Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0434100
Nº Convencional: JTRP00037191
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
Nº do Documento: RP200409210434100
Data do Acordão: 09/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - As causas gerais de invalidade do negócio jurídico (artigos 251 a 257 do Código Civil) só podem aplicar-se parcialmente e a título subsidiário ao testamento se forem compatíveis com o espírito das causas especiais testamentárias (artigos 2199 e 2201 n.1 2203 do Código Civil).
II - A nulidade do testamento ou de uma disposição testamentária tem um regime aproximado da anulabilidade; as diferenças estão no círculo de pessoas legitimadas para agir (o que tem efeitos quanto à confirmação) e no prazo em que o podem fazer.
III - Ao contrário do que ocorre com a anulação da declaração negocial em geral por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (artigo 257 n.1, do Código Civil), na anulação do testamento pela mesma “incapacidade acidental”, já a lei não exige essa notoriedade, bastando-se com a própria incapacidade natural (cfr. artigo 2199, do Código Civil).
IV - Um documento autêntico, como é o testamento, só tem força probatória plena quanto à acções ou percepções do oficial público no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser ilididas com base na sua falsidade.
V - Se o testador não ouviu, nem a leitura do testamento, nem as explicações (ut artigo 50, Código do Notariado) que no acto tenham sido prestadas-- mesmo que lidas em voz alta (o que não vem referido no instrumento notarial)--, impunha-se que o lê-se em voz alta (artigo 66, n.1, ex vi do artigo 70, n.1, alínea b), ambos do Código do Notariado), sob pena de nulidade desse acto notarial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No .... Juízo Cível do Tribunal da comarca de Santo Tirso,
A........................, residente na casa do ........., ............., S. Tirso,
intentou acção, com processo ordinário contra:
1º- B........................ e, esposa, C................., residentes em ........., ......., Paços de Ferreira;
2º- O D.................., com sede em ........., Leça do Bailio;
3º- E.........................................., S. Tirso;
4º- F................................, com sede na rua de ............, ..., Lisboa;
5º- G..........................., com sede na rua ........, ...-...., Porto;
6º- H...................., com sede no Largo ........ ......, ........., Amadora;
7º- I....................................., com sede na rua dos ................, ....., Aveiro;
8º- J........................., residente na rua de ..........., ...-..., Porto;
9º- L........................, com sede na rua das ......., ...., Porto;
10º- M........................., com sede na rua da ................., ...., S. Tirso.

Pede:
Que seja "declarado nulo ou anulável o Testamento de N.................., lavrado aos 24 de Julho de1997, no 3" Cartório Notarial do Porto".

Alega, em síntese, que:
A autora casou, em 23 de Março de 1968, com N......................., que nasceu em 26 de Janeiro de 1909 e faleceu em 8 de Setembro de 2000.
O aludido N................. outorgou o testamento lavrado no dia 24 de Julho de 1997, no 3º Cartório Notarial do Porto, em que consta ter ele declarado legar o usufruto de toda a sua herança a sua mulher, a autora, bem como, cada um dos diversos bens aí discriminados a cada um dos réus e revogar qualquer outro seu testamento, designadamente o que fizera em quatro de Agosto de 1978 no 6º Cartório Notarial do Porto.
Na data em que foi lavrado tal testamento o dito outorgante não tinha capacidade para entender e querer o respectivo alcance e apresentava uma surdez quase total.

Citados, apresentaram contestação os 1ºs réus, impugnando os fundamentos aduzidos, e os 2º e 4º réus, alegando desconhecer os factos invocados pela autora.

Foram elaborados o despacho saneador, a matéria assente e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento e foi decidida a matéria de facto, sem qualquer reclamação (fls. 331 a 332).

Foi, então, proferida sentença a julgar a acção improcedente, por não provada, absolvendo os réus do pedido.

Inconformada com o assim sentenciado, veio a Autora interpor recurso de apelação, apresentando as pertinentes alegações que remata com as seguintes

“CONCLUSÕES:

1ª- A decisão da matéria de facto constitui uma enorme violação do direito probatório, "maxime" na vertente de análise, avaliação e valoração de prova produzida nos autos.

2ª- A prova documental constante dos autos não foi, no exercício do princípio do contraditório, impugnada nem objecto de arguição de falsidade, pelo que goza de força probatória material (artº 376º C.C.) e de força probatória formal (artº 374º- C. C.).

3ª- A prova testemunhal, "máxime" a reproduzida em 11. e 12. deste relatório, revela-se credível quer pela idoneidade, quer pela razão de ciência emanante das testemunhas.

4ª- A prova produzida nos autos, referida em 11. e 12., analisada criticamente e devidamente valorada conduz a um grau de convicção judiciária, que, pela verosimilhança, pela forte probabilidade daquela realidade factual existir, analisada nos termos vertidos em 12., o Tribunal deve dar como provada esta matéria controvertida.
De sorte que os seguintes quesitos passem a reflectir a realidade de que:
- na data em que foi lavrado o testamento referido na alínea E) dos factos assentes, o outorgante N.................. sofria duma arteriosclerose grave e galopante - (1º);
- o dito outorgante tinha acabado de tomar conhecimento que era portador de um cancro maligno na bexiga - (2º);
- a Autora entrou em estado de coma em Abril de 1997, tendo sido avaliada e tratada em regime de internamente no Hospital de S. João do Porto e, posteriormente, no Hospital Conde de S. Bento, em Santo Tirso, em consequência de acidente vascular cerebral, do qual resultou o estado de total incapacidade e dependência em relação a terceiros, pelo menos até Outubro de 2001 - (3º);
- não conhecia o dinheiro - (6º);
- na data em referência (data do testamento), o outorgante aludido na alínea E) dos factos assentes não estava capaz de entender o alcance desse acto - (8º);
- não tendo ditado os termos constantes de tal testamento - (9º);
- limitando-se a assinar - (10º);
- o Senhor ........., à data do testamento referido na alínea E) sofria de uma surdez de grau elevado que o impedia de ouvir a leitura de um instrumento notarial, ainda que em voz alta, mesmo usando prótese auditiva.

5ª- O relatório médico junto na audiência de julgamento foi desvalorizado incorrectamente, uma vez que não foi impugnado nem objecto de arguição de falsidade, pelo que deve gozar de força probatória material (376º C.C.) e formal (374º C.C.).
Desvalorização esta que não pode deixar de se estranhar, ademais por ter sido junto aos autos sob despacho do Juiz "a quo", "por se revelar pertinente para a boa decisão da causa."
Esta tomada de posição, impunha uma medida a um Juiz não passivo, mas activo, que o exercício do princípio inquisitório e da instrução, como princípios vivos, conjugados com o princípio da oficiosidade exigem, medida essa que consistia na observância dos comandos consagrados nos artºs 365º-3, 645º e 653º-1, do Código de Processo Civil, face à evidência de o autor daquele relatório ter conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, que é lícito conhecer ao Juiz.

6ª- É evidente quão fundado se mostra a invocada anulabilidade do testamento prevista no artº 2199º já que se verifica totalmente a sua hipótese, ou seja, que o testador se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade pelas causas resultantes da prova de base assente e das respostas à base instrutória a considerar nos termos da 4ª conclusão deste relatório "maxime" ao primeiro quesito que deve ser dado como provado que à data da outorga do testamento do Sr. N........ sofria de arteriosclerose grave e galopante, sabido, como é comummente, que a esta doença está associada a demência.

7ª- A corroborar esta realidade estão também as respostas a considerar - de acordo com a conclusão 4ª - quanto aos quesitos 2º, 6º, 8º, 9º e 10’º da base instrutória, que, conjuntamente e ou de per si, levam à conclusão de que o testador, à data da feitura do testamento, não detinha o discernimento suficiente para entender a sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade, sabido como é que o regime das incapacidades para a disposição "mortis causa” não é tão exigente como para os negócios em geral, já que quanto ao testamento basta uma incapacidade natural e para aqueles negócios em geral exige que seja notória.

8ª- Também é patente que se mostra estabelecida solidamente a nulidade formal por inobservância do requisito no artº 66º do Código do Notariado, nulidade essa "ex vi” do art" 70º-1, b) do mesmo Código, face à surdez do testador.

9ª- Aliás, os termos da resposta dada ao quesito 11º, em sede de decisão da matéria de facto, em que considera provado apenas que em 25/11/97 o dito outorgante apresentava uma perda auditiva bilateral ligeiramente assimétrica, neurosensorial de moderada a profunda, que durava havia cerca de cinco anos e que o mesmo usava prótese auditiva, justificavam, ou melhor exigiam, que a sentença conhecesse e declarasse esta nulidade.

10ª- Pois, aquela "perda auditiva", "neurosensorial", não é mais nem menos do que uma surdez de grau elevado que forçosamente impedia o Sr. N......... de ouvir a leitura do "instrumento" ou acto notarial, que era o testamento.

11ª- O que implicava, nos termos do artº 66º do Código do Notariado que o testador fizesse a leitura do respectivo instrumento notarial em voz alta.

12ª- Cominando o artº 70º, nº 1, al. b) deste último diploma legal a nulidade formal do instrumento notarial, se dele não constar a declaração de que a testador leu em voz alta o referido instrumento - requisito formal estabelecido no artº 66º do Cód. do Notariado não verificado no testamento aqui em apreço, como se verifica da fotocópia junta a fls. 19 e ss. - nulidade essa que abarca o negócio jurídico que pretende documentar "ad substantiam".

13ª- Esta nulidade colhe ainda mais apoio facto-material com a resposta mais esclarecedora que preconizamos para o artº 11º da base instrutória, como se sustenta em 11.8 e 12.8 deste relatório.

14ª- As razões expostas nestas alegações, e designadamente nestas conclusões, são as sufragadas pela doutrina e pela jurisprudência dominantes, que nos dispensamos de exemplificar por sabidas.

III-
NESTES TERMOS E NOS DE DIREITO DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA:
a) revogada a decisão da matéria de facto e substituída por outra nos termos propugnados nas conclusões anteriores;
b) revogada a decisão da matéria de direito e substituída por outra que:
b1)- declare a nulidade formal do instrumento notarial - testamento - "outorgado" por N............. em 24/7/1997, no 3º Cartório Notarial do Porto, e consequentemente do negócio jurídico que pretende documentar "ad substantiam;
ou
b2)- anule aquele testamento nos termos do disposto no art" 2199º do Código Civil.
Tudo como é de inteira

J U S T I Ç A”


Os réus B................. e mulher apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação com a consequente confirmação da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos.


II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões suscitadas pela apelante são as seguintes:
1ª- Impugnação da matéria de facto: se deve ser dada como provada a matéria constante dos quesitos 1º, 2º, 3º, 6º, 8º, 9º, 10º e 11º, da base instrutória;
2ª- Erro na interpretação e aplicação do direito - atenta a prova a dar aos apontados quesitos da base instrutória -, a impor a declaração de nulidade do testamento, sendo certo que sempre se impunha a sua nulidade formal por inobservância do requisito contido no artº 66º do Cód. do Notariado, ex vi do artº 70º-1-b), do mesmo diploma legal (face à surdez do testador)-- sendo, aliás, bastante para a verificação desta nulidade formal o teor da resposta dada pelo tribunal a quo ao quesito 11º da base instrutória.

II. 2. FACTOS PROVADOS:

No tribunal recorrido foram dados como provados os seguntes factos:
a) Por decisão proferida no processo nº 592/2000, do 4º Juizo Cível deste Tribunal, transitada em julgado, a Autora A....................... foi declarada interdita por anomalia psíquica, tendo sido fixado o início dessa incapacidade em Abril de 1997 e designada como tutora O....................., conforme documento junto a fls. 10 a 17 dos autos.
b) No assento de nascimento da Autora encontra-se averbado o seguinte: "3. Casou catolicamente com N............ em 23 de Março de 1968, no concelho de Vila Nova de Ourém e alterou o nome para A........................ Boletim nº 177. Maço nº 11 ano de 1968. Em 4 de Abril de 1968. Assinatura ilegível. 4 - O casamento averbado sob o nº 3 foi dissolvido por óbito do marido em 8 de Setembro de 2000.", conforme documento junto a fls. 25 e 26 dos autos.
c) N.............. nasceu em 26 de Janeiro de 1909 e faleceu em 8 de Setembro de 2000, conforme documento junto a fls. 24 dos autos.
d) N............... interveio como outorgante no testamento datado de 4 de Agosto de 1978, do Sexto Cartório Notarial do Porto, conforme documento junto a fls. 81 a 86.
e) No testamento lavrado no dia 24 de Julho de1997, no 3º Cartório Notarial do Porto, em que foi outorgante N............, de fls. 18 a 23, com interesse para a decisão, consta o seguinte:
"Declara o outorgante:
Que faz o seu testamento do seguinte modo:
Que é casado com A....................., sob o regime da separação.
Que não tem descendentes nem ascendentes vivos.
Lega:
1- o usufruto de toda a sua herança a sua mulher A....................
2 - Ao sobrinho de sua mulher B.............. e mulher C..................., residentes (...) lega em raiz ou nua propriedade: um prédio urbano, sito na Rua de ........ (...) e, um prédio urbano situado no largo .......... (...).
2 - Ao "D.................", (...), lega em raiz ou nua propriedade o prédio urbano destinado a habitação e comércio sito na Rua D. ........ (...),.
3 - A quantia de duzentos mil escudos à E.......................... (...);
4 - A quantia de cem mil escudos à F......................... (..);
5 - A quantia de cem mil escudos à G................. (...);
6 A quantia de cem mil escudos ao H................. (...),.
7 - A quantia de cem mil escudos ao I....................... (...);
8- A quantia de cem mil escudos à L........................ (...).
9 - A quantia de quinhentos mil escudos a J........................... (...).
10- A quantia de duzentos mil escudos à M..................... (...).
11 - Todo o remanescente da sua herança ficará para o sobrinho de sua mulher, B..................... e mulher C..........................;
Que nomeia seu testamenteiro P................ (...)
(...).
Que revoga qualquer outro seu testamento, designadamente o que fez em quatro de Agosto de 1978 no Sexto Cartório Notarial do Porto.
(...)
Fez-se leitura deste testamento e a explicação do seu conteúdo ao outorgante, em voz alta, na presença simultânea de todos os intervenientes.
(...)”.
f) Em 25/11/97 o dito outorgante apresentava uma perda auditiva bilateral ligeiramente assimétrica, neurosensorial, de moderada a profunda, que durava havia cerca de cinco anos e o mesmo utilizava uma prótese auditiva.

III. APRECIANDO AS QUESTÕES SUSCITADAS:

1ª Questão: impugnação da matéria de facto - saber se devem ser alteradas as respostas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 6º, 8º, 9º, 10º e 11º, da base instrutória.

Entende a apelante que a resposta a tais quesitos deve ser positiva - acrescentando, mesmo que as respostas a dar aos quesito 3º e 11º devem ser explicativas e nos termos que explicita nas conclusões das suas alegações (cfr. fls. 479 fine a 480 (resposta a dar ao quesito 3º) e fls. 480 (resposta a dar ao quesito 11º).

Vejamos.

Entende o apelante que a decisão de facto é incorrecta no que tange à matéria das supra referidas alíneas, tendo sido incorrectamente julgada a mesma matéria.
Que dizer?

Como é sabido, fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas consagrada no artº 655º nº 1 do CPCivil, em princípio essa matéria de facto é inalterável.
Resulta dos autos que a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento foi gravada.
Para poder ser impugnada a matéria de facto, tem o impugnante, antes de mais, que dar integral cumprimento ao preceituado nos arts. 690º-A, nºs 1 e 2 e 522º-C, ambos do CPC, na redacção (aqui aplicável) emergente do DL nº 183/2000, de 10.08.

Dispõe-se naquele artº 690º-A do CPC (redacção do DL nº 329-A/90, de 12.12) o seguinte:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos ponto meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunha decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida;
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 522º-C”
3. Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, [................], proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, também por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 522º-C”.

Ora, se compulsarmos apenas as conclusões das alegações de recurso (cfr. fls. 234 a 235), verificamos que a apelante não cumpriu de forma correcta com o estatuído do nº 2 do citado artº 690ºA, CPC.
Ou seja, nas conclusões da alegação devia “indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta”. E tal indicação não vem feita.
Mas já o vem-- e de forma clara e correcta-- nas alegações propriamente ditas, como emerge de fls. 441 ss (fls. 50 ss das alegações).
Cremos que tal se afigura suficiente para atingir o objectivo visado pelo legislador com o citado comando do artº 690º-a, CPC.
Aliás, cremos ser bom que se diga que para uma leitura correcta do princípio da preclusão temos que atender a que estamos no domínio do Cód. de Proc. Civil emergente das redacções dadas pelos Decs.-Leis nºs 329-A/95, de 12.12 e 180/96, de 25-09.
E face ao princípios subjacentes a esse novo código, devemos ter sempre presente que “O procedimento demasiado ritualizado e com efeitos preclusivos não permite atingir a justiça que se procura através do processo” (Aspectos do Novo Processo Civil”, A. Marques dos Santos, Lebre de Freitas e outros, 1997, 34 - sublinhado nosso.

Cremos, assim que, ao impugnar de facto, foi pela apelante dado cumprimento ao teor do aludido artº 690º-A, CPC.

Em sede de impugnação da matéria de facto, e no que toca à apreciação da prova produzida pelo tribunal a quo, impõe-se, ainda, dizer o seguinte:
A apreciação da prova na Relação envolve "risco de valoração" de grau mais "elevado" que na 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade.
Quando o juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe: em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos.
Conforme ensina, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil, 2ª Ed., págs. 657):”. Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar".
Tem, assim, que cuidar o recorrente que foi o Sr. Juiz, em primeira instância, que viu a face, os olhos, a mãos, a postura e o olhar das pessoas que depuseram em audiência de julgamento e que terá sido em vista do depoente no seu todo, que o Sr. Juiz decidiu. Pelo que nós, os Desembargadores, poderemos avaliar as palavras, os documentos, mas não o rosado da face, os olhares para o advogado e um sem número de trejeitos que não podem ser dissociados. De facto, é hoje pacífico que o intérprete, entenda-se, o julgador, ignora o significado de um sorriso e, ou de uma lágrima, as quais, nas gravações fonográficas são absolutamente imperceptíveis!

No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 655º, nº1 - sem embargo do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida - art. 653º, nº 2, do CPC.
Do explanado se conclui que a Relação só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, reapreciada a mesma, for evidente a grosseira apreciação e valoração que foi feita na instância recorrida-- isto pelo facto de o julgador da 1ª instância dispor de um universo de elementos (não apreensíveis na mera gravação áudio dos depoimentos) que são decisivos para o processo íntimo de formação da convicção, que se não satisfaz com a, diríamos, insípida audição daquela gravação, não tendo a 2ª instância possibilidade de intuir ou de apreciar para lá daquilo que se mostra gravado, o que é deveras redutor no processo de formação da convicção.

Ora, lendo a decisão da 1ª instância sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto - talvez demasiado sucinta (fls. 331) --, será que podemos dizer que a mesma analisou criticamente as provas carreadas para os autos (testemunhal e documental), especificando, de forma racional, coerente e lógica e com respeito por essas mesmas provas, os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção?
Embora, como dissemos, a fundamentação das respostas aos quesitos da base instrutória seja um tanto deficiente, não cremos que se possa dizer que nela se não fez a tal análise crítica das provas carreadas para o processo, especificando os fundamentos que serviram de base à convicção do julgador.

O que não significa, porém, que esta Relação não possa modificar a decisão da matéria de facto.

Efectivamente, sem embargo do supra explanado, como se sabe, a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode, ainda, ser alterada pela Relação nos casos previstos no artº 712º do Cód. Proc. Civil:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravações dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Estas constituem as excepções à regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1º instância.

No caso em apreço, toma-se perfeitamente claro que a dita alteração não pode ocorrer ao abrigo daquela al. c), uma vez que não foi apresentado documento novo superveniente.

Há, assim, que ver se a alteração à decisão de facto pode ter lugar ao abrigo do estatuído nas alíneas a) e b) daquele artº 712º, CPC.
Como houve gravação dos depoimentos prestados e a impugnação da matéria de facto foi feita em obediência ao artº 690º-A do CPC, pode haver lugar a tal modificação da matéria de facto, ao abrigo da citada al. a), CPC.

Mas será que dos depoimentos prestados em audiência de julgamento se impõe a dita alteração das respostas aos quesitos pretendidos pela apelante?
Vejamos

Sustenta a apelante que dos depoimentos prestados em audiência de julgamento se impunha uma resposta positiva aos quesitos 1º, 2º, 3º, 6º, 8º, 9º, 10º e 11º-- entendendo, aliás, que aos quesitos 3º e 11º devia o Mmº Juiz ter dado as respostas explicativas com o teor que a apelante descreve (fls. 479 a 480).
Será assim?
Vejamos cada um dos quesitos cuja resposta se pretende ver modificada.

Quanto ao quesito 1º.
Perguntava-se se “Na data em que foi lavrado o testamento referido na al. E) dos factos assentes, o outorgante N....... sofria duma arteriosclerose grave e galopante?”:

Sobre a matéria deste quesito depuseram algumas testemunhas, além de ter sido carreada para os autos prova documental.
Na fundamentação da resposta - de não provada -- ao aludido quesito - tal como ocorreu quanto aos quesitos 2º a 10º--, a Mmª Juiz a quo limitou-se a usar um chavão: “não ter sido produzido qualquer meio de prova credível quanto à veracidade dos mesmos”. Acrescentando quanto à resposta a este quesito 1º que as declarações constantes do relatório médico junto a fls. 120 “não puderam ser contraditadas,.........” (cfr. fls. 331).
É patente a falta de razão da Srª Juiz a quo - a qual, adiantamos, desde já, fez tábua rasa dos muitos elementos de prova, testemunhal e documental, carreados para os autos, como se verá.

Assim, apreciando a prova testemunhal produzida sobre a matéria deste quesito 1º, temos o seguinte:
A testemunha Q............, funcionária da M................., quando o advogado da apelante lhe pede para descrever em que estado estava o Sr. N........ (autor do testamento sub judice) numa altura em que se encontrava com 88 anos de idade - portanto, aquando da outorga do testamento--, respondeu:
“Sempre que ia visitar a D. A............” - sua mulher - “ia acompanhado do sobrinho, ou do sobrinho ou do afilhado. [..................]. Portanto o senhor nunca ia sozinho”.
E acrescenta:
- “O senhor N.......... já estava numa fase bastante debilitada porque ele já estava bastante doente, ele tinha cancro da próstata e vários problemas de saúde”.
Agora à pergunta do mesmo advogado se o Sr. N........... “era uma pessoa perfeitamente lúcida com capacidade para dizer se eu quero isto, quero aqueloutro e tal, ou, se, pelo contrário, não? Se se deixava ir, influenciar?”, respondeu:
“Sim, sim. Ele deixava-se ir conforme o influenciavam.”
E à pergunta que se lhe fosse lido um testamento ele percebia a leitura do mesmo, o seu conteúdo, a testemunha respondeu:
-“Eu penso que seria muito complicado”.

Refere, ainda, a testemunha que o Sr. N............ pagava tudo com cheques, os quais apenas assinava.
Outros pagamentos que não por cheque, designadamente a medicação, eram feitos pelo Sr. B..........., sobrinho do Sr. N........... Por exemplo - e isto é sintomático do estado decrépito do outorgante do testamento--, relativamente às compras feitas dentro da própria Instituição onde o mesmo se encontrava, diz a testemunha:
“Pronto, quem nos entregava o dinheiro, nós comprávamos e quem nos entregava o dinheiro era o Sr. B...........”.
Disse, ainda, a mesma testemunha que o Sr. N......... nunca se ausentava sozinho da casa onde se encontrava: “Se ele queria ausentar-se, sair, nunca vinha sozinho”.
E à pergunta se “no trato das questões que tinha com a secretaria da Misericórdia era ele que tratava, era ele que,........... tomava essas iniciativas”, a testemunha foi peremptória:
“Sempre com intermédio, sempre com intermédio, sempre com o sobrinho intermediário.”

O R............., que foi cabeleireiro do Sr. N............. durante cerca de 25 anos, até 1996 - tendo-se deslocado a casa do mesmo nos últimos 4 ou 5 anos de vida por virtude de o mesmo já se não poder deslocar ao seu estabelecimento--, disse que o testador, “para o fim da altura em que eu deixei de lá ir a casa, já não era ...........o mesmo Sr. N...........” que conhecera durante muitos anos: “repetia ultimamente muito as coisas”.
“Notava-se..... que a idade estava efectivamente a fazer determinados estragos na pessoa dele”
A ilustrar o estado de deterioração mental do testador nessa altura, disse a testemunha:
“Ele dava-me, sempre quando eu ia lá, dava-me sempre dois mil escudos. Era quanto ele me dava”. “E lembro-me perfeitamente que uma vez teve assim muita dificuldade em vir com o dinheiro e veio com uma nota de mil escudos e disse “ Ó .........., ajude-me, é assim? Estou enganado?”. Ó senhor N........, costuma ser o dobro! O Sr. Costumava-me dar duas notas.
“Ó minha cabeça, minha cabeça!” - observa o testador.
E acrescentou a testemunha:
“Uma vez, e foi a última vez que ele me pagou ele próprio, ele foi buscar a carteira e deu-me, a pagar, deu-me oito notas de dois mil escudos, daquelas notas muito novinhas,..........”.
À observação da testemunha de que “Ó Sr. N..........., por amor de Deus, isto não é assim, está aqui dinheiro a mais”, o testador respondeu:
“Ah, ah ........., sabe?, agora, sabe como é, a minha cabeça”.
E concluiu a testemunha que “a partir daí, quem me punha sempre o dinheiro em cima do móvel era a D. A.................. Isto nas últimas vezes que lá fui, não sei bem quando, mas creio que foi exactamente em 96 ou 97.”.
Disse ainda a testemunha que “ quem me telefonava nos últimos tempos era a esposa, a Srª D. A............., porque ele já não me telefonava”, “na medida em que o Sr. N.......... já não tinha, digamos, na minha opinião, as mesmas capacidades”.
- “Sr. Dr.! Intelectualmente notava-se também uma, uma queda acentuada,...”—acrescenta a testemunha.
Tudo isto mostra, salvo o devido respeito, que, efectivamente, o testador, à data do testamento, se encontrava com a suas capacidades extremamente debilitadas a ponto de lhe não permitir entender e querer o alcance desse acto; o seu estado de espírito era assaz nebuloso, não lhe permitindo a posse daquele discernimento que se impunha imprescindível para levar a cabo a outorga de um documento daquela dimensão.
Efectivamente - e sem embargo do que supra dissemos a respeito dos princípios da imediação e oralidade na apreciação da prova--, as palavras proferidas pelas ditas testemunhas, no contexto vivencial em que foram produzidas, indiciam já fortemente que aquando da outorga do testamento, o testador (repare-se, com quase noventa anos de idade) sofria, de facto, de “arteriosclerose grave e galopante”.

Mas há mais!
Efectivamente, à matéria deste quesito 1º, temos, ainda, prova documental de acentuado relevo.
Do processo médico do testador existente na M................., consta, além do mais, que em 97.07.18 - nas vésperas do testamento, portanto--, o testador apresentava “tonturas, ansiedade, insónias” (cfr. fls. 250 dos autos).
Mas de especial relevo é, sem dúvida, o relatório médico, subscrito pelo Dr. S...................—Director do Serviço de Urologia do IPO e que foi quem operou por duas vezes o testador--, constante de fls. 325 dos autos.
O aludido relatório foi junto aos autos, em audiência de julgamento, pelo mandatário da autora, tendo-se o cuidado de aí se referir que se tratava de um aditamento ao relatório do mesmo cirurgião, junto a fls. 120.
Assim, foi dada a palavra aos Ilustres mandatários presentes para, querendo, se pronunciarem sobre o dito documento, tendo os mesmo dito “nada terem a opor à requerida junção e prescindirem do prazo de vista”. Pelo que, de seguida, pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte despacho :“Por se revelar pertinente para a boa decisão da causa, admito a junção da declaração ora apresentada” - sublinhados nossos.
O certo, porém, é que, não obstante tal pertinência para a “boa decisão da causa”, a Srª Juiz na decisão de facto ignorou, pura e simplesmente, a sua anterior posição - esquecendo que, ao contrário do que refere na fundamentação da resposta aos quesitos, foi religiosamente cumprido o contraditório no que tange a tal documento.

E a importância desse documento é patente.
Aí refere o dito cirurgião do testador -- que justifica a junção do relatório ora em apreciação, por não ter podido comparecer ao julgamento «por virtude de se encontrar num Congresso de medicina, em Florença», não tendo a Mmª Juiz entendido ser necessário fazer comparecer a dita testemunha em audiência para prestar eventuais exclarecimentos, designadamente sobre o mesmo relatório médico - que, em aditamento ao relatório de fls. 120, “o Senhor N............ foi por nós exaustivamente consultado em Julho de 1997, pois foi-lhe detectado um tumor vesicular da parede lateral esquerda da bexiga, e, por isso mesmo, alvo de intervenção cirúrgica.
Nos diversos exames pós-operatórios detectamos que o Senhor N............. padecia de arteriosclerose que o tornava totalmente dependente de quem então o acompanhou, seu sobrinho, o qual se fazia substituir necessariamente em todas as decisões que se impunham inerentes à operação, incluindo a estimativa de custos. Mais confirmo que padecia de incapacidade auditiva em elevado grau.
[................]”-- sublinhado nosso.

Ora, o aludido documento (de fls. 325) não pode deixar de ser levado em consideração, pois é um verdadeiro relatório pericial, já que atesta e confirma aspectos da ciência médica, prestados por quem se encontrava perfeitamente habilitado com tais conhecimentos. Sendo de salientar que o autor de tal relatório (científico) fez inúmeras e cuidadosas observações e exames ao testador, designadamente antes da data do testamento.

Repete-se que, ao contrário do que refere a Srª Juiz a quo na fundamentação das respostas aos quesitos, o princípio do contraditório foi observado - como a acta de julgamento bem patenteia, não tendo o conteúdo do documento sido impugnado, nem arguida, por qualquer forma, a sua falsidade, o que significa que goza de força probatória, quer formal, quer material (ut arts. 374º, nº1 e 376º, CC). Sendo certo que - como bem refere a apelante nas suas doutas alegações - “ é inquestionável a convicção plena das asserções aí contidas porque proferidas por cientista que se debruçou ampla e profundamente sobre a pessoa do Sr. N...........”.

Argutamente, observa a apelante, visando cimentar a resposta positiva ao aludido quesito 1º, o facto de no testamento, que se pretende anular por esta acção, constar um sinal (x) no ponto onde o testador iria assinar.
Tal significa que o testador assinou de cruz, sendo manifesto que seguramente dispensava a mesma cruz caso entendesse o alcance e significado do acto que acabara de praticar - o que «é corroborado no facto de no anterior testamento tal não ter acontecido (cfr. fls. 86 - aqui não há cruzes!).
Também é, de facto, curioso, o facto de no testamento se ter esquecido que a sua mulher era sua herdeira legitimária - ao contrário do que acontecera no anterior testamento !

Sem dúvida que a Mmª Juiz não usou, como devia, dos poderes-deveres de instrução, que emanam do princípio do inquisitório consagrado nos arts. 265º-3, 645º-1 e 635º-1, CPC, antes se ficando por uma postura de todo passiva, não procurando realizar, como era seu dever, todas as diligências que se afigurassem necessárias à justa composição do litígio, poderes-deveres aqueles que respeitam tanto aos factos principais alegados pelas partes, como aos factos instrumentais, enquanto factos de que podia conhecer.
Se a Mmª Juiz entendia que o documento (“declaração”) junto em audiência de julgamento ( fls. 325) se revelava “pertinente para a boa decisão da causa” ( fls. 329), então não faz sentido que viesse depois fazer tábua rasa do mesmo. Antes se impunha que, caso viesse a ter dúvidas sobre o seu teor - que não mostra ter acontecido, acentue-se--, ao abrigo das normas legais supra referidas, notificasse o autor do relatório médico para vir a julgamento prestar depoimento, facultando os esclarecimentos que o tribunal entendesse necessários - esclarecimentos que, acentue-se, os Srs. Mandatários entenderam desnecessários, aceitando, ao invés, o teor do dito documento, dado que (repete-se) não foi impugnado, nem arguida a sua falsidade--, sendo relevante acentuar que a ausência do dito médico à audiência foi motivada pelo impedimento que do mesmo relatório consta e, portanto, de conhecimento de todos os interessados que não lograram fazer qualquer oposição ou observação.

Do exposto se conclui que a prova que os autos contêm (testemunhal, documental e conteúdo do próprio testamento), no que tange ao dito quesito 1º, é de grau tão elevada quanto necessária para que a resposta ao quesito seja positiva.
Como bem acentua a apelante, “Quando o tribunal julga a matéria de facto, deve fazê-lo numa medida de convicção necessária, caso contrário não estaria a fazer justiça”, devendo-se levar em consideração as regras da experiência, pois, como ensina Vaz Serra, citado pelo apelante, “todo o Juiz dispõe de um maior ou menor tesouro de experiência que pode e deve utilizar na sua actividade”.
Assim, é apodíctico que o grau de convicção do tribunal quando aprecie e decide a matéria de facto deve ser de probabilidade que baste para as necessidades da vida, uma vez que as provas não visam criar no espírito do Juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, pois é de todo impossível encontrar essa certeza absoluta.

Uma coisa é para nós mais que evidente: a Mmª Juiz a quo, na apreciação da prova que fez, violou de forma clara as regras legais atinentes ao direito probatório. Não analisou os depoimentos produzidos em audiência, nem os documentos juntos, segundo as regras que emergem da lei adjectiva civil e dos princípios probatórios que a doutrina e jurisprudência pacificamente sustentam.
Efectivamente, atenta a variadíssima prova que os autos documentam, muito de verdade existirá na afirmação vertida pela apelante nas suas alegações (fls. 460),-- embora se exceda um pouco, pela sua contundência--, de que “Emerge da decisão em recurso sobre a matéria de facto que o julgador fez tábua rasa de todas as regras e princípios atrás abordados, optando por uma apreciação ligeira de acção e reflexão condicionando o julgamento da matéria de facto pela subsunção dos factos do direito, realizando previamente um raciocínio com inversão do silogismo judiciário, não se abstraindo nesse momento do direito que ia aplicar, ou seja, não podendo nem devendo preocupar-se com a decisão final”.

Em suma, portanto, cremos que a prova que os autos contêm é de molde a que se dê resposta positiva ao quesito 1º.


Quanto ao quesito 2º: “O dito outorgante tinha acabado de tomar conhecimento que era portador de um cancro na bexiga?”:

É óbvio que se impõe uma resposta positiva a este quesito.
É a consequência lógica do que se disse a respeito do valor probatório do documento junto em audiência de julgamento (fls. 325), bem assim do documento junto a fls. 120-- documentos não impugnados pela contra-arte, com a consequente força probatória que emerge dos citados arts. 374º e 376º, CC., aqui se reproduzindo mutatis mutandis o que supra se disse a respeito dos mesmos documentos.
Veja-se o que se diz no documento de fls. 120 :“O Sr. N...............consultou-nos a primeira vez em Julho de 1997, foi-lhe encontrada uma neoformação (tumor vesical da parede lateral esquerda da bexiga).
Este doente foi operado no Instituto Português de Oncologia........”.

Aliás, já as testemunhas confirmam o teor do quesito.
Assim, a referida Q............ diz que nessa altura - em 1997, pois o Sr. N.......... tinha 88 anos de idade--, “ele tinha um cancro da próstata...”.
É curioso notar que à pergunta do advogado da apelante, à dita testemunha sobre quando foi detectado o aludido cancro, a Srª Juiz responda:
“Sr. Dr., temos já elementos no processo” (cfr. fls. 1 da transcrição junta aos autos)- sublinhado nosso.
Mas, afinal, acabou por esquecer tais elementos que aceitara existirem no processo - que não podem deixar de ser precisamente os ditos documentos !!

A testemunha T............... igualmente refere que o Sr. N........... “era canceroso” da bexiga.

Não há, portanto, dúvidas de que a resposta ao quesito 2º deve ser positiva.


Quanto ao quesito 3º -- “A Autora, em Abril de 1997 e até à data do testamento referido em 1º, permaneceu internada hospitalarmente e em estado de coma?”:

É patente que igualmente se impõe resposta positiva a este quesito.
É curioso salientar que na decisão à matéria de facto (fls. 331), a Mmª Juiz diz - para fundamentar a resposta negativa a este quesito - que “quanto ao quesito 3º o seu teor é contrariado pelo que consta da certidão junta pela autora com a petição inicial (cfr. fls. 14 e 15)”.
Mas - valha-nos Deus--, o que resulta da mesma certidão é precisamente o contrário.
Efectivamente, o que resulta do mesmo documento é precisamente que a autora entrou em estado de coma em Abril de 1997, tendo sido avaliada e tratada em regime de internamento no Hospital de S. João do Porto e depois no Hospital Conde de S. Bento, em Santo Tirso, em consequência de Acidente Vascular Cerebral, de que resultou a sua total incapacidade e dependência em relação a terceiros, pelo menos até à data do testamento - foi-o até muito mais tarde, como a certidão patenteia.
É isto que flui do documento autêntico de fls. 11 a 17, que ninguém impugnou, não constando ter sido arguida a sua falsidade, donde conter a força probatória referida no artº 371º CC.
Foram factos que se apuraram no processo de Interdição da mulher do testador, A..............., que correu termos pelo ....º Juízo Cível do Tribunal de S. Tirso (cfr. als. a) e c) dos factos provados).

Provado está, portanto, este quesito 3º.

Quanto ao quesito 6º- “Não conhecia o dinheiro?”:

Deve, antes de mais, ter-se em conta que esta pergunta - como, aliás, todas as dos demais quesitos - se reportam à data em que foi outorgado o testamento.
Ora, a resposta a este quesito temo, necessariamente, que ir buscar-se aos depoimentos testemunhais - apreciados nos termos que supra já referimos a respeito do quesito 1º.

Como vimos, à pergunta do mandatário da autora se o testador conhecia o dinheiro, a testemunha Q.......... disse que o Sr. N........ pagava tudo com cheques, os quais apenas assinava.
Outros pagamentos que não por cheque, designadamente a medicação, eram feitos pelo Sr. B........., sobrinho do Sr. N.......... Por exemplo - e isto é sintomático do estado decrépito do outorgante do testamento--, relativamente às compras feitas dentro da própria Instituição onde o mesmo se encontrava, diz a testemunha:
“Pronto, quem nos entregava o dinheiro, nós comprávamos e quem nos entregava o dinheiro era o Sr. B..........”.

Por outro lado, a respeito da resposta a dar ao quesito 1º, já vimos que a testemunha R.................. -- que foi cabeleireiro do Sr. N......... durante cerca de 25 anos, até 1996 - disse que o testador, “para o fim da altura em que eu deixei de lá ir a casa, já não era ...........o mesmo Sr. N.........” que conhecera durante muitos anos:
“Notava-se..... que a idade estava efectivamente a fazer determinados estragos na pessoa dele”
E a ilustrar o estado de deterioração mental do testador nessa altura, a mesma testemunha contou ao tribunal algo que é bem elucidativo de que, de facto, o testador, à data do testamento, já não discernia o dinheiro.
Assim, contou esta testemunha:
“Ele dava-me, sempre quando eu ia lá, dava-me sempre dois mil escudos. Era quanto ele me dava”. “E lembro-me perfeitamente que uma vez teve assim muita dificuldade em vir com o dinheiro e veio com uma nota de mil escudos e disse “ Ó ......, ajude-me, é assim? Estou enganado?”. Ó senhor N..........., costuma ser o dobro! O Sr. Costumava-me dar duas notas. “Ó minha cabeça, minha cabeça”.
E acrescentou a testemunha:
“Uma vez, e foi a última vez que ele me pagou ele próprio, ele foi buscar a carteira e deu-me, a pagar, deu-me oito notas de dois mil escudos, daquelas notas muito novinhas,..........”.
À observação da testemunha de que “Ó Sr. N........, por amor de Deus, isto não é assim, está aqui dinheiro a mais”, o testador respondeu:
“Ah, ah ........, sabe?, agora, sabe como é, a minha cabeça”.
E concluiu a testemunha:
- “a partir daí, quem me punha sempre o dinheiro em cima do móvel era a D. ...... . Isto nas últimas vezes que lá fui, não sei bem quando, mas creio que foi exactamente em 96 ou 97.” - sublinhado nosso.

Por outro lado, ainda a respeito da falta de discernimento do Sr. N.......... à data do testamento, designadamente no que tange ao conhecimento ao dinheiro, é bem esclarecedor o que consta do relatório de fls. 325 - o tal que a Mmª Juiz entendeu ser “pertinente para a boa decisão da causa” e que não sofreu impugnação, não obstante a observância do contraditório--:
“o Senhor N............ foi por nós exaustivamente consultado em Julho de 1997, ...........].
Nos diversos exames pós-operatórios detectamos que o Senhor N............. padecia de arteriosclerose que o tornava totalmente dependente de quem então o acompanhou, seu sobrinho, o qual se fazia substituir necessariamente em todas as decisões que se impunham inerentes à operação, incluindo a estimativa de custos.”

Tudo isto mostra, salvo o devido respeito, que, efectivamente, o testador, à data do testamento, não tinha o discernimento necessário para, sem o apoio de terceiros, fazer uso do dinheiro - que não conhecia (no sentido que subjaz ao quesito 6º).

Daqui que se imponha uma resposta positiva ao aludido quesito 6º.


Quanto ao quesito 8º-- “Na data em referência, o outorgante do testamento aludido na alínea E) dos factos assentes não estava capaz de entender o alcance desse acto?

A resposta positiva a este quesito obviamente que resulta do que supra referimos a respeito dos anteriores quesitos, em especial o 1º.
Efectivamente, se o testador sofria, então, de uma arteriosclerose grave e galopante (quesito 1º), não conhecendo o dinheiro (quesito 6º), nos termos melhor explicitados a respeito da resposta ao quesito 1º é patente que o seu estado mental era de molde a não lhe permitir ter a capacidade, maxime intelectual, para entender o sentido e alcance do testamento que acabava de assinar (de cruz....).
Sobre este quesito, reproduzimos as respostas testemunhais e prova documental (v.g., de fls. 325), supra salientadas, aquando das respostas aos quesitos 1º e 6º-- para onde, por economia, remetemos (veja-se, v.g., o relatório médico de fls. 325, onde se refere que o testador “exaustivamente consultado em Julho de 1997”, “padecia de arteriosclerose que o tornava totalmente dependente de quem então o acompanhou, o qual se fazia substituir necessariamente em todas as decisões que se impunham inerentes à operação, inclusive a estimativa dos custos....”.
Saliente-se o que se passou com a testemunha R..........., barbeiro do testador, a respeito do dinheiro, bem assim o mais que a aludida testemunha disse a respeito das faculdades mentais do Sr. N.......... - bem ainda, v.g., a afirmação da testemunha Q........... de que, no trato das questões que o Sr. N........ tinha com a Secretaria da casa onde se encontrava internado, não era o senhor N....... quem tomava autonomamente as iniciativas, pois as mesmas eram tomadas “sempre com intermédio, sempre com intermédio, sempre com o sobrinho intermediário”--, tudo suficientemente esclarecedor do estado mental do testador: se era portador de uma “arteriosclerose grave e galopante”; se não conhecia o dinheiro; se “se fazia substituir necessariamente em todas as decisões que se impunham”; se não era, sequer, capaz de tomar a iniciativa das pequenas questões relacionadas com a secretaria da casa onde se encontrava internado ou em repouso, precisando sempre de agir por “intermédio” de terceiro,
é mais que patente que lhe faltava a capacidade mínima para perceber o alcance dum acto solene e assaz até complexo como era o testamento que assinou - tudo reforçado pelo facto de se encontrar praticamente surdo, como melhor se verá aquando da resposta a dar ao quesito 11º!

Impõem-se, portanto, uma resposta positiva ao quesito 8º.


Quanto ao quesito 9º-- “ Não tendo ditado os termos constantes de tal testamento?”:

Face a tudo o que se disse até aqui, é claro que outra resposta não pode ser dada que não seja a positiva.
Efectivamente, se o testador à data do testamento sofria de uma arteriosclerose grave e galopante, não conhecendo o dinheiro e não se encontrando capaz de entender o alcance desse acto, como era possível a uma pessoa nesse estado ditar (obviamente em consciência e com vontade livre) os termos do testamento sub judice?
Claramente impossível, salvo o devido respeito.
Efectivamente, uma pessoa nas condições físicas e mentais do Sr. N......., supra patenteadas, não podia reunir as capacidades suficientes para assumir uma declaração de vontade da dimensão daquela que se diz ter vertido no testamento.
Trata-se, como refere a apelante, de uma declaração de última vontade. E, até por isso, se impõe uma relativa frescura mental, que permita entender de forma correcta o que se está a fazer - veja-se que se trata de uma declaração de cinco páginas...-- , não bastando saber assinar (e parece-nos que apenas de cruz...!).

Daqui, que igualmente se imponha uma resposta positiva ao quesito 9º.


Quanto ao quesito 10º: “Limitando-se a assinar?”:

Face a tudo o que supra se disse, parece que a resposta não pode deixar de ser positiva.
Aliás - repete-se--, parece que o testador se limitou a assinar de cruz, pois, como bem diz a apelante, uma pessoa dotada de capacidade para fazer um testamento não necessitaria que lhe fosse apontado com uma cruz (x) o local para assinar, sinal indicador que o suposto testador comparativamente não necessitou no anterior testamento que outorgou em 4.7.78 (cfr. fls. 86)!
O que supra se referiu a respeito da prova testemunhal e documental é bem revelador de que o testador se limitou a assinar o testamento.
Efectivamente, de novo damos razão à apelante, quando diz que as provas e fundamentos que refere “conduzem à convicção, com elevado grau de probabilidade e verosimilhança” - diríamos, mesmo, às convicção é firme e segura - “de que efectivamente o Sr. N......... se limitou a assinar o instrumento notarial, [...............], já que o conteúdo deste testamento revela ser algo alheio ao Sr. N.......... na medida em que é surpreendente face ao teor dos anteriores testamentos e à ligeireza formal e substancial que ele próprio evidencia” (fls. 468) - sublinhado nosso.

Responde-se, portanto, positivamente a este quesito 10º


Quanto ao quesito 11º--“Na data em referência o dito outorgante sofria de surdez?”:

A este quesito o tribunal a quo respondeu que “Em 25/11/97 o dito outorgante apresentava uma perda auditiva bilateral ligeiramente assimétrica, neurosensorial, de moderada a profunda, que durava havia cerca de cinco anos e o mesmo utilizava uma prótese auditiva.”

Vejamos.
Salvo o devido respeito, cremos que também aqui mal andou o tribunal a quo.
Fundamentou a Sr Juiz a resposta ao quesito 11º “no teor do documento junto a fls. 114 a 118 conjugado com os depoimentos prestados por Q........, T............. e U.........., dos quais resultou que a pessoa em causa ouvia com deficiência” (fls. 331).
Mas será que é isto que resulta da prova carreada para os autos, maxime documental?
Não cremos, como passamos a demonstrar.

A testemunha Q............. - chefe de departamento da casa de repouso onde se encontrava o testador na altura da outorga do documento e que aí conviveu bastante com ele--, disse que o Sr. N........... - então com cerca de 88 anos de idade (portanto, na altura do testamento) - quando i a visitar a mulher (A..........) nunca ia sozinho.
A pedido de esclarecimento do mandatário da apelante, a testemunha explicou porque não ia ele sozinho:
“... já era uma pessoa bastante idosa. Para além de ser idosa, [...]. Era uma pessoa praticamente surda, tinha....- ouvia muito mal, muito mal...”.
Pergunta, então, o dito advogado à testemunha como é que sabia que o Sr. N........... era praticamente surdo, e ela responde:
“Por que, pronto, a gente falava com ele e ele não entendia aquilo que nós lhe dizíamos” – sublinhado nosso.
E acrescentou:
“Usava um aparelho, mas quase não lhe servia de nada”.

O mesmo parece evidenciar o depoimento da testemunha T............, quando diz - nitidamente contrariada nas respostas que dá ao mandatário da apelante--, que “ Eu não podia falar assim baixinho, mas a minha voz normalmente é alta”, e que “eu não falava com ele de negócios, de coisas que fosse preciso explicar. Isso não. Era coisas simples do dia a dia”, tal como “Está um dia lindo! Toca a por de pé!”...!— diremos nós, coisas a que o testador não precisava de responder, sendo, assim, absolutamente indiferente que fosse “uma pessoa praticamente surda”!

A testemunha R............ -- o cabeleireiro do testador--, disse que ultimamente já lhe não dizia para virar a cabeça para a direita ou para a esquerda, porque “tinha de lhe falar muito alto”.
Esta testemunha, que contactou profissionalmente com o testador até 1996, em resposta a uma pergunta, diz:
“Ouvir, já ouvia bastante mal e repetia, sobretudo, repetia muito as coisas”

Também a testemunha V.......... diz que o testador era “um bocadinho surdo”, referindo o problema que ocorreu no quarto do mesmo, com um vizinho, “por causa do som da televisão alto”
Diz a testemunha que o Sr. N......... tinha um aparelho “mas não se dava com ele”.

Testemunho essencial para a resposta a dar a este quesito 11º é, sem dúvida, o da testemunha U.........., técnico de audiologia indicado pela firma que prestou assistência ao Sr. N........... (testador)-- a Acústica Médica”-- para interpretar o relatório junto a fls. 114 a 118 dos autos (audiograma)—testemunho que, atenta a sua natureza técnica e/ou científica, se nos afigura não ter sido devidamente atendido e valorado pelo tribunal a quo.
Vejamos, então, o que disse esta testemunha ao tribunal.

Analisando o aludido relatório, respeitante ao teste que fizeram ao testador, diz esta testemunha - repete-se, um técnico especializado e qualificado, motivo porque foi indicado pela dita firma para prestar ao tribunal os necessários esclarecimentos-- que do referido relatório, ou audiograma , resulta que o Sr. N..........., “pelo audiograma que está aqui apenas ouvia os sons graves. O bater à porta, o barulho de um carro. A percepção de conversação era impossível de perceber”.
“Percepção de quê?” - pergunta a Srª Juiz.
“Da conversação. Uma coisa é ouvir ruídos graves e outra coisa é ouvirmos ruídos acima de mil decibéis, frequências que são os sons agudos, que são os sons da percepção”.
Pergunta a Srª Juiz:
“Então se eu estivesse assim a falar com ele, sabe, se lhe estivesse a ler qualquer coisa não ouvia mesmo que fosse ao pé do ouvido?”.
“NÃO, NÃO. ERA IMPOSSÍVEL OUVIR. NÃO PERCEBIA, OUVIA O RUÍDO DE FUNDO, MAS NÃO PERCEBIA. Tem perda neurosensorial.............”.
À observação da Srª Juiz de que houve pessoas que disseram que o testador ouvia, respondeu a testemunha:
“O que outra pessoa diz não sei. Eu, como técnico, eu, como técnico, ao fazer análise desse audiograma é que a pessoa OUVE RUÍDOS E NÃO CONSEGUE COMPREENDER”.
Pergunta a Srª Juiz:
“Isto é dos dois ouvidos ou só um?”
Responde a testemunha:
“É dos dois ouvidos. [...............]. quando foi visto, .....já se queixava há mais ou menos cinco anos que não ouvia. Portanto, a pessoa ouve ruídos mas não tem facilidade em perceber, não percebe o que se está a dizer. Por isso se chama uma perda neurosensorial que é do ouvido interno, é do nervo sensitivo”.
A Srª Juiz insiste:
-“Então para si era uma pessoa completamente surda. Só tinha percepção dos...?”
“Dos sons graves” - responde prontamente a testemunha.
“......ouve as vogais abertas, Zé, batata, cavalo, bater à porta, mas do resto não consegue perceber”.
“O senhor não tem dúvidas quanto a isso”?- pergunta o mandatário da apelante.
-“Nenhumas”-- remata a testemunha.
“Mesmo com aparelho?” - pergunta o mesmo advogado.
“Os aparelhos que se usavam nessa altura são simples amplificadores. [................].
Portanto, como amplificadores que eram, amplificavam graves e agudos e a pessoa querendo ouvir mais alto puxava-lhe os agudos mas puxava-lhe também os graves, e os graves como tinham uma audição melhor começavam a perturbar a mente da pessoa porque era potência a mais nos sons graves, tornando-se imperceptível”.
Portanto, diz a testemunha que mesmo com o aparelho de que dispunha o testador, como era um mero amplificador, de sons graves e agudos, isso de pouco lhe servia, pois ampliava simultaneamente os sons graves e agudos, o que tornava imperceptível a audição - e logo a compreensão - do que as pessoas falavam.
É certo que o aludido exame ao testador é de 25.11.97 - posterior, portanto, ao testamento.
No entanto, a testemunha esclarece que anteriormente ele tinha um aparelho ainda mais fraco do que o que lhe foi fornecido na consulta a que se reporta o relatório ora questão. Era um aparelho “Rexon, que era um aparelho mais fraco do que este”, pois “este que diz aqui pp, este pp quer dizer de longa potência” - diz a testemunha.
Pergunta-se, então:
“Se o senhor não conseguia ouvir nada, porque é que ele queria comprar um aparelho auditivo? Era para ouvir melhor quando batessem à porta”?
Responde a testemunha:
“Era para ouvir melhor os sons de aviso”.
Nova pergunta, a título de remate:
“Então o senhor pela análise que aqui faz , o senhor N.......... era tecnicamente surdo, se eu me aproximasse do ouvido e lhe berrasse o senhor N.......... não ouvia?”
“Mal”- responde a testemunha.
Os sublinhados são nossos.

Não se entende porque não deu a Srª Juiz a este depoimento o valor que se impunha, pois se é certo que a força probatória das respostas dos Srs. Peritos é fixada livremente pelo tribunal (artº 389º CPC), essa liberdade não se pode traduzir em puro arbítrio, antes se impondo ao julgador-- mais não fosse por imperativos de transparência - dizer porque razão não deu credibilidade a este ou àquele depoimento quando do mesmo resulta precisamente o contrário do que refere o Sr. Juiz, como é o caso presente.

Chamada, novamente, a depor, a testemunha T............ - que no seu anterior depoimento pretendeu fazer crer ao tribunal que o Sr. Pomar ouvia e entendia o que lhe diziam - referiu o seguinte:
Confrontada pela Srª Juiz com o depoimento da testemunha anterior (U...........), a testemunha - nitidamente embaraçada - tenta remediar as coisas e acaba por dizer que “falava alto” com o Sr. N.......... “ Eu não podia falar assim baixinho, não é?” -- como se no tribunal tivesse sussurrado ao ouvido da Srª Juiz e dos Srs. Advogados!!
Tenta, de seguida, dar a volta: “Agora claro que eu não falava com ele de negócios, DE COISAS QUE FOSSE PRECISO EXPLICAR. ISSO NÃO! ...”Ele a mim percebia-me bem.” - é motivo para dizer que também nós percebemos muito bem a testemunha, tão titubeante, confuso, contraditório, absolutamente não convincente - para não dizer que aparentemente, até, comprometido-- é o seu depoimento!

As testemunhas arroladas pelo réu não afastaram a convicção sobre a surdez do testador, que resultou dos anteriores depoimentos - pelo contrário, reiteraram a deficiência auditiva do mesmo, “pese embora o prejuízo enfático valorativo, designadamente quanto à surdez do Sr. N.........., patente nas suas respostas”, como bem acentua a apelante.

Já na informação de fls. 14, que acompanhou o audiograma do teste feito ao Sr. N.......... - informação essa onde a Mmª Juiz foi buscar a resposta ao quesito 11º, esquecendo, de todo, o teor do audiograma que acompanha o dito relatório ou informação, bem assim o importantíssimo esclarecimento que o especialista U......... prestou ao tribunal, depoimento científico e, portanto, só refutável pelo tribunal com outros elementos ou conhecimentos da mesma natureza, quer testemunhais, quer documentais, que não existiram--, se dizia que o Sr. N...... apresentava uma perda auditiva bilateral ligeiramente assimétrica, neurosensorial, de moderada a profunda e que já usava uma prótese auditiva de marca Rexon adquirida noutra empresa.
Repete-se: não curou a Mª Juiz de atender às explicações e/ou esclarecimentos técnico/científicos acerca do audiograma de fls. 15 ss, limitando-se a reproduzir algumas palavras da dita informação que acompanhava esse audiograma, assaz redutoras do efectivo estado do Sr. N......., ou seja, do seu real estado de surdez na perspectiva da audição da leitura do testamento e compreensão do seu conteúdo.

Anote-se que no relatório médico de fls. 325 - o tal que a Mmª Juiz entendeu juntar aos autos por ser “pertinente para a boa decisão da causa” e que não foi impugnado por quem quer que fosse - igualmente se refere que o Sr. N.......... “padecia de incapacidade auditiva em elevado grau”.

Assaz importante é, também, a informação constantes de fls. 118, onde se assinalam as áreas de dificuldade do Sr. N........, que são: “Igreja”, “Grupos”, Encontros”, “TV”, “Socialmente” e “Problemas com terceiros”.
Ora, inteira razão nos parece ter a apelante quando diz que “essencialmente sobressai das áreas de dificuldade de audição de N............ a sua semelhança com um acto notarial “maxime” testamento público, que deve coenvolver conversação, percepção auditiva, para uma perfeita declaração de vontade num negócio jurídico singular e pessoalíssimo” (fls. 457).
Esta informação é extremamente importante, não só para a resposta (positiva) a dar ao quesito 11º, como também, designadamente, para as respostas (igualmente positivas) aos quesitos 8º e segs.!

Do exposto resulta que a resposta ao quesito 11º deve ser, não só de cariz positivo, mas explicativa.
Isso viu, aliás, a Mmª Juiz - dando uma resposta explicativa, não se limitando à letra seca do quesito (extremamente redutora, atenta a finalidade ou utilidade do quesito que é mostrar a dimensão da surdez do testador na perspectiva da audição e compreensão do testamento).
Porém, da factualidade resultante dos autos - supra explanada - e tendo sempre em conta que a data a ter em conta é a da feitura do testamento, responde-se ao quesito 11º da seguinte forma:
“À data do testamento aludido na al. E), o N............. sofria de uma surdez relativa de elevado grau - perda auditiva bilateral ligeiramente assimétrica, neurosensorial--, que o impedia de ouvir e perceber a leitura de um instrumento notarial, maxime um testamento, ainda que em voz alta, mesmo usando prótese auditiva”.

Do explanado se conclui que a primeira questão suscitada pela apelante merece provimento, vingando, por consequência, as inerentes conclusões da sua alegação.
Como tal, ao abrigo da referida al. a) do artº 712º CPC, impõe-se alterar as respostas aos quesitos nos sobreditos termos, ou seja, respondendo positivamente aos quesitos 1º, 2º, 3º, 6º, 8º, 10º e 11º-- este último nos sobreditos termos explicativos.

Aliás, mesmo a dita alteração da decisão de facto não ocorresse ao abrigo do disposto na al. a) do artº 712º CPC, sempre nos parece que tal modificação teria lugar ao abrigo da al. b) do mesmo normativo legal.
Efectivamente, cremos que, pelo que se disse supra, os “elementos fornecidos pelo processo” nos impunham decisão sobre a matéria de facto diversa da considerada em 1ª Instância, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
A existência de tais “elementos” verifica-se em especial quando há documentos com força probatória para alterar a resposta ou respostas do tribunal.
De facto, a alínea b) do nº 1 do artº 712º do Código de Processo Civil consente a modificabilidade da decisão de facto "Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas".
Este fundamento está, como se sabe, relacionado com o valor legal da prova, exigindo-se que o valor dos elementos coligidos no processo não pudesse ser afastado pela prova produzida em julgamento. Ao abrigo desta alínea b ) a alteração das respostas só é admissível quando haja no processo um meio de prova plena, resultante de documento, confissão ou acordo das partes, e esse meio de prova plena diga respeito a determinado facto sobre o qual o Tribunal também se pronunciou em sentido divergente
Como ensinou o Prof. Alberto dos Reis “in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 472, “se estiver junto aos autos documento que faça prova plena ou cabal de determinado facto e o juiz, na sentença, tiver admitido facto oposto, com base na decisão do tribunal colectivo, incumbe à Relação fazer prevalecer a força probatória do documento”.
Ora, é precisamente com base nos documentos (autêntico um e particulares outros) juntos aos autos, respectivamente, a fls. 11 a 17 e 114 a 121 e 325-- que, como vimos, não foram impugnados, nem foi arguida a sua falsidade - que sempre se impunha a modificação das respostas aos quesitos, nos termos supra apontados, escusando-nos de aqui repetir o que a respeito dos mesmos documentos já dissemos.

Estamos, assim, em face de situação em que foi pelo tribunal a quo postergada a força probatória de documentos - força essa não afastada pela prova testemunhal - antes a corroborando.

Quanto à segunda questão: errada interpretação e aplicação DO DIREITO aos factos.

Face à factualidade apurada, outra decisão não podia ter sido tomada que não fosse a anulação do testamento junto a fls. 18 a 23.
Vejamos.

Efectivamente, cremos ser patente que face aos factos provados - resultantes da alteração da decisão de facto que aqui se faz--, o testamento em questão não pode deixar de ser nulo, quer sob o aspecto substancial, quer sob o aspecto formal.

DA NULIDADE (ANULABILIDADE?) SUBSTANCIAL DO TESTAMENTO:
Resulta das respostas (positivas) aos quesitos 1º, 2º, 6º, 8º e 10º da base instrutória que à data do testamento, o testador não tinha capacidade para querer e entender o alcance desse acto, não tendo, sequer, ditado os termos que constam do testamento, o que significa que o mesmo não podia representar ou traduzir a sua (livre e inteira) vontade.

Dispõem os seguintes arts. do Código Civil:

Artº 2180º do CC (sobre a “expressão da vontade do testador):
“É nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas”

Artº 2199º (em sede de “Falta e vícios da vontade”):
“É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.

Artº 2308º:
“1. A acção de nulidade do testamento ou de disposição testamentária caduca ao fim de dez anos, a contar da data em que o interessado» [Parece que se tem apenas em vista os interessados directos (cfr. Artº 26º, nº1, CPC), ou seja, as pessoas em cujo interesse a lei estabelece a nulidade ou a anulabilidade (cfr. artº 287º, nº1 CC), o que aliás é variável em função de cada hipótese legal (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I., págs. 236/237).]» teve conhecimento do testamento e da causa da nulidade.
2. Sendo anulável o testamento ou a disposição, a acção caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade.
3. São aplicáveis, nestes casos, as regras da suspensão e interrupção da prescrição”.

Destes normativos alveja-se, dede logo, que a presente acção — quer seja de anulação, quer de declaração de nulidade - é tempestiva (cfr. a data do falecimento do de cujus -- 8.9.2002- com subsequente abertura do testamento e a da instauração da acção -- 8.3.2002).

No que concerne ao conhecimento da nulidade, é de referir que não é próprio que a “nulidade” do testamento seja do conhecimento oficioso do tribunal. É que seria muito estranho que o tribunal pudesse conhecer a nulidade a todo o tempo e os particulares estivessem sujeitos a um prazo de dez anos[Guilherme de Oliveira, O Testamento, Apontamentos, pág. 122].
Por outro lado, pode dizer-se que a nulidade do testamento ou de uma disposição testamentária tem um regime aproximado da anulabilidade; as diferenças estão no círculo de pessoas legitimadas para agir (o que tem efeitos quanto à confirmação) e no prazo em que o podem fazer.
Por outro lado, como Oliveira Ascensão[Direito das Sucessões, pág. 335] faz notar, os prazos estabelecidos para a caducidade das acções de invalidação só têm sentido se as disposições testamentárias estiverem cumpridas. Faz-se aplicação da regra geral do artº 287º, nº2: só caduca o direito de agir se os beneficiários estiverem na posse dos bens.

É, de facto, o testamento sub judice, não só anulável - por virtude de o testador (Sr. .....) se encontrar, aquando da sua feitura, “incapacitado de entender o sentido da sua declaração (vício da vontade--veja-se, v.g., a resposta ao quesito 8º da base instrutória)--, como, também, parece ser mesmo nulo, uma vez que, atenta essa falta de capacidade para entender o sentido da sua declaração (a que não era alheia a arteriosclerose grave e galopante de que padecia --resposta ao quesito 1º), não podia ter “exprimido cumprida e claramente a sua vontade”, pois não ditou os termos constantes do testamento, “limitando-se a assinar o mesmo” (respostas aos quesitos 9º e 10º da base instrutória).
A expressão da vontade tem pois de ser clara e cumprida, exigência, aliás, que se não encontra para o negócio jurídico em geral[Mas que se encontrava no artº 647º do Código anterior. Este tinha já de ser interpretado de maneira a não levar ao absurdo de condenar à nulidade os contratos que suscitassem problemas de interpretação (Oliveira Ascensão, Direito das Sucessõs, Coimbra Editora, pág. 88, nota (1).]

Não tinha, assim, o testador o necessário discernimento que lhe permitisse entender o sentido e alcance da sua (importantíssima) declaração.

Importante é salientar que, ao contrário do que ocorre com a anulação da declaração negocial em geral por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (artº 257º-1, CC), na anulação do testamento pela mesma “incapacidade acidental”, já a lei não exige essa notoriedade, bastando-se com a própria incapacidade natural (cfr. artº 2199º, CC)[Escreveu Guilherme de Oliveira, O Testamento, Apontamentos, que “O artº 2199º prevê um regime especial para o caso de a disposição ter sido feita por quem estava acidentalmente privado de uma vontade sã. A consequência é idêntica à que se prevê no artº 257º mas não se exigem os requisitos que esta norma impõe, pois eles só se justificam na contratação normal, em que avulta a necessidade de proteger as expectativas do declaratário”.
Mota Pinto, Teoria Geral, a pág. 140, igualmente refere que não se exige a notoriedade ou conhecimento da anomalia].

Estamos, efectivamente, em face de um acto que, atenta a sua natureza - disposição post mortem dos bens por banda de alguém (artº 2179º, CC)--, a lei até impõe que se faça pessoalmente, não podendo ficar “dependente do arbítrio de outrem” (artº 2181º), exigindo a verificação, à data do testamento, de certos requisitos para a capacidade de testar, com a sanção da nulidade para a sua inobservância (cfr. arts. 2189º, 2190º e 2191º, CC).
Daqui que as coisas não possam ser vistas e apreciadas de ânimo leve, antes se exigindo que o testador seja possuidor, aquando da feitura do testamento, de capacidade tal que lhe permita expressar uma vontade livre, uma declaração espontânea, autêntica e esclarecida, sem interferências estranhas que por qualquer forma possam poluir aquela voluntas (intenção ou propósito de praticar o acto jurídico).
“A garantia da liberdade do testador e da vontade real são aspectos que nos aparecem constantemente acentuados na lei. Há a preocupação de que a declaração do testador seja espontânea, esclarecida e autêntica”[Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 90].

O testamento é um negócio pessoal no sentido que deve exprimir exclusivamente a própria vontade do seu autor e deve fazê-lo integralmente [Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Lições ao Curso de 1973-1974, Parte II, p. 218; Pamplona Corte Real, Curso de Direito das Sucessões, I, pág. 130; Oliveira Ascensão, cit.¸ pp 67 e segs] (cfr. arts. 2182º-1 e 2184º, CC - excepção a esta regra são as figuras da substituição pupilar e quase pupilar, ut arts. 2297º e 2298º, CC).
É, de facto, o artº 2182º CC a impor que o testador exprima integralmente a sua vontade. Só com essa expressão livre e integral da sua vontade faz sentido a posterior interpretação da vontade do testador, sendo que “a interpretação do testamento consiste na determinação do sentido da declaração de vontade do testador. O objecto desta interpretação é a manifestação exterior em que se traduz o testamento” [A interpretação do Testamento, de João Menezes Leitão, 1991, págs. 91/92].
Assim, portanto, só fará sentido preocuparmo-nos com a reconstituição da vontade efectiva do declarante/testador, se quando foi vertida para o papel essa vontade, o testador tinha capacidade para entender o sentido e alcance do que fazia. Isto é assim, quer se siga as orientações objectivistas, quer as objectivistas na interpretação do sentido negocial decisivo na interpretação do testamento - correspondendo estas duas orientações aos dois grandes princípios que dominam o regime do negócio jurídico: a autonomia privada e a tutela da confiança [Vd. Menezes Cordeiro, Teoria Geral, II, 183]
In casu, portanto, não tinha o testador capacidade para entender o sentido e alcance do que fazia. (cfr. resposta ao quesito 8º).
Não o tinha, pelo menos, à data do testamento. É que, sendo o testamento um negócio unilateral não receptício, fica perfeito no momento da manifestação de vontade. Assim, portanto, se compreende que o momento da feitura do testamento seja o momento relevante para a verificação da capacidade (artº 2191º CC).

Pergunta-se, então: face ao estado de incapacidade do testador, que acarretava o aludido vício do testamento - não estamos, ainda, a falar do estado de surdez, a tratar mais à frente -- , podia o notário ter deixado que o acto se praticasse?
A questão põe-se caso o acto seja nulo e não simplesmente anulável.
Efectivamente, atento o que supra se disse a respeito do regime especial das disposições testamentárias, é legítimo perguntar-se qual deve ser a atitude do notário em face de uma disposição nula.
Ensina Guilherme de Oliveira [Ob. cit., pág. 128] que “se a disposição nula produz os seus efeitos enquanto não for destruída e se a acção de nulidade pode caducar, isto é, se o regime da nulidade do testamento é idêntico ao da anulabilidade (apenas com a diferença quanto ao prazo para agir), então a atitude do notário deve ser idêntica em ambos os casos: deve praticar o acto nulo, com a advertência” aos interessados e registo dessa advertência.
Tal não aconteceu, porém.
Vem, no entanto, tempestivamente arguida a destruição do testamento com fundamento no apontado vício, pelo que não podemos deixar de apreciar do mérito da demanda.

Anote-se que em matéria de perfeição do consentimento-- que, como vimos, deve verificar-se no sentido de que deve ser completamente declarada a vontade de testar (ver a nulidade referida no artº 2180º CC) e de que esta deve concordar com a declaração testamentária--, para além das causa especialmente reguladas nos arts. 2200º e 2201º, CC, são aqui aplicáveis, com as necessárias adaptações, as causa gerais dos arts. 24º a 249º CC.
O que leva a concluir que o testamento deve outorgar-se sem vícios na formulação da vontade.

Por outro lado, em matéria de esclarecimento e liberdade do consentimento, é claro que o consentimento no testamento deve ser esclarecido (isto é, formado com exacto conhecimento das coisas essenciais para o testador) e assumido com liberdade exterior (ou seja, não determinado por violências ou outras formas de coerção) - sendo que as causas gerais de invalidade do negócio jurídico (arts. 251º a 257º CC) só podem aplicar-se parcialmente e a título subsidiário, se forem compatíveis com o espírito das causas especiais testamentárias (arts. 2199º e 2201º 1 2203º CC).
Em conclusão, o consentimento no testamento deve outorgar-se sem vícios na formação da vontade.

Anote-se que, como igualmente já afloramos, o artº 2199º CC dispõe que o testamento é anulável [Nestas hipóteses, que afectam a globalidade da vontade de testar, todo o testamento é anulável] por ausência da vontade sã e livre [Na chamada incapacidade acidental estamos no domínio da falta de aptidão ou exercício naturais ou dos vícios do consentimento e não perante incapacidades jurídicas propriamente ditas. Neste sentido, P.Lima e A Varela, Código Civil Anotado, VI, pág. 323, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 105 ss, e Mota Pinto, Teoria Geral dp Direito Civil, 534 ss], em certos tipos de hipóteses: quando for «feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração» ou feito por quem «não tinha o livre exercício da sua vontade» [Este enfraquecimento da vontade, esta incapacidade natural acidental de querer testar pode resultar de doença, de temor reverencial ou de circunstâncias externas que não constituam coacção mas que retirem o livre exercício da vontade do testador (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições..., I., pág. 185)], por «qualquer causa, ainda que transitória» [Esta incapacidade acidental «por qualquer causa» diz respeito tanto à falta de entendimento como de querer (cfr. artº 257º-1, CC). A causa pode ser transitória (como uma embriaguês profunda ocasional), ou duradoura (como uma psicose), mas tem de provocar falta de entendimento do sentido da declaração testamentária ou do livre exercício da vontade do testador]
-- sublinhado nosso.

Percute-se que in casu, se verifica a supra aludida incapacidade do testador, pois vimos que se encontrava com a sua inteligência obnubilada (devido à arteriosclerose de que padecia, que nem sequer lhe permitia conhecer o dinheiro) - e até a sua vontade enfraquecida--, de tal jeito que lhe não era possível entender (de forma correcta e esclarecida, como se impunha), designadamente, o que se dissesse no Cartório Notarial aquando do testamento, não se podendo, assim, também afirmar que (livre e esclarecidamente) quis o que se refere naquele documento como ter sido por ele declarado.
Portanto, não é possível dizer-se que no momento do testamento o testador entendeu o que “disse” - deficiências essas que constituem ónus de prova da autora (arts. 342ºº, nº1, CC e Ac. STJ de 31.01.91, Act. Jur., 15º/16º, 23), prova que, no entanto, logrou fazer, como resulta claro, designadamente, da resposta ao quesito 8º da base instrutória.

Escreveu o Ac. do STJ de 9.10.73, Bol. M.J., 230º-119, que «I-resultando incontroversamente da matéria de facto que, à data do testamento, o testador não estava em condições de avaliar o acto que praticou, encontrando-se assim incapacitado de entender o sentido das declarações daquele constantes, isso constitui causa de anulabilidade do testamento, nos termos do artº 2199º do Cód. Civil.
II- Um documento autêntico, como é o testamento, só tem força probatória plena quanto à acções ou percepções do oficial público no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser ilididas com base na sua falsidade. III- Em relação aos restantes factos, não cobertos pela força probatória plena do documento- como são os relativos à liberdade da declaração e ao entendimento do seu sentido-, a sua impugnação pode fazer-se independentemente da arguição da falsidade, pelos meios gerais, visto a lei não estabelecer qualquer forma especial para a sua prova.
[...........]»

Verificada a existência do aludido vício - ou vícios--, obviamente que tanto já bastava para que a acção procedesse.

Mas sempre procederia pelo mais que se dirá.

DA NULIDADE FORMAL DO TESTAMENTO:

Provado ficou, além do teor dos quesitos 1º a 10º, que “À data do testamento aludido na al. E), o N............. sofria de uma surdez relativa de elevado grau - perda auditiva bilateral ligeiramente assimétrica, neurosensorial--, que o impedia de ouvir e perceber a leitura de um instrumento notarial, maxime um testamento, ainda que em voz alta, mesmo usando prótese auditiva”

Dispõe o artº 66º do Código do Notariado -- respeitante aos “actos com intervenção de surdos e mudos”:
“1. O outorgante que, por motivo de surdez, não puder ouvir a leitura do instrumento deve lê-lo em voz alta, e, se não souber ou não puder ler, tem a faculdade de designar uma pessoa que, na presença de todos os intervenientes, proceda a segunda leitura e lhe explique o conteúdo.” - sublinhado nosso.

Por sua vez, reza o artº 70º do mesmo Código:
“1. O acto notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos:
(....)
A declaração do cumprimento das formalidades previstas nos artigos 65º e 66º
(....)”.

Ora, face à resposta ao quesito 11º, é claro que o testador não ouviu (não podia ter ouvido), nem a leitura do testamento, nem as explicações (ut artº 50º, Cód. Not.) que no acto tenham sido prestadas - e não ouvia mesmo que tivessem sido lidas em voz alta (o que no instrumento notarial não vem, no entanto, referido).
Como tal, não tendo o testamento sido lido em voz alta pelo testador, como é imperativo legal (ut cit. artº 66º, nº1, ex vi do artº 70º, nº1, al. b), do Cód. Not.) - pelo menos nada disso consta do testamento, e tinha que constar--, a sanção cominada por este Código é clara: nulidade do testamento.
Como bem diz a apelante, não se pode esquecer que a leitura e a explicação de instrumento notarial, mormente de um testamento, emprestando-lhe solenidade e, assim, reforçando a credibilidade do documento, é uma formalidade da maior importância para a certeza e credibilidade dos actos notariais, já que só por essa via se possibilita aos respectivos intervenientes que o vão assinar um conhecimento perfeito e inequívoco do seu teor, “sendo necessário que tudo se faça para se conseguir que só a verdade está nele contida”.

Procede, assim, a segunda questão suscitada pela apelante, bem assim as respectivas conclusões das suas alegações de recurso.

CONCLUINDO:
- As causas gerais de invalidade do negócio jurídico (arts. 251º a 257º CC) só podem aplicar-se parcialmente e a título subsidiário ao testamento se forem compatíveis com o espírito das causas especiais testamentárias (arts. 2199º e 2201º 1 2203º CC).
- A nulidade do testamento ou de uma disposição testamentária tem um regime aproximado da anulabilidade; as diferenças estão no círculo de pessoas legitimadas para agir (o que tem efeitos quanto à confirmação) e no prazo em que o podem fazer.
- Ao contrário do que ocorre com a anulação da declaração negocial em geral por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (artº 257º-1, CC), na anulação do testamento pela mesma “incapacidade acidental”, já a lei não exige essa notoriedade, bastando-se com a própria incapacidade natural (cfr. artº 2199º, CC).
- Um documento autêntico, como é o testamento, só tem força probatória plena quanto à acções ou percepções do oficial público no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser ilididas com base na sua falsidade.
- Se o testador não ouviu, nem a leitura do testamento, nem as explicações (ut artº 50º, Cód. Not.) que no acto tenham sido prestadas-- mesmo que lidas em voz alta (o que não vem referido no instrumento notarial)--, impunha-se que o lê-se em voz alta (artº 66º, nº1, ex vi do artº 70º, nº1, al. b), ambos do Cód. Notariado), sob pena de nulidade desse acto notarial.

IV- DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, nos seguintes termos:
Altera-se a decisão da matéria de facto nos sobreditos termos;
Julga-se procedente, por provada, a acção, em função do que se declara nulo o testamento de N...................... lavrado no dia 24 de Julho de 1997, o 3º Cartório Notarial do Porto, com cópia a fls. 18 a 23 dos autos, com todas as legai consequências.

Custas das instâncias a cargo dos réus, sendo, porém, as da apelação a cargo dos apelados B.................... e mulher.

Porto. 21 de Setembro de 2004
Fernando Baptista Oliveira
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estevão Vaz Saleiro de Abreu