliberações tomadas numa dada assembleia geral, terão de intentar a correspondente acção contra todos os condóminos, individualmente considerados, individualmente considerados... os quais serão, assim, os verdadeiros réus na acção "
( Abílio Neto, " Propriedade Horizontal ", 2ª edição, Lisboa, 1992, página 171 ).
Por outro lado, efectivamente, a anulação das deliberações aprovadas pelos condóminos, visando uma decisão colegial, vai apenas afectar os interesses dos condóminos que votaram as deliberações e não o administrador que, inclusivé, pode ser um estranho ao condomínio ( cfr. citado Acórdão da Relação de Lisboa de 08/02/90 ).
Por isso, " se um conjunto de condóminos tomou determinada decisão, será contra todos eles que que devem reagir os que com ela se sintam prejudicados. É intuitivo. Se assim não fora, o sentenciado contra um só, mesmo na qualidade de administrador, não poderia ser oponível aos restantes " ( Acórdão da Relação de Lisboa de 07/02/84, in Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, Tomo 1, página 135 ).
Sendo que, no nº 4 do artigo 1433 do Código Civil, apenas " para facilitar o desenvolvimento da acção e evitar a intervenção efectiva de todos, permite-se que os réus sejam representados pelo administrador ou pela pessoa designada para o efeito por deliberação da assembleia " ( Rosendo Dias José, " A Propriedade Horizontal ", Lisboa, 1982, página 118 ).
Conclui-se, pois, que em acção de impugnação de deliberações tomadas em assembleia geral de condóminos, a legitimidade passiva radica-se nos condóminos que votaram as deliberações e não no administrador do condomínio.
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E não colhe o argumento da agravente no sentido de que, não tendo sido convocada para as assembleias de condóminos, não lhe tendo sido comunicada, sequer, a deliberação de 17/12/91, e não constando das actas a identificação dos condóminos que votaram as deliberações, deve ser admitida a intentar a acção contra o administrador porque, se assim não for, ver-se-á frustrada no direito de acção que lhe é concedido pelo artigo 2 do Código de Processo Civil.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que se confunde o exercício do direito de acção com a forma como esse exercício pode fazer-se.
De facto, à agravante não estava vedado o direito de exercer a acção, o direito de requerer a anulação das deliberações.
O que pode verificar-se é uma dificuldade natural
( e não impossibilidade - que, mesmo assim, não relevaria: para tal existem as acções contra incertos ) na identificação dos condóminos que hão-de ser demandados.
Todavia, dificuldade facilmente torneável se a agravante intentasse a acção contra todos os condóminos que votaram as deliberações, a identificar pelo administrador a quando da citação ( sendo ele, no fundo, o único a ser citado - artigo 1433, nº 4 do Código Civil ), o que lhe era perfeitamente permitido pelo artigo 467, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil.
Aliás, e curiosamente, o facto de a agravante não ter tido, sequer, conhecimento da assembleia de 17/12/91, não o impediu de impugnar as deliberações nela tomadas, identificando-as como pôde e deixando para momento ulterior a concretização do seu pedido.
Desta forma, cremos, improcedem as conclusões formuladas pela agravante nas alegações de recurso.
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Pelo exposto, decide-se. a) - negar provimento ao agravo; b) - embora com fundamentos diferentes - nulidade do processo quanto ao pedido de nomeação de administrador; ilegitimidade da ré quanto ao pedido de declaração de nulidade das deliberações - confirmar o despacho que absolveu da instância a ré " U........, SA "; c) - condenar a agravante nas custas do recurso.
Porto, 9 de Fevereiro de 1993
Araújo Barros
Emérico Soares
Paz Dias