Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0812590
Nº Convencional: JTRP00041425
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: CRIME
ESPECULAÇÃO
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE
Nº do Documento: RP200806040812590
Data do Acordão: 06/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 534 - FLS 70.
Área Temática: .
Sumário: I - O art. 3º, n.º 1 do DL n.º 26/84 estabelece que “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo”.
II - A sociedade proprietária de um estabelecimento de supermercado não é responsável pela actuação do arguido, responsável pelo sector de padaria, pois não pode considerar-se “representante” da pessoa colectiva todo aquele que age em nome e no interesse dela; exige-se que o crime seja cometido não apenas por quem age em nome e no interesse da pessoa colectiva, mas por quem tenha um vínculo jurídico de representante, ao abrigo do qual age em nome e no interesse da pessoa colectiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 2590/08


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Na comarca de Valongo, o MP deduziu acusação contra os arguidos “B………., SA”, C………. e D………., imputando-lhes factos que qualificou como um crime de especulação p. e p. pelo artº 35º, nº 1, alínea c), do DL nº 28/84, de 20 de Janeiro.

Requerida e realizada instrução, o senhor juiz proferiu decisão de não pronúncia.

O MP interpôs recurso dessa decisão, sustentando, em síntese, na sua motivação:
-A sociedade arguida é proprietária do supermercado “E……….”, situado na Rua ………., em Valongo.
-O arguido C………. é o gerente desse estabelecimento.
-E o arguido D………. é o responsável pelo sector de padaria.
-No dia 19/03/2007, na zona da padaria existia um cartaz publicitando o “pão de aldeia” a € 1,79 por quilograma.
-Porém, ao cliente F………. foi cobrado o preço de € 2,28 por quilograma.
-Aquele cartaz referia-se a uma promoção daquele produto que houvera no dia 16/03/2007.
-No dia 17/03/2007 o preço desse tipo de pão passara a ser de € 2,28.
-No dia 19/03/2007, o cartaz encontrava-se ainda ali colocado em virtude de o arguido D……… se haver esquecido de retirá-lo.
-O arguido C………. não controlou o trabalho do funcionário responsável pelo sector da padaria.
-Houve, assim, negligência da parte deste dois.
-E, por via disso, é também responsável a sociedade arguida.

Respondendo, a arguida “B………., SA” defende que deve ser mantida a decisão recorrida.

O recurso foi admitido.
O senhor procurador-geral-adjunto apôs visto.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentação:
Na acusação imputa-se aos arguidos a prática de um crime de especulação p. e p. pelo artº 35º, nº 1, alínea c), do DL nº 28/84, com base nos seguintes factos:
1. A sociedade arguida é proprietária do supermercado “E……….”, situado na Rua ………., em Valongo.
2. O arguido C………. é o gerente desse estabelecimento.
3. E o arguido D………. é o responsável pelo sector de padaria.
4. No dia 19/03/2007, F………, naquele estabelecimento, adquiriu o produto “pão de aldeia”.
5. Esse produto estava marcado a € 1,79.
6. Porém, no acto de pagamento foi-lhe cobrado o preço de € 2,28.
7. «A diferença de preços acima referida prendia-se com o facto de efectivamente o pão adquirido ter tido uma promoção, em que havia sido vendido a € 1,79 e na data dos factos acima descritos já ter terminado tal promoção, sem que os arguidos C………. e D………., responsáveis por esse sector, tivessem respectivamente ordenado e retirado o preço de promoção e colocado o preço real».
8. Sabiam os arguidos que, ao actuarem do modo descrito, estavam a vender o pão a um preço superior ao que constava na tabela de preços que tinham afixado.
9. Sabiam ainda que a sua conduta era proibida por lei.
10. Agiram livre, voluntária e conscientemente, em comunhão de intentos e esforços.

Atribui-se, pois, aos arguidos a prática de um crime de especulação com dolo.
O juiz de instrução considerou não haver quaisquer indícios de dolo.
Mas, podendo o crime ser cometido com negligência, como se prevê no nº 3 do artº 35º do DL nº 28/84, no caso de se indiciarem suficientemente factos consubstanciadores dessa forma de culpa, o senhor juiz teria de considerar essa nova situação, pronunciando os arguidos pela prática do crime indiciado, cumprindo previamente o estabelecido no nº 1 do artº 303º do CPP.
Com efeito, uma tal situação configuraria uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, por não preencher a previsão da alínea f) do nº 1 do artº 1º do CPP, onde se define a «alteração substancial dos factos». Nomeadamente, não se estaria perante crime diverso. O crime continuaria a ser o de especulação, mas agora sob uma forma de culpa menos grave.
O tribunal recorrido teve esse entendimento, mas considerou não estar também indiciada a negligência.
O recorrente aceita a decisão recorrida enquanto entende que não há indícios suficientes de dolo, mas defende que há indícios bastantes de negligência e, consequentemente, pede a pronúncia dos arguidos pela prática do crime de especulação do artº 35º, nº 3.
A negligência vem definida no artº 15º do CP:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização;
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Há indícios suficientes de que
-no dia 16/03/2007 o produto «pão de aldeia» foi objecto de uma promoção, sendo vendido ao preço de € 1,79 por quilograma;
-o facto foi assinalado com a colocação em cima do respectivo expositor de um cartaz indicando esse preço;
-a partir do dia seguinte o «pão de aldeia» passou a ser vendido a € 2,28 por quilograma, sendo colocada no próprio produto e no expositor uma etiqueta com esse valor;
-mas o referido cartaz permaneceu ali a anunciar o preço de € 1,79, só vindo a ser retirado pelas 18,52 horas do dia 1/03/2007, em resultado da reclamação de um cliente.
Ninguém põe em dúvida que estes factos integram os elementos objectivos do crime de especulação e estão suficientemente indiciados.
Resulta ainda dos elementos de prova recolhidos que o arguido D………. era na altura o responsável pela secção de produtos de padaria. É ele próprio quem o afirma (fls. 193). E aceita que é sua a responsabilidade da manutenção do cartaz a anunciar o preço do «pão de aldeia» a € 1,79 depois de terminar a promoção, atribuindo o facto a esquecimento da sua parte.
Esse esquecimento concretiza falta de cuidado. Terminando a promoção e passando o produto a ser vendido a preço superior, impunha-se ao arguido D………., como funcionário responsável por esse sector, a retirada do cartaz que marcava o preço anterior, o que podia fazer com toda a facilidade. Até porque, segundo os indícios existentes, foi ele quem colocou no produto as etiquetas com o novo preço. Isso é mesmo aceite no requerimento de abertura de instrução, onde se alega ter sido «ele quem se esqueceu de retirar o cartaz promocional que se encontrava em cima do expositor, apesar de ter procedido correctamente à alteração dos preços afixados nas etiquetas apostas na embalagem do artigo e no placar existente no expositor». Com a colocação de etiquetas com o novo preço, em consequência do fim da promoção havida, o D………. tinha claramente a obrigação de se certificar se, no que se refere à afixação do preço do produto, estava tudo regularizado, o que o levaria a reparar no cartaz, colocado em local bem visível.
Há, assim, indícios suficientes de que o arguido D………. agiu com negligência, não podendo por isso deixar de ser pronunciado, nos termos pretendidos pelo recorrente.

Em relação ao arguido C………., gerente da loja, no entender do recorrente, a negligencia estaria em ele não ter controlado o trabalho do funcionário responsável pela secção de produtos de padaria.
Mas as funções de gerente de um estabelecimento como o aqui em causa não impõem o acompanhamento e controlo permanente do trabalho de cada um dos responsáveis das várias secções.
Havendo um responsável pelo sector dos produtos de padaria – o D………. –, o facto em apreciação só a ele pode ser imputado, até porque não há quaisquer indícios de que o C………. tivesse razões para representar que aquele poderia não desempenhar correctamente as tarefas de que estava incumbido, designadamente que não zelasse por que os preços afixados para cada produto fossem aqueles pelos quais estavam a ser vendidos.
No que se refere a este arguido, a decisão recorrida foi, pois, correcta.

Sobre a responsabilidade da arguida “B………., SA”, rege o artº 3º do DL nº 28/84, cujo nº 1 estabelece: «As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo».
Ora, não se alega na acusação, que define o objecto do processo, nem se indicia que o arguido D………. seja «órgão» ou «representante» da “B………., SA”. E «representante» de uma pessoa colectiva não pode considerar-se todo aquele que age em nome e no interesse dela, pois a norma fala do representante que actua em nome e no interesse da pessoa colectiva. Por outras palavras, exige-se que o crime seja cometido não apenas por quem age em nome e no interesse da pessoa colectiva, mas por representante que age em nome e no interesse da pessoa colectiva.
Valem aqui as considerações tecidas por Fernanda Palma, a propósito da norma idêntica do nº 1 do artº 7º do RJIFNA, aprovado pelo DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na declaração de voto aposta no acórdão do Tribunal Constitucional nº 395/2003, publicado no DR, II serie, de 06/02/2004:
“(...) a expressão «representante de pessoa colectiva» só abrange com precisão e determinabilidade as pessoas que são representantes legais de pessoas colectivas, não podendo o intérprete fundamentar, consistentemente, na expressão «representante de pessoa colectiva» a inclusão de quaisquer pessoas que ajam no interesse e em nome de uma pessoa colectiva ou, mesmo mais restritivamente, certas categorias de pessoas que ajam nessas condições.
(...) o resultado interpretativo a que o tribunal recorrido chegou – segundo o qual no conceito de «representantes das pessoas colectivas» cabem pessoas que não sejam mais que representantes de facto – constitui, necessariamente, produto de uma interpretação que vai para além do sentido normativo possível, em termos declarativos, e, por isso, ultrapassa o sentido previsível para os destinatários.
Com efeito, tal resultado tem contra si elementos históricos e sistemáticos e não é confirmável pela ratio legis, a qual há-de ser configurada como um critério de imputação à vontade da pessoa colectiva da actuação controlável dos agentes que ajam em seu nome e no seu interesse. Ora, não é indiscutível que a resposta a tal problema seja a de abranger os representantes de facto sem mais.
A ratio legis exige que esse nexo de imputação se construa a partir de agentes cuja actuação deva ser considerada como «a voz e o corpo» da pessoa colectiva, por ela poder controlar tais agentes. Que o critério para a imputação de vontade abranja os representantes de facto por razões de eficácia ou apenas os representantes legais por razões de segurança é algo que só pode ser decidido pelo legislador, não cabendo ao intérprete inferir de uma expressão não suficientemente precisa da lei a primeira opção.
Ao fazê-lo, o intérprete não só não garante a certeza imposta pelo princípio da legalidade no direito penal como, sem uma clara opção do legislador, admite uma solução em que a segurança jurídica não tem plena satisfação. Com efeito, o que é agir no nome e no interesse de outrem sem vínculo legítimo de representação? É necessário, para entender esse conceito vago de representação de facto, um acordo prévio expresso da entidade colectiva, um acordo tácito, uma ratificação posterior ou um mero consentimento implícito?
A indefinição de tal conceito impõe que a subsunção utilize, forçosamente, critérios de comparação típicos da analogia, que está proibida em direito penal”.
No mesmo sentido se pronuncia Gonçalo Melo Bandeira, em Responsabilidade Penal Económica e Fiscal dos Entes Colectivos, Almedina 20004, página 337.
Assim, também quanto a esta arguida a decisão de não pronúncia é de manter.

Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, no provimento parcial do recurso, em
-revogar a decisão recorrida na parte em que não pronunciou o arguido D………., a qual deve ser substituída por outra, no pressuposto de que existem indícios suficientes de que o primeiro cometeu um crime de especulação negligente do artº 35º, nºs 1, alínea c), e 3, do DL nº 28/84;
-manter essa decisão na parte em que não pronunciou os arguidos C………. e “B………., SA”.
Sem custas.

Porto, 04/06/2008
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva