Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0856074
Nº Convencional: JTRP000418893
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE LEGÍTIMA
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP200811240856074
Data do Acordão: 11/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 358 - FLS 248.
Área Temática: .
Sumário: O artigo 1842º nº 1, c) do Código Civil é inconstitucional na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 6074/08-5
5ª SECÇÃO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
B………., casado, intentou contra C………., casada e D………., solteira, menor, acção declarativa com processo ordinário de Impugnação de Paternidade Legítima, pedindo que, se declare que a 2ª Ré não seja reconhecida como filha biológica e legítima do autor com todos os efeitos legais, ordenando-se o cancelamento ou rectificação do registo de nascimento da 2ª Ré, relativamente à paternidade aí estabelecida.
Na sua contestação a menor D………., representada pelo Digno Magistrado do Ministério Público, veio alegar a caducidade do direito de acção do Autor, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
A 1ª Ré contestou por impugnação.
Replicando, veio o Autor afirmar a inconstitucionalidade da norma do artigo 1842º nº 1 alª a) do Código Civil.

No despacho saneador foi julgada procedente a referida excepção peremptória da caducidade, sendo, em consequência, absolvidas as Rés do pedido.

Apelou o Autor, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
1- A lei estabelece a presunção de paternidade, na qual se presume que o filho nascido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o seu marido.
2- A referida presunção pode ser ilidida quando existam sérias dúvidas sobre a paternidade do marido da mãe, usando-se como meio de prova o recurso a exames hematológicos de ADN.
3- A decisão do Tribunal “a quo”, não permitindo a possibilidade de ser realizada a prova biológica de paternidade, negou de forma infundada, o direito de o recorrente ilidir a sua presunção de paternidade.
4- A sentença violou assim os artigos 1801º, 1826º, do Código Civil e a alínea b) do nº 1 do artº 668º do CPC.
5- A decisão recorrida julgou uma norma julgada inconstitucional.
6- A decisão recorrida violou a alínea c) do nº 1 do artigo 1842º, quando a conforma no sentido de a mesma ter aplicação (não sendo inconstitucional) nos casos de impugnação de paternidade, em violação clara à jurisprudência do STJ que não faz qualquer distinção entre as situações de investigação e de impugnação de paternidade.
7- A decisão recorrida viola claramente o direito à identidade, direito fundamental previsto nos artºs 25º e 26º da constituição da República.
8- O direito da acção de impugnação de paternidade não caducou por força da norma aplicada na decisão em recurso em virtude de a interpretação que lhe foi dada ser inconstitucional por violação do princípio constitucional da proporcionalidade.
9- O direito à identidade é um direito fundamental, de aplicação directa (artº 18º da CRP) e a sua valorização como direito fundamental da pessoa fazem-no prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação.
Pede, a final, a revogação da decisão.

Contra-alegou o Ministério Público, em representação da menor, 2ª Ré, pugnando pela manutenção do julgado.
II
Com relevo para a decisão da causa, encontram-se provados os seguintes factos:
1) A 2ª Ré nasceu em 24.08.2004.
2) O Autor e a 1ª Ré, casaram no dia 05.05.1991
3) O Autor declarou na petição inicial que a 1ª Ré abandonou o lar conjugal em Dezembro de 2003, tendo apenas regressado em Junho de 2004, encontrando-se então grávida de 7 meses.
4) Mais declarou que, nesse período de tempo o Autor não manteve com a 1ª Ré qualquer tipo de relacionamento sexual.
5) E que, a 1ª Ré em Julho de 2007 abandonou de novo o lar conjugal e desabafou à mãe do Autor que “a D………. não tinha o sangue do pai.
6) E que, comenta-se na ladeia que, mesmo antes de ter saído de casa em Dezembro de 2003, já a 1ª Ré se fazia acompanhar e era vista com outro homem.
7) A 1ª Ré intentou uma acção de divórcio litigioso contra o A. que corre termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão sob o nº …./07.OTJVNF, do .º Juízo Cível.
8) A presente acção foi proposta em 26.11.07.
III
Apreciando:
Considerando o preceituado no artº 1842º nº 1 alínea a) do C. Civil, importa apurar se ocorreu a dita caducidade do direito de acção, como foi o entendimento da 1ª instância.
Essa norma exige que a acção de impugnação da paternidade pelo marido da mãe seja intentada no prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se pela sua não paternidade.
Ora, da sua afirmação de que as relações sexuais com a mãe do menor cessaram em Dezembro de 2003 e o facto de ter tido conhecimento da gravidez de 7 meses, em Junho de 2004 e da data do nascimento em 24 de Agosto de 2004, retira-se que a menor teria sido concebida entre Novembro e Dezembro, não sendo essa factualidade que lhe permitiria concluir pela sua não paternidade, uma vez que a 1ª Ré, em tal data coabitava com o Autor e este admite que só a partir de então deixou de ter relações sexuais com ela.
Assim, a factualidade relevante para apurar o respeito ou desrespeito do prazo não poderá deixar de ser a afirmação da 1ª Ré que “a 2ª Ré não tem o sangue do Autor”.
Só então ele tem conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se pela sua não paternidade.
Nenhum outro facto, ocorrido anteriormente o pode motivar à acção. A 2ª Ré foi concebida quando Autor e 1ª Ré coabitavam.
Ora, tendo a “confissão” da 1ª Ré ocorrido em 2007 a acção intentada em Novembro de 2007, está em prazo.
E, não se diga que a data que conta é a dos factos, não a do momento em que o marido chegou à conclusão de poderiam eles fundamentar a impugnação, pois a lei o que exige é o “conhecimento de circunstâncias”, “não a ocorrência de factos”, para iniciar a contagem do prazo.
Temos assim, fundamento factual para julgar procedente o recurso de apelação.
Não podemos contudo deixar de nos pronunciarmos sobre a invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 1842 nº 1 alª a) CC, na esteira aliás da mais recente jurisprudência do STJ.
Leia-se, a propósito, o elucidativo Ac. do STJ de 21-02-2008 Relator: Bettencourt de Faria, in www.dgsi/jstj, assim sumariado:
“O prazo do artº 1842º, nº 1, alínea a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional”.
Como bem se desenvolve nesse acórdão:
«A questão que se coloca é a de saber se a caducidade em causa estabelece um limite desproporcional ao valor constitucional que o exercício do direito de acção em causa pretende salvaguardar. Por outras palavras, trata-se de averiguar se o dito prazo de caducidade, não permite, na prática, que seja devidamente garantido esse valor».
Importa apurar qual o direito constitucional a consagrar.
O Acórdão do TC nº 23/06 de 10.01, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do nº 1 do artº 1817º nº 1 do C. Civil, que prevê a extinção por caducidade do direito de investigar a paternidade a partir dos 20 anos de idade do filho, conforme o artº 26º nº 1 da Constituição, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”. Tratando-se de estabelecer a paternidade, invoca-se, pois, o direito à identidade – na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem -, dos artºs 25º nº 1 e 26º nº 1 da Constituição – que não seria devidamente acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita aos dito prazo de caducidade.
Tem-se vindo a discutir se esta doutrina é aplicável às acções de impugnação da paternidade, que no artº 1842º nº 1 alíneas a), b) e c) do C. Civil, estão sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam elas propostas, respectivamente, pelo marido, pela mãe, ou pelo filho.
No Acórdão do TC nº 473/07 – DR II Série 18.01.08 -, entendeu-se que: “Há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal”.
“...não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de autoconformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai...”
Entendemos que na acção de investigação, é, efectivamente, o direito à identidade que está em causa, independentemente de ser o marido, a mãe ou o filho a accionar.
São tudo faces de uma mesma realidade.
No Acórdão do TC nº 609/07 de 11.12.07, versando sobre a hipótese da acção de impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, consignou-se que: “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artº 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código.
Não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições”.
Também aqui se reconhece que o direito constitucional a salvaguardar é, o direito à identidade.
É certo que a decisão que motivou tal acórdão, tratava apenas da hipótese da acção de impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, sendo unicamente em relação a esta modalidade que declarou a inconstitucionalidade do prazo de caducidade.
Contudo, as razões subjacentes devem valer também para o caso do autor da impugnação ser o pai.
Com efeito, também aqui, para além do autor defender um direito próprio à verdade biológica em matéria de paternidade, está a garantir um direito à identidade do presumido filho.
Nem se diga que a caducidade da acção a propor pelo pai não impede que o filho venha, mais tarde, a propor a sua própria acção de impugnação, agora sem prazo. É que, o facto do filho poder sempre impugnar, não deve impedir a impugnação do presumido progenitor, na salvaguarda de um direito constitucional.
O prazo em questão apresenta-se como uma salvaguarda desproporcional deste segundo grupo de valores, face à defesa do direito constitucional do direito à identidade do artº 26º nº 1 da Constituição.
Logo esse prazo, o do artº 1842º nº 1 alínea a) do C. Civil, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.
Assim, também com este de fundamento de inconstitucionalidade, não se verifica a caducidade da acção.
Termos em que procede o recurso.
III
Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pelas recorridas.

Porto, 24 de Novembro de 2008
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia
Maria Adelaide de Jesus Domingos