Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00038216 | ||
| Relator: | ATAÍDE DAS NEVES | ||
| Descritores: | ÓNUS DA PROVA JUNÇÃO DE DOCUMENTO | ||
| Nº do Documento: | RP200506230533134 | ||
| Data do Acordão: | 06/23/2005 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | É lícito e correcto que uma das partes requeira a notificação da parte contrária para juntar aos autos de elementos probatórios relativos a factos cujo ónus de prova cabe a esta parte. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto B.......... instaurou do .. juízo do tribunal judicial de .......... a presente acção declarativa com processo ordinário (nº .../03.1 TB..........), emergente de acidente de viação, contra a Companhia de Seguros X.........., S.A., pedindo a condenação desta no pagamento dos prejuízos de ordem patrimonial e não patrimonial para si resultantes de acidente de viação ocorrido em 31 de Janeiro de 1999, alegando que a eclosão do mesmo fora causada pelo segurado da Ré, que conduzia o ciclomotor ..-..-GM. Após os articulados, houve lugar a audiência preliminar, sendo organizada a matéria de facto assente e a base instrutória, após o que as partes ofereceram os seus meios de prova. Nesse âmbito, requereu a Ré a notificação do autor para juntar aos autos os seguintes elementos: a) cópia dos seus recibos de vencimento nos três meses que antecederam o sinistro dos autos; b) cópia dos seus recibos de vencimentos relativos aos últimos três meses, próximo pretérito; c) cópia das facturas, recibos e cheques usados para custear os transportes, tratamentos e roupas alegadamente estragados no sinistro dos autos; d) declarações de IRS relativas aos anos de 1998, 1999 e 2003. Tais requerimentos foram indeferidos pelo Senhor Juiz nos termos seguintes: “Indefiro, no entanto, ao requerimento probatório indicado sob o nº II da contestação e com a al. d) aditado nesta audiência, uma vez, e segundo se crê, a matéria de facto aí constante, reportando-se a danos invocados pelo autor, deve ser demonstrado por iniciativa do próprio, sujeitando-se às consequências do não cumprimento do ónus da prova, em caso negativo”. Inconformada com tal despacho, dele veio agravar a Ré Seguradora, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões: 1 – O próprio M.mo Juiz a quo entende que os documentos cuja junção aos autos se requereu com vista a servir de contraprova têm manifesto interesse para a decisão da causa, pois que, embora não o ordenando, afirma claramente que caberá ao agravado, para fazer prova do que invoca, proceder a tal junção; 2 – Ao indeferir o requerido no ponto II do requerimento de prova da agravante o douto despacho recorrido impede a mesma de oferecer qualquer contraprova credível ao alegado pelo A. e à prova (mesmo que só testemunhal) que vier a produzir, violando assim, o nº 1 do art. 346º do Código Civil; 3 – Ao indeferir a requerida notificação da A. para juntar aos autos determinados documentos, o douto despacho proferido violou o disposto nos art. 265º nº 3 e 535º nº 1, ambos do CPC, pois não só torna seguramente mais difícil e dúbia a descoberta da verdade, como preclude uma das partes do exercício de um direito processual que lhe é garantido pelo lei. Termina no sentido da revogação do despacho proferido, ordenando-se a sua substituição por outro que dê deferimento a tais requerimentos de prova. O A. agravado ofereceu contra-alegações, pugnando pela manutenção do despacho. O Senhor Juiz sustentou o despacho recorrido “com base nos fundamentos que do mesmo constam”, mais dizendo que “o entendimento de que a prova dos factos em causa deve ser feita por iniciativa do tribunal contraria o princípio do dispositivo, tal como o entendemos, não fazendo sentido que o tribunal se substitua à parte no cumprimento do seu ónus probatório, mesmo a requerimento da parte contrária, a não ser que subsistam dúvidas fundadas que se entenda deverem ser oficiosamente removidas – o que não é o caso.” Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. A questão a ponderar e decidir prende-se com saber se é lícito e correcto que uma das partes requeira a notificação da parte contrária para juntar aos autos de elementos probatórios relativos a factos cujo ónus de prova cabe a esta parte. Na avaliação desta questão, fica-nos desde logo a impressão que não existem regras processuais nem princípios fundamentais do processo civil, que dêem uma única e cabal resposta a esta questão, antes se nos afigurando que aquelas normas e aqueles princípios não são de tal forma rígidos que apenas uma solução se afigure plausível, devendo o tratamento da questão, ao fim de contas, ter como condimentos fundamentais o sentido de equidade e a sensatez. Contudo, procuremos enquadrar a questão, no âmbito normativo e dos princípios, procurando a solução que se nos afigure mais adequada, segundo aqueles, e também com o bom senso que sempre tem de presidir a qualquer decisão judicial. Não há dúvida que os documentos cuja junção pelo A. é requerida pela Ré se destinam a fazer prova de factos constitutivos de direitos invocados pelo demandante, cujo ónus a este pertence (cfr. art. 342º do CC), o que nos pode levar a concluir que apenas o litigante a quem a junção, em princípio, deve aproveitar, deverá proceder à respectiva junção, no cumprimento do seu ónus. O Senhor Juiz, no despacho recorrido, revela claramente tal percepção e visão das coisas. Só que, nem pelo facto do ónus da prova dos factos a que os documentos respeitam pertencer exclusivamente ao A., fica a Ré inibida de requerer a imediata notificação daquele para que proceda a tal junção, isto porque é compreensível que a mesma oriente o exercício do contraditório de harmonia com a sua própria estratégia, desde logo pondo o assento tónico na prova documental dos factos a que os documentos deverão respeitar, por outro lado assim obviando a uma junção tardia de tais documentos por parte do demandante, quiçá já em plena audiência de julgamento (prática muito utilizada, não obstante a multa normalmente cominada), causadora de perturbação do exercício da contraprova, que muitas vezes impõe a realização de diligências morosas com as quais não se compadece a audiência de julgamento já em curso, assim tentando obviar também a que a contraparte possa lograr a prova através de meios com maior dignidade probatória, levantando a fasquia da exigência, ao que acresce ser legítimo e compreensível que a parte requerente tenha a preocupação de se inteirar da melhor forma, qualitativa e quantitativa, tão antecipadamente quanto possível, de todos instrumentos de prova que a contraparte contra si pretende esgrimir, sendo ainda possível que a parte tenha motivos ponderosos, aceitavelmente irreveláveis no momento, para formular tal pretensão probatória. Esta perspectiva ou visão deste problema encontra salvaguarda em diversos princípios fundamentais do processo civil, designadamente: - o princípio do contraditório, segundo o qual o processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), muito embora se admita que as deficiências e os transvios ou abusos da actividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras [Manuel Andrade, in Noções Elementares de processo Civil,, Coimbra Editora, 1979, pag. 379]. Bem se compreende que a Ré, no espaço de polémica dialéctica que é o processo, queira conhecer os elementos de prova com a antecipação temporal suficiente á preparação do exercício do seu contraditório, dessa forma exercendo o dito controle, legítimo, sobre os meios de prova do A. - o princípio da aquisição processual, segundo o qual os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis á parte contrária. [Manuel de Andrade, ibidem, pag. 385] Este princípio encontra clara consagração legal no art. 515º do CPC, segundo o qual “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”. Daqui resulta claramente que seja aceitável que seja a Ré a requerer que o A. ofereça determinado meio de prova de factos cujo onus probandi a este incumba, uma vez que tal produção de prova sempre aproveitará ao processo, na exacta medida do mérito que o juiz lhe conceder. - o princípio da cooperação, que se trata de um poder-dever ou poder funcional [Teixeira de Sousa, in ROA, 1995, II, 362 e segs], que tem consagração legal no art. 266º do CPC, cujo nº 1 dispõe que “na condução e intervenção do processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. Tanto basta para compreender o alcance deste princípio no caso que nos ocupa – entendendo a Ré importante a junção dos ditos documentos, não se vê motivo (nem as regras do ónus de prova, nem o princípio do dispositivo) para que o tribunal e o próprio A. não colaborem nesse sentido. - o princípio da boa fé processual, patente no art. 266º - A do CPC, de harmonia com o qual “as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior” – as partes devem usar uma conduta processual correcta, de modo a ser alcançada a justa composição do litígio, do que resulta que, apesar de o tribunal ter indeferido o requerimento de prova em apreço, nada obstava a que o A., num gesto de clara boa fé e transparência processual, procedesse á junção de tais documentos, atitude que não teve, embora com esta inacção não tenha revelado má fé processual. - o princípio descoberta da verdade material, bem plasmado no art. 519º nº 1 do CPC (sob a epígrafe Dever de cooperação para a descoberta da verdade), segundo o qual “todas as pessoas, sejam ou não partes, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que lhes for requisitado e praticando os actos que lhe forem determinados”. Este princípio, na senda dos anteriormente apontados, é por si só claramente expressivo para que a pretensão probatória da Ré devesse ter sido respeitada, quer pelo tribunal, que á mesma criou obstáculo com o despacho recorrido, quer pelo A., que não obstante o indeferimento do tribunal, poderia e deveria ter manifestado inteira disponibilidade para revelar nos autos tais elementos probatórios documentais, atitude que não teve, como bem se compreende através da suas contra-alegações. O requerimento probatório da recorrente não encontra obstáculo no invocado (pelo Senhor Juiz) princípio do dispositivo. Segundo este princípio, as partes dispõem do processo, como da relação jurídica material. O processo é coisa ou negócio das partes (concepção privatístiva, contratualista ou quase contratualista do processo). É uma luta ou duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas. O Juiz arbitra a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado (concepção duelística ou “guerresca” do processo). Donde a inércia, inactividade ou passividade do juiz, em contraste com a actividade das partes, donde também que a sentença procure e declare a verdade formal (intra-processual) e não a verdade material (extra-processual). [Manuel de Andrade, Ibidem, pag. 373] Com é bem sabido cada vez mais o nosso processo civil se encontra estruturado em moldes limitativos deste princípio do dispositivo, não obstante claros afloramentos deste na lei adjectiva, designadamente no art. 664º do CPC, que dispõe que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras do direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264º”. Este princípio tem vindo a sofrer contínuos confrontos com afloramentos do princípio do inquisitório ou da oficialidade, segundo o qual o juiz averigua livremente os factos a cujo julgamento é chamado, em obediência ao princípio da descoberta da verdade material. Afloramentos deste natureza encontramo-los em diversos momentos da nossa lei adjectiva, designadamente, entre muitos outros, no preceito que o transcrito art. 664º refere – o art. 264º do CPC, no art. 508º, no art. 265º nº 2, maxime nº3 (sob a epígrafe poder de direcção do processo e princípio do inquisitório), dispondo este que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, no art. 266 nº 3, no transcrito art. 519º, e em especial no art. 535º nº 1, segundo o qual “incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade”. Daqui resulta que o deferimento do requerimento formulado pela Ré que suscitou o despacho recorrido, em nada confrontaria o princípio do dispositivo, uma vez que teria pleno cabimento no âmbito das normas que o limitam. Assim, bem se compreende que a Ré não se tenha conformado com o despacho recorrido, que não anuiu ao propósito probatório por si formulado, sendo certo que do seu deferimento nenhum prejuízo adviria para qualquer das partes, nomeadamente para o A., que concerteza nada teria nem terá a temer com a junção dos documentos em causa (quem não deve não teme), mal se compreendendo até a oposição deduzida em sede de contra-alegações, sendo certo que muitos desses documentos só pelo próprio A. são passíveis de ser juntos aos autos, designadamente os que contendem com as declarações de IRS (mercê do sigilo fiscal), e com os cheques (por força do sigilo bancário), para além de outros documentos a que só o próprio demandante tem acesso (as facturas e outros). Acrescerá referir que, em sede de prova, sempre vigora a máxima “quod abundat non nocet”, sendo que a limitação dos meios probatórios requeridos pelas partes constitui postura menos avisada e adequada por parte do tribunal, uma vez que da mesma só poderão advir desvios à verdade material que ao mesmo cumpre buscar. Assim, deveria o senhor juiz ter deferido aos requerimentos probatórios da Ré, merecendo assim provimento o presente agravo. DECISÃO Por todo o exposto, Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido, e ordenando a remessa dos autos à primeira instância, a fim de aí se proceder á notificação do A. nos termos e para os efeitos requeridos pela Ré no ponto II da parte final da contestação e na al. d) do seu requerimento instrutório formulado na audiência preliminar. Custas pelo agravado, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Porto, 23 de Junho de 2005 Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves António do Amaral Ferreira António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha |