Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0515147
Nº Convencional: JTRP00038880
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
PENA ACESSÓRIA
Nº do Documento: RP200602220515147
Data do Acordão: 02/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: Para ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69º, 1, b) do Código Penal, exige-se não só que o crime seja cometido ao volante de um automóvel, mas ainda que a condução seja um elemento essencialmente facilitador da prática do crime e que o veículo seja utilizado como um verdadeiro instrumento do crime, que seja usado como “meio de arremesso” para o cometimento do delito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos autos de processo comum (singular) nº ./04..GCVPA, que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Pouca de Aguiar, foi o arguido B.......... condenado, pela prática de um crime de desobediência qualificada, p.p. pelo artº 348º, 1, a) e 2, do CP, com referência ao artº 139º, 4, do CE, numa pena de 90 dias de multa, à razão diária de 9 euros e ainda na sanção acessória de inibição de conduzir por 5 meses (artº 69º, 1, b), do CP).

Inconformado, interpôs o arguido o presente recurso que motivou, concluindo, resumidamente (já que as conclusões não são propriamente um exemplo de concisão), nos seguintes termos:
- Entende o recorrente ter sido inadequada e/ou excessiva a condenação na pena de multa e sanção de inibição de conduzir.
- A sua conduta foi culposa, porém não na modalidade de dolo, como considerou o M.mo Juiz ‘a quo’, mas sim a titulo de negligência, uma vez que o arguido, na data da prática dos factos não tinha conhecimento de que a sua mãe já tinha remetido a carta de condução à entidade administrativa, sendo que tal factualidade, como é dos autos através do depoimento da testemunha C.........., só foi dada a conhecer ao arguido alguns dias depois.
- É opinião do recorrente que, apesar de não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, não chegou, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto, pois jamais imaginou que na data da ocorrência dos factos a sua mãe já não tinha em seu poder a carta de condução.
- Entende, por isso, que não lhe deve ser aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir.
- Entende o recorrente não ser de aplicar essa sanção acessória uma vez que a gravidade do crime, a ilicitude, a culpa e a personalidade do agente não exigem especial necessidade de prevenção geral e especial.
- Em termos de prevenção especial, as necessidades estão devidamente acauteladas uma vez que o agente está correctamente inserido socialmente.
- Em termos de prevenção geral, entende o recorrente que ao ser condenado pelo crime de desobediência ficou já garantida a finalidade primária da pena, qual seja o restabelecimento da paz jurídica comunitária, pelo que se mostram devida e suficientemente acautelados os ideais de prevenção geral.
- A aplicação de uma sanção acessória de inibição de conduzir ultrapassa as finalidades preventivas no caso dos autos, pois está assegurada a medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena alcança com a condenação do arguido numa multa que atinge o valor global de 810 euros pelo crime de desobediência.
- Não existindo no caso em apreço exigências acrescidas de prevenção especial derivadas de uma particular perigosidade do agente, uma vez que, pelo contrário, está provada nos autos a sua plena integração na sociedade, a nível familiar e profissional.
- O recorrente é criminalmente primário.
- Não colocou em causa, com a sua conduta, nenhum bem jurídico.
- Entende ter sido excedido o princípio da necessidade tutelado pelo processo penal, pelo que não deveria ter sido aplicada a referida sanção acessória, pois só assim serão atingidos os critérios de justiça, proporcionalidade e adequação.
- Face a todo o circunstancialismo acima referido, a pena que lhe foi aplicada foi elevada, em termos de quantum de dias de multa e em relação à taxa diária fixada.
- Bem como foi elevado o quantum de meses de inibição de conduzir, atentos o grau de culpa do agente, as diminutas exigências de prevenção geral e especial, a perfeita integração social e profissional do arguido, a sua condição de primário, deveria ter-lhe sido aplicada uma pena de multa com um quantum de dias e taxa inferior e uma inibição de conduzir – sem conceder – pelo mínimo previsto na lei.
- O arguido necessita da carta de condução para o exercício da sua profissão de professor, utilizando-a, além do mais, para o transporte de todos os instrumentos musicais de que necessita para o efeito.
- Face a tal indispensabilidade e demais circunstâncias referidas, poderia o M.mo Juiz ‘a quo’ ter suspendido a execução da sanção acessória de inibição de conduzir, ainda que condicionada a uma prestação de caução de boa conduta.
- Violou assim o M.mo Juiz, entre outros, os preceitos constantes dos artºs 13º, 14º, 15º, 40º, 69º, 70º e 71º, todos do CP.

Não houve resposta na comarca.

Neste Tribunal o Dig.mo Magistrado do MP emitiu douto parecer, no qual conclui pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Mostram-se assentes os seguintes factos:
1. No dia 17 de Janeiro de 2004, pelas 4,15 horas, na Rua .........., em .........., o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-EU, apesar de se encontrar a decorrer o prazo de 90 dias de inibição de conduzir, que lhe tinha sido aplicada por decisão administrativa no processo de contra-ordenação nº ......... .
2. A fim de cumprir a mencionada proibição de conduzir, o arguido remeteu à DGV, em 7/1/2004, a sua carta de condução.
3. O arguido sabia que lhe estava vedado conduzir veículos automóveis na sequência de uma decisão administrativa exarada em processo contra-ordenacional, não se abstendo de, em desrespeito à mesma, conduzir o referido veículo.
4. Agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
5. O arguido aufere cerca de 1.000 euros mensais. Vive sozinho. Suporta renda de casa no montante de 125 euros mensais, prestação de empréstimo automóvel no montante mensal de 363 euros, prestação de 40 euros, num crédito ao consumo e vai iniciar o pagamento de prestações mensais de 36 euros, por dívida à segurança social. É licenciado em educação musical. Foi já sancionado por contra-ordenações praticadas em 1998, 1999 e 2003, respeitantes a violação das regras de ultrapassagem, excesso de velocidade e condução sob influência do álcool, conforme cadastro rodoviário de fls. 15. Nunca respondeu em Tribunal.
6. É tido por pessoa trabalhadora, respeitadora e respeitada no meio em que vive.

Não se provou:
- que, na mesma circunstância, agentes da autoridade fizessem ao arguido sinal de paragem e este, intencionalmente, não tivesse acatado tal sinal.

Decidindo:

A primeira questão que o arguido coloca à nossa apreciação prende-se com a punição da sua conduta a titulo de negligência e não de dolo, como fez a sentença recorrida.
Alega, para tal, que na data da prática dos factos não tinha conhecimento de que a sua mãe já tinha remetido a carta de condução à entidade administrativa, sendo que tal factualidade, como é dos autos através do depoimento da testemunha C.........., só foi dada a conhecer ao arguido alguns dias depois. Sem fundamento, todavia, pois que tal questão foi já devidamente escalpelizada na decisão recorrida e, aí, o tribunal de 1ª instância decidiu e bem, que a factualidade assente integrava o elemento subjectivo dolo.

Como diz o Ex.mo Magistrado do MP no seu parecer, «é absolutamente impertinente que se reitere, sem mais, uma versão que o tribunal ‘a quo’ rejeitou, versando o recurso apenas matéria de direito, já que foi prescindida a documentação da prova produzida em audiência de julgamento.

Analisada a factualidade assente em 1. a 4. dos factos assentes, logo se constata que o arguido agiu como dolo, na sua mais gravosa forma de dolo directo. (artº 14º, 1, do CP). Por isso não ocorre qualquer violação das prescrições dos artºs 13º a 15º do CP.

A questão seguinte prende-se com a pena de multa concretamente fixada e com a sua razão diária.

É indubitável que a conduta do arguido preenche a previsão do artº 348º, 1, a) e 2, do CP, por referência ao disposto no artº 139º, 4, do CE. O recorrente, agindo consciente e livremente, conduzia o veículo automóvel, apesar de bem saber que o não podia fazer por se encontrar a decorrer o período de inibição em que incorrera pela prática de uma contra-ordenação estradal. Tal configura a previsão da norma.

Alega ele que não colocou em causa, com a sua conduta, qualquer bem jurídico; cremos que o faz por mera confusão, já que o bem jurídico protegido pela norma incriminatória – o poder de império do Estado – foi violado; o que ele quererá dizer, pensamos, é que com a sua conduta não pôs em causa qualquer outro bem jurídico (alegação aqui irrelevante, já que não consta da factualidade assente), daí pretendendo tirar as consequentes vantagens em termos de determinação da medida da pena.

Dito isto, analisemos as concretas circunstâncias atendidas na sentença recorrida para a determinação do tipo e da medida da pena, já que a estatuição penal é alternativa de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

Como ao caso cabem penas alternativas, privativa e não privativa da liberdade, «o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (artº 70º do CP). Como daqui se vê, verificados estes pressupostos de prevenção e de repressão do crime, o tribunal está vinculado a dar preferência à pena não detentiva. Isso vale como princípio. No caso concreto o Tribunal deu preferência fundamentada à segunda (pena de multa), uma vez que as exigências de prevenção e de reprovação não são, apesar de prementes, de tal ordem que determinem a aplicação da mais gravosa pena detentiva.

A medida concreta da pena - dadas as circunstâncias que contra o arguido militam (dolo intenso, por directo, intensa culpa, seus antecedentes contra-ordenacionais - contra-ordenações praticadas em 1998, 1999 e 2003, respeitantes a violação das regras de ultrapassagem, excesso de velocidade e condução sob influência do álcool, salvaguarda das necessidades de prevenção geral), e ainda aquelas que o favorecem (delinquente criminal primário, tido por pessoa trabalhadora, respeitadora e respeitada no meio em que vive), e a moldura que vai de 10 a 240 dias - deveria situar-se numa medida próxima do eixo médio, ou seja, por volta dos 120 dias. A pena concreta encontrada, de apenas 90 dias, se peca é por defeito.

A sua razão diária, atendendo ao que prescreve o artº 47º, 2, pode variar entre 1€ e 498,80€, fixada pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. De qualquer modo, a medida que for encontrada há-de representar um forte sacrifício para o agente, de modo a fazê-lo sentir o quão grave foi a sua conduta e as possíveis consequências para o caso de reiterar na prática criminosa.

Assim, atendendo a que o arguido aufere cerca de 1000€ mensais, vivendo sozinho e tendo encargos que ascendem a cerca de 564€, mostra-se adequada a taxa diária encontrada, de 9€, que se situa muito próximo do mínimo legal e representará para ele um sacrifício, com o qual tem de arcar como consequência do seu acto ilícito. Aliás, essa taxa diária servirá para distinguir o arguido dos condenados em pena de multa extremamente pobres ou mesmo indigentes.

Por isso, também nesta parte não assiste razão ao recorrente.

Finalmente, resta apreciar a questão que se prende com a medida da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos automóveis, p.p. pelo artº 69º, 1, b) do CP, fixada em 5 meses na sentença e que o recorrente pretende ver reduzida para o mínimo legal.

Dispõe, a propósito, a citada norma do CP que será condenado «na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido: (…) b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante».

Da interpretação desta norma se deve concluir que não basta que o crime seja cometido ao volante de um automóvel, sendo, ao invés, de exigir que a condução seja um elemento essencialmente facilitador da prática do crime e que o veículo seja utilizado como um verdadeiro instrumento do crime, que seja usado como um ‘meio de arremesso’ para o cometimento do delito.

Como ficou dito, de modo conciso, no ac. desta Relação, de 28/9/2005 (CJ IV-238), «a norma só pode, pois, referir-se a crimes que nada têm a ver com condução defeituosa, a crimes que o arguido decidiu cometer, isto é, dolosos, utilizando como instrumento o veículo, e facilitando este de forma relevante a execução do crime».

Não é assim no crime punido a titulo principal, de desobediência, que cometido necessariamente no exercício da condução (artº 139º, 4, CE), não implica o uso do veículo como ‘arma’ do crime, razão pela qual não se verifica a previsão legal da referida al. b). Aliás, é sintomático que a al. c) do mesmo artº 69º, 1, do CP, refira algumas situações de crime de desobediência, não incluindo o crime ora praticado pelo recorrente.

Não estando, deste modo, verificados os pressupostos de que depende a aplicação desta pena acessória, deve a sentença recorrida ser revogada nessa parte.

Termos em que se acorda em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a douta sentença recorrida na parte em que condenou o recorrente numa sanção acessória de inibição de conduzir por 5 meses, no mais a confirmando.

Custas pelo arguido, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Porto, 22 de Fevereiro de 2006
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
José Manuel Baião Papão