Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1403/12.3TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SUB-ROGAÇÃO
Nº do Documento: RP201310071403/12.3TJPRT.P1
Data do Acordão: 10/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 518º, 592º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Os institutos de sub-rogação e de direito de regresso não se confundem, traduzindo-se a diferença entre eles, de acordo com a doutrina tradicional, nas seguintes dicotomias: i) pela sub-rogação, transmite-se um direito de crédito existente, ao passo que o direito de regresso significa o nascimento de um direito novo na titularidade da pessoa que, no todo ou em parte, extinguiu uma anterior relação creditória (art. 524.º) ou à custa de quem esta foi extinta (art. 533.º); ii) o direito de regresso, maxime na solidariedade passiva, traduz-se num direito de reintegração do devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1403/12.3TJPRT.P1

Sumário da decisão
I. É pacífico o entendimento doutrinário do conceito de “estabelecimento comercial”, como integrando uma universalidade de direito universitas iuris, um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos - bens móveis e imóveis, direito ao arrendamento ou à utilização do espaço, direito de uso do nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, alvarás, etc. -, não podendo ser decomposto enquanto universalidade
II. Provando-se que o efeito jurídico efectivamente pretendido e alcançado pelos contraentes foi a transferência onerosa, definitiva e unitária do estabelecimento, e que apenas lhe atribuíram a designação de “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, com o objectivo de contornar a faculdade legal que assistia ao senhorio de exercer o direito de preferência em caso de trespasse, tal nomen iuris é irrelevante na qualificação jurídica do contrato, que deverá ser definida em função das suas cláusulas e não da denominação que lhe foi atribuída.
III. Os institutos de sub-rogação e de direito de regresso não se confundem, traduzindo-se a diferença entre eles, de acordo com a doutrina tradicional, nas seguintes dicotomias: i) pela sub-rogação, transmite-se um direito de crédito existente, ao passo que o direito de regresso significa o nascimento de um direito novo na titularidade da pessoa que, no todo ou em parte, extinguiu uma anterior relação creditória (art. 524.º) ou à custa de quem esta foi extinta (art. 533.º); ii) o direito de regresso, maxime na solidariedade passiva, traduz-se num direito de reintegração do devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B…, C…, D…, E…, F…, G… e H… intentaram acção declarativa de condenação sob a forma sumária, contra I…, Lda., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 20.000,00 €, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Alegaram os autores, em síntese, como suporte da sua pretensão: os autores foram os representantes legais da sociedade por quotas “J…, Lda.”, até à sua extinção, enquanto sócios-gerentes até à dissolução, e posteriormente como liquidatários, qualidade em que se encontram na presente lide; a referida sociedade foi arrendatária das lojas sitas na Rua …, n.ºs … e …, na freguesia …, na cidade do Porto; as referidas “lojas” pertenciam à Câmara Municipal …, que as deu de arrendamento a K… e L…, por contratos celebrados em 8 de Outubro de 1952 e 27 de Outubro de 1952, respectivamente, de quem as recebeu por trespasse, mantendo-se aí em actividade até 3 de Fevereiro de 2009; por contrato de 3 de Fevereiro de 2009, a extinta sociedade e a ré, devidamente autorizadas pela Câmara Municipal …, convencionaram que a primeira cederia à segunda a posição de arrendatária que detinha nos referidos contratos; conjuntamente com a outorga do contrato a extinta sociedade transmitiu à ré o estabelecimento comercial que funcionava naqueles espaços com todos os elementos que o compunham; de várias consultas que fizeram, resultou o entendimento pelas partes, que, caso o contrato configurasse uma cessão de posição contratual não estaria sujeito ao pagamento IVA; razão pela qual apuseram no contrato o título “Contrato da cessão da posição contratual”; acordaram as partes fixar o preço da chamada cessão em € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) que a ré pagou à extinta “J…, Lda.”; como acreditavam as outorgantes não estar a operação sujeita ao IVA, não foi o mesmo nem contemplado nem cobrado; a sociedade “J…, Lda.” cessou a sua actividade em 2 de Abril de 2009; no decorrer de uma acção inspectiva foi considerado que “a referida operação de cessão, a título oneroso, da posição do sujeito passivo no contrato, a favor de outra sociedade, consubstancia uma prestação de serviços”, e, consequentemente, está sujeita ao IVA, sendo que, neste caso, “o montante a liquidar totaliza o valor de € 20.000,00”; os autores viram-se obrigados a pagar, a expensas suas e em partes iguais, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), valor de IVA que foi fixado pela AT; confrontada com o facto, a ré sempre se furtou ao pagamento, declinando as responsabilidades que só a ela pertencem; tem assim a ré que pagar aos autores a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros).
Citada, veio a ré contestar, alegando em síntese: nem antes, nem depois de celebrado o contrato de cessão de posição contratual entre a sociedade J…, Lda. e a ré, as partes efectuaram qualquer consulta a fim de saber se a transmissão do estabelecimento, estaria ou não sujeita a IVA; os ora autores em representação da sociedade J…, Lda., e a ré, acordaram a cessão da posição contratual dos contratos de arrendamento de que aquela era titular, apenas e só porque, com a entrada em vigor da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, (Novo Regime do Arrendamento Urbano) e por força do previsto no artº 26º, nº 6, al. a), aos contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, ocorrendo trespasse ou locação do estabelecimento, o senhorio poder denunciar os contratos de arrendamento, por força do artº 1101, al. c); para além disso, era intenção dos autores não permitir ao senhorio a possibilidade de exercer o direito de preferência no caso de trespasse, como prevê o artº 1112º, nº 4 do Código Civil; o preço de 120.000,00€ foi fixado pelos autores e comunicado à ré; sendo aquele montante o valor global e final a despender pela ré no negócio; se assim não fosse, a ré não celebraria o contrato; facto que era do perfeito conhecimento dos AA., representantes da cedente; sendo também essencial para a Ré a obtenção, por parte da sociedade J…, Lda. da autorização da senhoria para a cessão da posição contratual dos arrendamentos; como reconhecem os autores nos art. 10 e 11 da p.i., a sociedade J…, Lda., transmitiu à Ré o estabelecimento comercial que funcionava naqueles espaços com todos os elementos que o compunham; desta forma a Ré passou a explorá-los enquanto nova titular do estabelecimento comercial e dos respectivos contratos de arrendamento; compreendendo-se nos elementos que compunham o estabelecimento, mesas, cadeiras, balcões, louça, electrodomésticos, alvará sanitário, a totalidade do imobilizado corpóreo, bem como de toda a clientela, já que o estabelecimento se encontrava em funcionamento na data do contrato, com a actividade de restauração, actividade que a ré mantém; também o alvará sanitário foi posteriormente averbado em nome da Ré; o nº 4 do artº 3º do CIVA, exclui do conceito de transmissão e, consequentemente, do âmbito de incidência de imposto, “as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer caso, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo de imposto”; estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a isenção de IVA, ao abrigo do nº 4 do artº 3º do IVA; a ré veio a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo de IVA; porém, apesar da exclusão do nº 4, do artº 3º do CIVA, os AA. perante o entendimento da Inspectora Tributária, de que o contrato celebrado entre a representada dos autores e a ré configurou uma prestação de serviços, para efeitos do artº 4º do CIVA, nada fizeram, conformando-se com tal entendimento; bem sabiam os AA. que com a cessão da posição contratual transmitiram, também, todos os elementos que compunham o estabelecimento; e, por força disso, poder estar a ser indevidamente exigido pela Autoridade Tributária o pagamento do IVA; no entanto, não lograram reclamar do entendimento da Senhora Inspectora ou impugnar a decisão da Autoridade Tributária; conformando-se com o pagamento, assumindo-o como devido e incluído no preço; na eventualidade da transmissão estar sujeita a IVA, o que não se concebe, sempre a sociedade J…, Lda, ao abrigo do disposto no artº 29º, nº 1, al. b), estaria obrigada a emitir factura ou documento equivalente por cada transmissão de bens ou prestação de serviços, tal como vêm definidas nos artigos 3º e 4º no CIVA, bem como pelos pagamentos que lhes sejam efectuados antes da data da transmissão de bens ou prestação de serviços, o que não fez.
Proferido despacho saneador tabelar, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo a acção intentada por B…, C…, D…, E…, F…, G… e H… improcedente, e em consequência absolvo a R. I…, Ldª do pedido de condenação no pagamento da quantia de 20.000,00 €».
Não se conformaram os autores e interpuseram recurso, apresentando alegações que culminam com as seguintes conclusões:
a) Em 03 de fevereiro de 2009 Recorrentes (então sócios da sociedade J…, Lda) celebraram com a Recorrida um contrato de cessão de posição contratual de um espaço onde estava instalado um estabelecimento comercial, conforme resulta do documento junto aos autos como documento nº 1 junto com a P.I..
b) Nesse contrato as partes livremente fixaram o preço do negócio em € 120.000,00 (cento e vinte mil euros), omitindo a questão de sobre o mesmo incidir o imposto denominado IVA.
c) O preço de 120.000,00 correspondeu à quantia que as partes determinaram para a cessão da posição contratual daqueles espaços, forma jurídica que escolheram para “evitar a possibilidade permitir ao senhorio a possibilidade do senhorio exercer o direito de preferência no caso de trespasse”.
d) O preço foi assim fixado em função do modelo contratual que as partes adoptaram, e correspondeu à expectativa que os Recorrentes criaram como contrapartida do negócio a celebrar com a Recorrida.
e) O Tribunal na douta sentença, começou desde logo por ignorar essa matéria da opção da figura contratual seguida pelas partes e, ignorou também o teor do contrato e do relatório da AT, juntos aos autos, considerou que o negócio em causa não estava sujeito ao IVA, uma vez que o classificou como de “trespasse”.
f) O Tribunal não podia ignorar neste negócio formal a declaração feita pelas partes atribuindo-lhe um sentido que não tinha um mínimo de correspondência com o texto do documento esquecendo o regime do art. 238º do C. Civil, tanto mais que apurara a vontade real dos declarantes do contrato que os levara à escolha daquela via, o que o impedia de fazer interpretação em sentido diverso – art. 236º nº 2 do C. Civil.
g) Conforme resulta da alínea a) do artigo 2.º do CIVA, cabe ao transmissário (ou cessionário neste caso), a Recorrida, o pagamento do IVA, uma vez que é este o sujeito passivo desse imposto, sendo a extinta “J…, Lda.” apenas a cobradora do mesmo com a obrigação de o entregar ao Estado.
h) E só pelo facto de não ter cobrado da Recorrida na ocasião o IVA é que se constituiu solidariamente a sua obrigação de pagamento.
i) Entendeu a AT que os contratos pelos quais se cede a posição contratual de arrendatário, recebendo a título de preço, determinada quantia, configuram uma prestação de serviços, para efeitos do artigo 4.º do CIVA estamos no caso dos autos “perante a transmissão de um direito, em que o cedente, J…, Lda., transmite ao cessionário, I…, Lda., a utilização do espaço, operação que consubstancia uma prestação de serviços, nos termos do artigo 4.º do CIVA”.
j) E tanto assim é, que prevêem a alínea a) do número 1 do artigo 19.º e a alínea a) do número 1 do artigo 20.º, ambos do CIVA, que a Recorrida podia até deduzir o IVA pago na sua actividade, o que é muito relevante para a apreciação daquilo que cada uma das partes podia esperar da concretização do negócio, em termos de contraprestações.
k) os Recorrentes, ao pagarem o imposto que não lhes competia, viram frustrada a sua expectativa de recebimento de um determinado preço pelo simples facto de as partes não terem cuidado de acautelar o IVA no contrato que celebraram, quando se preocupam mais com o direito de preferência do senhorio.
l) Também temos que discordar da decisão quando diz no seu ponto 3 que tendo a inspectora feito incidir o IVA apenas sobre os 100.000 euros e não sobre os 120.000 euros, os Recorrentes não ficaram em nada lesados, já que ao contrário do que conclui, assim a Recorrida teria cumprido a sua obrigação de pagamento do imposto.
m) A verdade é que os Recorrentes estão privados da quantia de 20.000,00 euros que contavam ter recebido a título de preço e que tiveram de entregar à AT, quando competia à Recorrida pagar esse valor que, bem ou mal calculado, correspondia ao IVA que incidiu sobre o negócio desejado de cessão de posição contratual.
n) Violou assim a douta decisão recorrida, designadamente, as disposições da alínea a) do art. 1º e nº 1 do art. 4º do CIVA, 236º nº 1 e 2 e 238º do C. Civil e 659º do C.P.C..
A ré apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela improcedência do recurso.
O Desembargador Relator considerou que a questão suscitada revelava simplicidade e, em conformidade com o disposto na alínea c) do artigo 700.º, e no artigo 705.º, ambos do Código de Processo Civil, proferiu decisão sumária singular, negando provimento ao recurso e mantendo a sentença recorrida.
Não se conformaram os recorrentes, e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 700.º do Código de Processo Civil vieram requerer que sobre a matéria do recurso recaia um acórdão.
Como fundamento da sua pretensão, alegaram em síntese os reclamantes (fls. 154):
«[…] 4. De facto, data vénia, ao contrário do referido a fls 142 da douta decisão, verifica-se in casu que as partes quiseram distinguir por um lado a cessão da posição contratual, contrato que formalizaram por documento junto aos autos e,
5. Por outro lado, a venda do imobilizado que integrava o estabelecimento comercial,
6. Precisamente visando defender-se do direito que ao senhorio assistia.
7. Não se tratou assim de uma mera escolha da denominação do contrato, mas antes de um expediente jurídico adequado ao fim que visaram todas as partes denominação que foi por isso adequada,
8. E que tem obrigatoriamente de presidir à interpretação do contrato.
9. Daí que não possa dizer-se que as partes pretenderam celebrar um contrato de trespasse quando de facto desejaram separar a transmissão do direito resultante do contrato de arrendamento da venda que igualmente fizeram dos bens que integravam o estabelecimento comercial. […]».
A recorrida não se pronunciou.
Apreciando em conferência, cumpre decidir.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões. i) qualificação jurídica do negócio celebrado entre a sociedade “J…, Lda.” e a ré (recorrida); ii) averiguação sobre se da celebração de tal negócio emerge a obrigação de reembolso por parte da ré, do valor pago pelos autores a título de IVA.

2. Fundamentos de facto
Provaram-se os seguintes factos, que não foram objecto de qualquer impugnação:
a) 1. A sociedade por quotas “J…, Lda.” foi constituída em 16 de Fevereiro de 1984, tendo-se mantido em actividade até 2 de Abril de 2009, data em que foi dissolvida e encerrada a liquidação, com a consequente extinção da sociedade.
b) Os AA. foram os representantes legais daquela sociedade até à sua extinção, primeiro enquanto Sócios-Gerentes, até à dissolução, e, posteriormente, como Liquidatários, até à extinção, qualidade em que se encontram na presente lide.
c) A Sociedade “J…, Lda.” foi arrendatária das lojas sitas na Rua …, n.ºs … e …, na freguesia …, na cidade do Porto, propriedade da Câmara Municipal …, que as deu de arrendamento a K… e L…, por contratos celebrados em 8 de Outubro de 1952 e 27 de Outubro de 1952, respectivamente, de quem as recebeu por trespasse, mantendo-se aí em actividade até 3 de Fevereiro de 2009.
d) Até essa data nos espaços arrendados a extinta Sociedade explorou ininterruptamente um estabelecimento de snack-bar, pastelaria, confeitaria e café.
e) Em 3 de Fevereiro de 2009, os representantes da sociedade J…, Lda.” e o representante da R. outorgaram o documento intitulado “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, junto com a petição inicial a fls. 24 e 25.
f) Conjuntamente com a outorga do contrato a extinta sociedade transmitiu à R. o estabelecimento comercial que funcionava naqueles espaços com todos os elementos que o compunham.
g) A R. passou a explorá-los enquanto nova titular do estabelecimento comercial e dos respectivos contratos de arrendamento.
h) As partes fixaram o preço da denominada “cessão” em € 120.000,00 que a R. pagou à extinta “J…, Lda.”.
i) A sociedade extinta apresentou declaração periódica de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), com o n.º …./….
j) A R. contabilizou o negócio nos mesmos termos da Sociedade extinta, não contemplando nas suas declarações fiscais o IVA da operação.
k) A Sociedade “J…, Lda.” cessou a sua actividade em 2 de Abril de 2009.
l) No decorrer de uma acção inspectiva promovida pela então Direcção-Geral de Contribuição e Impostos, hoje Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), foram detectadas alegadas irregularidades na liquidação do IVA no processo de cessação da empresa.
m) Daqui resultou uma nova acção inspectiva, ordenada pela Direcção de Finanças do Porto, pela Ordem de Serviço n.º ……….., que se iniciou a 14 de Setembro de 2010, cujo relatório se mostra junto como documento n.º 2.
n) Essa acção, decorreu até 11 de Outubro de 2010, e incidiu sobre a alegada irregularidade na liquidação do IVA durante a cessação de actividade pela Sociedade, ou seja, relativas ao ano de 2009.
o) Em conclusão considerou a Inspectora que “a referida operação de cessão, a título oneroso, da posição do sujeito passivo no contrato, a favor de outra sociedade, consubstancia uma prestação de serviços”, e, consequentemente, está sujeita ao IVA, sendo que, neste caso, “o montante a liquidar totaliza o valor de € 20.000,00”.
p) Confrontados os AA. com esta situação, os AA entregaram a expensas suas e em partes iguais, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), valor de IVA que foi fixado pela AT pela operação, conforme documento nº 3 junto com a petição inicial.
q) Contabilisticamente, a extinta Sociedade procedeu à entrega da declaração periódica do IVA para o primeiro trimestre do ano de 2009 e efectivou o respectivo pagamento, conforme documento nº 4 junto com a petição inicial.
r) Os AA. em representação da sociedade J…, Lda. e Ré, acordaram a cessão da posição contratual dos contratos de arrendamento de que aquela era titular, porque pretendiam evitar a possibilidade de permitir ao senhorio exercer o direito de preferência no caso de trespasse.
s) O preço de 120.000,00€ foi fixado pelos AA. e comunicado à Ré sendo aquele montante o valor global e final a despender pela Ré no negócio.
t) Antes da celebração do contrato, a sociedade J…, Lda., solicitou e obteve autorização da Câmara Municipal …, senhoria das lojas … e … da Rua …, no Porto, para ceder a sua posição de arrendatária à R., conforme documento n.º 1 junto coma contestação a fls. 78
u) A Ré passou a explorar o estabelecimento comercial anteriormente explorado pela sociedade de que eram sócios os AA, compreendendo-se nos elementos que compunham o estabelecimento transmitido para a R. as mesas, cadeiras, balcões, louça, electrodomésticos, alvará sanitário, clientela, mantendo a R. a actividade de restauração, exercida pela sociedade extinta.
v) Também o alvará sanitário foi posteriormente averbado em nome da Ré, conforme documento junto com a contestação a fls. 81.

3. Fundamentos de direito
3.1. Qualificação jurídica do contrato
Assume particular relevância, a qualificação jurídica do negócio celebrado, objecto de divergência das partes, afirmando os autores que se trata de um “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, tal como as partes o denominaram, contrapondo a ré que se configura como um “Trespasse”, tal como as partes o quiseram.
Vocacionados para dirimir a questão, os artigos 236.º a 238.º do Código Civil prevêem as regras que o intérprete deverá seguir, consagrando uma doutrina objectivista da interpretação, temperada por uma salutar restrição de inspiração subjectivista[1].
O n.º 1 do artigo 236.º consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, nestes termos: «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».
O n.º 2 do citado normativo estabelece o princípio de que «[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».
O artigo 237.º prevê as situações de dúvida interpretativa, estabelecendo o seguinte critério para a sua superação: «Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».
Finalmente, o n.º 1 do artigo 238.º estabelece o primado do elemento interpretativo literal: «Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso»; prevendo o n.º 2 as condições excepcionais e específicas do seu afastamento: «Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade».
A jurisprudência tem considerado que «na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, “a vontade real do declarante”, sempre que for conhecida do declaratário; faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)»[2].
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[3] em anotação ao artigo 236.º do Código Civil, enuncia-se no n.º 1 deste normativo, a seguinte regra: «o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante».
Referem os autores citados que se exceptuam apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º 2), concluindo que o objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.
No que concerne ao conceito normativo de “declaratário normal”, referem os autores citados que tal “normalidade” se exprime, não só na “capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”.
A ambiguidade objectiva, ou até a inexactidão da expressão externa, como refere Mota Pinto[4], não impedem a relevância da vontade real se o destinatário a conheceu, sendo certo que, havendo coincidência de sentidos (o que o declarante quis e o que o declaratário compreendeu), será esse o sentido decisivo
Voltando à situação concreta, para a interpretação do contrato provou-se com particular relevância: a sociedade “J…, Lda.” foi arrendatária das lojas sitas na Rua …, n.ºs … e …, na freguesia …, na cidade do Porto, propriedade da Câmara Municipal … (facto c); até 3.02.2009, nos espaços arrendados a referida sociedade explorou ininterruptamente um estabelecimento de snack-bar, pastelaria, confeitaria e café (facto d); em 3.02.2009, a sociedade J…, Lda.” e a ré outorgaram o documento intitulado “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, junto com a petição inicial a fls. 24 e 25 (facto e); com a outorga do contrato, a sociedade “J…, Lda.” transmitiu à ré o estabelecimento comercial que funcionava naqueles espaços com todos os elementos que o compunham (facto f); a ré passou a explorá-los enquanto nova titular do estabelecimento comercial e dos respectivos contratos de arrendamento (facto g); as partes fixaram o preço de € 120.000,00 que a ré pagou (facto h); a sociedade “J…, Lda.” cessou a sua actividade em 2 de Abril de 2009 (facto k); a sociedade J…, Lda. e a ré acordaram a cessão da posição contratual dos contratos de arrendamento de que aquela era titular, porque pretendiam evitar a possibilidade permitir ao senhorio a possibilidade do senhorio exercer o direito de preferência no caso de trespasse (facto r); antes da celebração do contrato, a sociedade J…, Lda., solicitou e obteve autorização da Câmara Municipal …, senhoria das lojas … e … da Rua …, para ceder a sua posição de arrendatária à R., conforme documento n.º 1 junto coma contestação a fls. 78 (facto t); a ré passou a explorar o estabelecimento comercial anteriormente explorado pela sociedade J…, Lda., compreendendo-se nos elementos que compunham o estabelecimento transmitido para a R. as mesas, cadeiras, balcões, louça, electrodomésticos, alvará sanitário, clientela, mantendo a R. a actividade de restauração, exercida pela sociedade extinta; o alvará sanitário foi posteriormente averbado em nome da Ré, conforme documento junto com a contestação a fls. 81 (facto v); a sociedade “J…, Lda.” foi dissolvida em 2.04.2009, e encerrada a sua liquidação com a consequente extinção.
Em suma: a sociedade “J…, Lda.” (de que os autores eram representantes legais) transferiu para a ré o estabelecimento comercial, com todos os elementos integrantes (mesas, cadeiras, balcões, louça, electrodomésticos, alvará sanitário, clientela e posição contratual no arrendamento), definitivamente, mediante um preço acordado (€ 120.000,00), extinguindo-se de seguida.
Provou-se também que as partes contraentes, com o objectivo de contornar a faculdade legal que assistia ao senhorio, de exercer o direito de preferência em caso de trespasse, decidiram denominar o contrato como “cessão da posição contratual”.
Que contrato será este? Estará o intérprete vinculado à denominação que as partes lhe atribuíram? Ou antes, terá apenas que considerar o que resulta das suas cláusulas?
É óbvia a irrelevância do nomen iuris, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6.05.2004[5]: «[…] a qualificação de um contrato, na perspectiva da definição do respectivo regime, é uma questão jurídico-normativa a solucionar fundamentalmente por subsunção da factualidade convencionada aos módulos legais. Traduzindo-se a liberdade que o artigo 405.º do Código Civil reconhece aos contraentes essencialmente na definição desse conteúdo, e de modo nenhum na livre escolha de um tipo contratual envolvente do clausulado, como quer que este se configure, trata-se, na qualificação jurídica de um contrato, de operação que abstrai da concreta vontade das partes dirigida a um ou outro modelo negocial, sendo por isso mesmo relativamente despiciendo na qualificação o nomen iuris que as partes tenham decidido aplicar ao convénio».
É a partir do clausulado que cumpre averiguar qual a vontade real das partes quando celebraram o contrato em discussão nos autos, e esse elemento interpretativo essencial não deixa margem para dúvidas ou ambiguidades: as partes ao celebrarem o contrato quiseram proceder – como procederam - à transferência definitiva e unitária para a ré, do estabelecimento comercial da sociedade “J…, Lda.”, que veio a extinguir-se decorrido cerca de um mês após a outorga do contrato.
É pacífico o entendimento doutrinário do conceito de “estabelecimento comercial”, como integrando uma universalidade de direito universitas iuris, um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos - bens móveis e imóveis, direito ao arrendamento ou à utilização do espaço, direito de uso do nome do estabelecimento, marcas, patentes de invenção, alvarás, etc -, não podendo ser decomposto enquanto universalidade[6].
Consistindo na transmissão definitiva inter vivos, gratuita ou onerosa, da titularidade de estabelecimento comercial, o trespasse implica, necessariamente, a transferência, em conjunto, das instalações, mercadorias, utensílios e direitos inerentes à organização empresarial que constitui[7].
O que as partes celebraram – e quiseram celebrar – foi um contrato de trespasse, como bem se conclui na sentença recorrida:
«[…] Este negócio, como também resultou do julgamento – foi um trespasse, entendido na nossa doutrina como a transferência definitiva, global ou unitária, do estabelecimento comercial ou industrial, com todos os elementos corpóreos e incorpóreos que o constituem […]. Aliás os AA desde logo no seu artigo 10º e 11º da petição inicial (que transitaram por acordo para as alíneas f) e g) dos factos provados) alegam que com a outorga do contrato, a extinta sociedade transmitiu à R. o estabelecimento comercial que funcionava naqueles espaços, com todos os elementos que o compunham, passando a R. a explorá-los enquanto nova titular do estabelecimento comercial e dos respectivos contratos de arrendamento. Adicionalmente, resulta dos factos u) e v) da matéria de facto provada, que a Ré passou a explorar o estabelecimento comercial anteriormente explorado pela sociedade de que eram sócios os AA, compreendendo-se nos elementos que compunham o estabelecimento transmitidos à R., as mesas, cadeiras, balcões, louça, electrodomésticos, alvará sanitário, clientela, mantendo a R. a actividade de restauração anteriormente exercida pela extinta sociedade de que os AA eram sócios […]».
A afirmação de que as partes contraentes quiseram celebrar o negócio em causa (trespasse) não colide com o facto de os contraentes terem atribuído ao contrato um nomen iuris que não lhe corresponde nem se harmoniza com as cláusulas que estipularam e com que reciprocamente se vincularam.
O efeito jurídico efectivamente pretendido por ambas as intervenientes era a transferência onerosa, definitiva e unitária do estabelecimento (até porque a sociedade transmitente viria a extinguir-se cerca de um mês depois), e apenas lhe atribuíram a designação de “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, «porque pretendiam evitar a possibilidade de permitir ao senhorio exercer o direito de preferência no caso de trespasse (facto r)».
Não se verifica in casu a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, na modalidade de simulação relativa (art. 241.º do CC), na medida em que apenas foi “simulada” a denominação do contrato (com o intuito de impedir o senhorio de usar a faculdade legal – preferência – que lhe assistia), não existindo dois negócios (o efectivamente pretendido e o formalizado), mas apenas um, com os efeitos que ambas as contraentes pretendiam, e com uma denominação que não se lhe adequa, sendo por isso absolutamente irrelevante.
Vêm agora os recorrentes, em sede de reclamação, afirmar que: atribuíram a designação ao contrato «6. Precisamente visando defender-se do direito que ao senhorio assistia»; «7. Não se tratou assim de uma mera escolha da denominação do contrato, mas antes de um expediente jurídico adequado ao fim que visaram todas as partes denominação que foi por isso adequada»; e que tal “expediente jurídico” «8. (…) tem obrigatoriamente de presidir à interpretação do contrato».
Com o devido respeito, a alegação dos recorrentes em sede de reclamação não põe em causa a conclusão enunciada na sentença e na decisão do Relator, de que, provando-se que o efeito jurídico efectivamente pretendido e alcançado pelos contraentes foi a transferência onerosa, definitiva e unitária do estabelecimento, e que apenas lhe atribuíram a designação de “Contrato de Cessão de Posição Contratual”, com o objectivo de contornar a faculdade legal que assistia ao senhorio de exercer o direito de preferência em caso de trespasse[8], tal nomen iuris é irrelevante na qualificação jurídica do contrato, que deverá ser definida em função das suas cláusulas e não da denominação que lhe foi atribuída.
Em coerência com o exposto, concluem em conferência, os juízes que integram este colectivo, que não merecem reparo ou censura, nem a sentença recorrida, nem o despacho do relator, na parte em que interpretam o negócio celebrado, como contrato de trespasse.
3.2. A alegada obrigação de reembolso
Alegam os recorrentes que sobre a ré recai o dever de reembolso relativamente à quantia que pagaram a título de IVA.
Conclui-se na sentença:
«Nos termos do artigo 3º n.º 4 do Código do I.V.A., “ Não são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º”. Tendo acima concluído que estávamos perante um trespasse, daqui parece resultar que efectivamente a transmissão não estava sujeita a I.V.A. Ora os AA conformaram-se com a interpretação da Autoridade Tributária, que atendendo somente ao título que as partes atribuíram ao contrato, considerou que não estávamos perante um trespasse, mas perante uma cedência da posição contratual. Assim, os AA pagaram a quantia agora peticionada, sem ao menos reclamar contra essa liquidação, o que não se compreende, já que segundo alegam estiveram sempre convencidos de que aquele negócio não estaria sujeito a I.V.A., conformando-se com a interpretação das Finanças no sentido de que se estaria perante uma prestação de serviços e não da transmissão global e definitiva de um estabelecimento comercial, com todos os elementos corpóreos e incorpóreos, como efectivamente ocorreu.
3: Mas ainda que assim não fosse, isto é, que se considerasse que sobre o referido negócio incidia I.V.A., ainda assim a acção teria que improceder. É que a ter ocorrido uma transmissão sujeita a I.V.A., aquele imposto incidiu sobre 100.000, € e não sobre os 120.0000,00 €.
Isto é, as Finanças consideraram que o preço pago pela R. correspondeu a 100.000,00 €, fazendo incidir o I.V.A. sobre este montante, tendo a Ré entregue 20.0000,00 € a título de I.V.A. Se assim não fosse, então a taxa de 20% seria sobre os 120.000,00 €, e assim sendo teria que ser liquidado a título de I.V.A. a quantia de 24.0000,00 € e não apenas 20.000,00 €. Ou seja, na perspectiva das Finanças – com a qual os AA concordam, tanto que pagaram o imposto sem reclamar – a Ré entregou à sociedade extinta a quantia de 120.000,00 €, sendo 100,000,00 € relativos ao negócio e 20.0000,00 de I.V.A., pelo que sempre a Ré teria cumprido esse eventual dever de pagar o I.V.A., funcionando a sociedade extinta como cobradora efectiva desse mesmo imposto.
4. Por último, deve considerar-se que o que se acordou foi a entrega de 120.000,00 €, e não de 120,000.000 € mais I.V.A. Isto é, caso a R. soubesse que teria que pagar essa quantia a título de I.V.A., então provavelmente não teria celebrado o negócio, não alegando (e provando) os AA que a R. aceitaria celebrar o mesmo negócio pelo valor global 140.0000,00 € (valor este que não foi tido em conta pela R) pelo que estaríamos então perante um erro sobre o objecto do negócio nos termos do artigo 251º do Cód. Civil.»
Questão mais do que pertinente é esta: a que título deverá a recorrida pagar IVA relativamente a um contrato de trespasse que, nos termos da lei, está isento de tal tributação?
Dizem os recorrente que, se alguém tem que pagar o imposto em causa, deverá ser a recorrida (adquirente).
Não nos incumbe fazer aqui uma apreciação da decisão tributária, sendo certo que o Tribunal que teria competência material para o fazer não foi chamado a pronunciar-se, porque os autores se conformaram com a decisão administrativa.
Questionamo-nos: qual a fonte de obrigação subjacente à pretensão dos autores/recorrentes?
Não se trata de uma obrigação tributária (é esta a configuração feita pelos recorrentes), porque a mesma, como se concluiu, não existe.
Sem o afirmar explicitamente, os recorrentes alegam um direito que se poderá equacionar como direito de regresso (art. 524.º CC), ou como sub-rogação (art. 592.º CC).
A diferença entre estes dois institutos jurídicos, de acordo com a doutrina tradicional[9] traduz-se na seguinte dicotomia: pela sub-rogação, transmite-se um direito de crédito existente, ao passo que o direito de regresso significa o nascimento de um direito novo na titularidade da pessoa que, no todo ou em parte, extinguiu uma anterior relação creditória (art. 524.º) ou à custa de quem esta foi extinta (art. 533.º); o direito de regresso, maxime na solidariedade passiva, traduz-se num direito de reintegração do devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas[10].
O nosso ordenamento jurídico disciplina a sub-rogação e o direito de regresso como figuras jurídicas distintas sendo a sub-rogação restrita a terceiro que cumpra a obrigação, ao passo que o direito de regresso surge em sede de solidariedade entre devedores (art. 518.º e seguintes do CC).
Face à forma como os autores configuram a sua pretensão, a mesma não pode emergir de qualquer direito de regresso, na medida em que os autores não se afirmam devedores solidários com a ré, porque entendem que a dívida (crédito tributário) seria da exclusiva responsabilidade desta.
Resta-nos assim a figura da sub-rogação, que nos termos do n.º 1 do artigo 592.º do Código Civil apenas ocorre nas seguintes circunstâncias: «Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito».
Na situação sub judice, tal como os autores (recorrentes) configuram o suporte jurídico da sua pretensão, teriam cumprido uma obrigação tributária que recaía exclusivamente sobre a ré, estando directamente interessados na satisfação dessa obrigação (na medida em que foram para o efeito interpelados pela Autoridade Tributária).
No entanto, com o devido respeito, tal suporte jurídico cai por terra face à conclusão já anteriormente enunciada e repetida: o negócio jurídico consubstancia-se num contrato de trespasse (sendo irrelevante o nomen iuris que as partes lhe atribuíram), não sendo devido o imposto que os recorrentes pagaram sem reclamar.
Não existe, em suma, qualquer fonte que legitime juridicamente a exigência de reembolso por parte dos recorrentes, razão que implica o inevitável naufrágio do recurso.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam em conferência os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a reclamação, à qual negam provimento, mantendo em consequência o despacho reclamado.
Custas pelos reclamantes.
*
O presente acórdão compõe-se de vinte e uma páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
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Porto, 30 de Setembro de 2013
Carlos Manuel Marques Querido
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
Alberto Augusto Vicente Ruço
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[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, pág. 223.
[2] Acórdãos do STJ de 14.01.1997 (CJ-STJ, V, 1, 47 ) e de 20.10.2009 – Proc. 1307/06.9TBPRD.S1, acessível no site da DGSI.
[3] Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, pág. 223.
[4] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 449.
[5] Proferido no Processo n.º 03B3416, acessível em http://www.dgsi.pt.
[6] Januário Gomes (Arrendamentos Comerciais, 2.ª edição, Almedina, 1993, pág. 162 e 163), chama a tenção para o facto de, apesar de o trespasse se traduzir numa transferência definitiva e unitária do estabelecimento, haver a possibilidade de se verificar o instituto em apreço em situações em que sejam transmitidos apenas os elementos que “caracterizam” o estabelecimento, aqueles que formam o seu “minimum” identificador.
[7] Vide acórdão do STJ, de 6.04.2006, proferido no Processo n.º 06B336, acessível em http://www.dgsi.pt. Como se refere no citado aresto, “o estabelecimento comercial não se confunde com os elementos que o constituem, constituindo uma realidade jurídica distinta da simples soma desses elementos, e daí que o seu valor não seja pura e simplesmente igual à soma dos valores do seu activo considerados à margem da organização, antes implicando o simples facto dessa organização uma valorização especial para cada um desses bens, de tal modo que, enquanto elementos do estabelecimento, valem alguma coisa mais do que valeriam consideradas isoladamente, e também o valor do todo sendo superior ao da soma das suas partes”. No mesmo sentido, vide acórdão desta Relação, de 11.03.2004, proferido no Processo n.º 0336993, acessível no mesmo site, onde, citando Orlando de Carvalho, se conclui que «Trespasse é a transmissão em globo do estabelecimento, isto é, o que nele está em causa, o bem transmitido, é o próprio estabelecimento ou empresa como “concreta organização de factores produtivos”».
[8] Os recorrentes na reclamação assumem esta motivação, chamando-lhe “expediente jurídico” e confessando que com ele visavam “defender-se do direito que ao senhorio assistia”.
[9] Vide Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 12.ª edição, 2011, pág. 826.
[10] Vide, no mesmo sentido, acórdão da Relação de Coimbra, de 24.01.2012, Proc. 644/10.2TBCBR-A.C1, acessível no site da DGSI: «O modo como o Código Civil constrói a sub-rogação legal, permite distingui-la do direito de regresso. Ao contrário do credor sub-rogado, que antes da satisfação do direito do credor era terceiro, alheio ao vínculo obrigacional, o titular do direito de regresso é um devedor com outros, o seu direito nasce, ex novo, com a extinção da obrigação a que também ele estava vinculado».