Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0722288
Nº Convencional: JTRP00040400
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: FIXAÇÃO DE PRAZO
ACÇÃO ESPECIAL
PRAZO
OBRIGAÇÃO
MORA
Nº do Documento: RP200705290722288
Data do Acordão: 05/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 249 - FLS. 147.
Área Temática: .
Sumário: I – O âmbito de aplicação do processo especial de fixação judicial de prazo previsto no artº 1456º do CPC está confinado aos casos previstos no artº 772º, nº 2 do CC, não abrangendo aqueles em que o momento da obrigação é fixado por acordo das partes ou por imposição legal.
II – O processo de fixação judicial de prazo visa o preenchimento de uma cláusula acessória do contrato (prazo de cumprimento da obrigação), indispensável para a determinação da mora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


RELATÓRIO

B…………………..,
C…………………..,
D………………….. e mulher, E…………………..,
F…………………... e mulher, G…………………..,
H………………….. e I……………..., e
J………………….., intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, a presente acção especial de fixação judicial de prazo contra:
- L……………………., Lda, pedindo que seja fixado, nos termos do artº 1456º do C. P.C., o prazo de 30 dias para a marcação das escrituras de compra e venda a outorgar entre Autores e Ré.
Alegaram, para tanto, em resumo, que celebraram com a Ré os contratos-promessa de compra e venda cujas cópias juntam aos autos e nos quais não ficou exarada a data da marcação das escrituras; acresce que as escrituras dos 1º, 2º, 3ºs, 4ºs e 6ºs Autores ficaram dependentes da obtenção da respectiva licença de habitação e a dos 5ºs Autores da venda da habitação de que eram proprietários, o que já se verificou; a Ré vem protelando a marcação das pertinentes escrituras.
Contestou a Ré, alegando, também em resumo, que a protelação da marcação das escrituras se ficou a dever ao facto de ainda não ter sido emitida a licença de habitabilidade por haver necessidade de proceder à rectificação de áreas no registo predial; todavia, não lhe sendo imputável a mora na realização das escrituras, a fixação do prazo requerido, consubstancia inaceitável abuso de direito; termina, por isso, pedindo o indeferimento do pedido de fixação de prazo e, sem conceder, que o mesmo seja fixado em 60 dias a partir da data da emissão das respectivas licenças de habitabilidade.
Convocadas as partes para uma tentativa de conciliação, que se gorou, foi mandado oficiar à Câmara Municipal de Matosinhos, a fim de informar sobre as razões pelas quais ainda não foi concedida licença de utilização ao prédio a que respeita a licença de construção em causa, quais as diligências que será necessário efectuar para obter tal licenciamento e tempo aproximado que as mesmas demorarão, tendo tal informação sido prestada do modo que consta do ofício de fls. 90.
Seguidamente, verteu-se nos autos sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, fixou em 120 dias o prazo para a outorga das escrituras de compra e venda respeitantes aos contratos-promessa celebrados com o primeiro, segundo e terceiros Autores, absolvendo a Ré quanto ao demais peticionado.
Inconformada com o assim decidido, interpôs a Ré recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.
Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “Os factos dados por provados nas als. n) e o) da douta sentença em causa, foram-no com base em documentos requisitados a entidade oficial, não notificados à requerida, ora recorrente, para sobre os mesmos se pronunciar, em violação do disposto nos artºs 3º, 3º-A, 539º e segs. todos do CPC;
2ª – O facto tido por assente na al. d), não tem correspondência com a prova documental carreada para os autos pelos requerentes, nem tem interesse para a decisão de mérito nesta acção, não podendo ser oposto à requerida pelo segundo requerente, pelo que deverá ser alterado, ao abrigo do artº 712º, nº 1, als. a) e b) do CPC, passando a ter a seguinte redacção: “Nos termos da cláusula 6ª do contrato de cessão da posição contratual de 3 de Fevereiro de 2003, ficou convencionado entre cedente e 2º A que a escritura definitiva de compra e venda seria efectuada logo após a obtenção da licença de habitabilidade a emitir pela Câmara Municipal de Matosinhos”;
3ª – Tal como formulada a p.i. e respectivo pedido e consequente resposta, verifica-se a falta de desacordo entre requerentes e requerida em relação ao prazo de cumprimento da obrigação, em divergência aos requisitos legais constantes do artº 777º, nº 2 do CC, arts. 1456º e segs do CPC e unânime jurisprudência;
4ª – Finalmente, não se pronunciou a douta sentença sobre a questão do abuso de direito, suscitada pela requerida, pelo que incorreu na nulidade do artº 668º, nº 1, al. d), do CPC;
5ª – A douta decisão em exame violou os preceitos legais, anteriormente citados nestas alegações e respectivas conclusões”.

Não foi apresentada contra-alegação.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber se houve preterição do princípio do contraditório; se é de alterar a matéria vazada na al. d) dos factos provados; se a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia; e se tem justificação a fixação de prazo, conforme decidido na sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
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OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1º - No dia 11 de Março de 2002, o 1º. Autor e a Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual o primeiro prometeu comprar e a segunda prometeu vender a fracção autónoma designada pela letra G, com lugar de garagem e arrumos situados na cave, correspondente ao 3º. Andar esquerdo do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o nº. 498/281287, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4667 – Doc. de fls 19 a 21 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
2º - Nos termos da cláusula Quarta do referido contrato-promessa, a escritura de compra e venda seria efectuada "logo que reunidas as condições legais necessárias à sua celebração como a licença de habitabilidade e/ou de utilização” e seria outorgada em dia, hora e local a designar pela promitente-vendedora que se comprometia a informar o promitente-comprador com pelo menos 15 dias de antecedência;
3º - No dia 3 de Fevereiro de 2003, o 2º. Autor celebrou com a sociedade M…………………, Lda, o contrato de cessão da posição contratual cuja cópia se mostra junta de fls 22 a 24 dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, tendo, por via do mesmo, adquirido todos os direitos e obrigações inerentes ao contrato-promessa de compra e venda celebrado entre aquela sociedade e a aqui Ré em 12 de Junho de 2002 e nos termos do qual a referida M………….., Lda, prometia comprar e a aqui Ré prometia vender a fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 1º. andar esquerdo do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o nº. 498/281287, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4667 – Doc. de fls 25 a 27 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
4º - Nos termos da cláusula sexta do contrato-promessa celebrado entre a M……………, Lda, e a aqui Ré, a escritura pública de compra e venda seria outorgada até ao dia 31 de Dezembro de 2002, podendo ser celebrada no prazo de seis meses contados a partir desta data, impendendo sobre a Requerida a obrigação de marcar dia para realização da escritura, avisando os promitentes compradores por carta registada com aviso de recepção e com a antecedência de 10 dias;
5º - No dia 7 de Novembro de 2004, os 3º. Autores e a Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual os primeiros prometeram comprar e a segunda prometeu vender a fracção autónoma designada pela letra H, com lugar de garagem e arrumos situados na cave, correspondente ao 3º. Andar direito do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o nº. 498/281287, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4667 – Doc. de fls 55 a 57 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
6º - Nos termos da cláusula Quarta do referido contrato-promessa a escritura de compra e venda seria efectuada "logo que reunidas as condições legais necessárias à sua celebração como a licença de habitabilidade e/ou de utilização” e seria outorgada em dia, hora e local a designar pela promitente-vendedora que se comprometia a informar o promitente comprador com pelo menos 15 dias de antecedência;
7º - No dia 29 de Setembro de 2005, os 4º. Autores e a Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual os primeiros prometeram comprar e a segunda prometeu vender a fracção autónoma designada pela letra F, com lugar de garagem e arrumos situados na cave, correspondente ao 2º. Andar direito do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o nº. 498/281287, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4667 – Doc. de fls 28 a 31 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
8º - Nos termos das cláusulas segunda e terceira do referido contrato-promessa, a escritura de compra e venda seria efectuada no prazo máximo de 60 dias a contar, cumulativamente, da obtenção, pela promitente vendedora, “dos documentos necessários (licença de habitabilidade) para a realização da respectiva escritura” – comunicando tal obtenção aos promitentes compradores, por escrito, no prazo máximo de quinze dias – e da venda do imóvel propriedade dos promitentes-vendedores, que igualmente se obrigam a comunicar tal venda à promitente vendedora no prazo de 15 dias;
9º - No dia 2 de Agosto de 2005, os 5º. Autores e a Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual os primeiros prometeram comprar e a segunda prometeu vender a fracção autónoma designada pela letra B, com lugar de garagem e arrumos situados na cave, correspondente ao r/chão direito do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o nº. 498/281287, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4667 – Doc. de fls 32 a 35 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
10º - Nos termos da cláusula quinta do referido contrato-promessa, a escritura de compra e venda seria “celebrada pelos compradores, após a venda do apartamento” de sua propriedade;
11º - No dia 21 de Agosto de 2005, o 6º. Autor e a Ré celebraram um contrato-promessa de compra e venda nos termos do qual o primeiro prometeu comprar e a segunda prometeu vender a fracção autónoma designada pela letra A, com lugar de garagem e arrumos situados na cave, correspondente ao r/chão esquerdo do prédio urbano descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o nº. 498/281287, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4667 – Doc. de fls 36 a 38 dos autos cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
12º - Nos termos da cláusula Quarta do referido contrato-promessa a escritura de compra e venda seria efectuada "logo que reunidas as condições legais necessárias à sua celebração como a licença de habitabilidade e/ou de utilização” e seria outorgada em dia, hora e local a designar pela promitente-vendedora que se comprometia a informar o promitente comprador com pelo menos 15 dias de antecedência, mas só quando os promitentes compradores vendessem a sua actual habitação – Cláusula sétima;
13º - Nos termos da cláusula quinta do referido contrato-promessa, a escritura de compra e venda seria “celebrada pelos compradores, após a venda do apartamento” de sua propriedade;
14º - A licença de utilização do prédio em que se incluem as fracções prometidas vender ainda não foi concedida em virtude da requerida, nomeadamente, não ter liquidado a taxa relativa ao pedido de prorrogação da licença de utilização e ter incumprido o projecto – Doc. de fls 90 dos autos;
15º - A Requerida foi notificada pela C. M. de Matosinhos para comparecer nos serviços camarários no dia 17 de Março de 2006 para esclarecer a situação a atrás descrita, não tendo comparecido – Doc. de fls 90 dos autos.
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O DIREITO

Defende a apelante ter havido preterição do princípio do contraditório, em virtude de não ter sido notificada dos documentos requisitados à Câmara Municipal de Matosinhos e com base nos quais se deram como provados os factos dos itens 14º e 15º.
É inequívoco que o Tribunal “a quo” mandou oficiar àquela Câmara Municipal, a solicitar a informação sobre as razões pelas quais ainda não foi concedida a licença de utilização relativa ao prédio em causa, tendo tal informação sido junta aos autos (vide fls. 86 e 90). E não é menos certo que, prestada tal informação, se vazou de imediato nos autos a sentença ora posta em crise.
Posto isto, não corresponde à verdade a afirmação da apelante de que a matéria daqueles itens 14º e 15º teve por base “documentos requisitados”, já que se tratou de uma simples informação a uma entidade oficial e não de documentos.
Não obstante, afigura-se-nos que tal informação prestada por entidade oficial não tinha de ser notificada à ora apelante. Na verdade, estamos em presença de uma acção especial de fixação judicial de prazo, regulada nos artºs 1456º e 1457º do C. de Proc. Civil, integrado nos chamados «processos de jurisdição voluntária».
Ora, neste tipo de processos, o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias. E, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.ºs 1409.º e 1410.º do C.P.C.).
Os processos de jurisdição voluntária têm um regime peculiar, que diverge em muito do regime geral do processo contencioso. Do regime dos processos de jurisdição graciosa destacam-se quatro pontos fundamentais:
a) O predomínio do princípio inquisitório sobre o dispositivo, quanto ao objecto do processo, já que o tribunal não está limitado, em regra, aos factos articulados pelas partes;
b) O predomínio da equidade sobre a legalidade, já que, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna;
c) A livre revogabilidade das resoluções, uma vez que, nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; e
d) A inadmissibilidade de recurso para o S.T.J. (vide Antonino Antunes, O.T.M. Comentada e Anotada, 94 e 95).
Como tem sido doutrinariamente sustentado, o traço fundamental da distinção entre jurisdição voluntária e jurisdição contenciosa reside na natureza desenvolvida em cada uma delas.
Assim, «a jurisdição voluntária implica o exercício de uma actividade essencialmente administrativa, a jurisdição contenciosa implica o exercício de uma actividade verdadeiramente jurisdicional» (Prof. Alberto dos Réus, Processos Especiais, 2º, 398).
Dada a natureza do processo, pensamos não ter sido, pois, postergado o princípio do contraditório.
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Defende, seguidamente, a apelante a alteração da matéria vertida na al. d) dos factos da sentença (vide item 4º supra).
É a seguinte a matéria vertida naquele item 4º: “Nos termos da cláusula sexta do contrato-promessa celebrado entre a M………….., Lda, e a aqui Ré, a escritura pública de compra e venda seria outorgada até ao dia 31 de Dezembro de 2002, podendo ser celebrada no prazo de seis meses contados a partir desta data, impendendo sobre a Requerida a obrigação de marcar dia para realização da escritura, avisando os promitentes compradores por carta registada com aviso de recepção e com a antecedência de 10 dias”.
Defende a apelante que a matéria daquele mesmo item deveria ficar com a seguinte redacção (vide conclusão 2ª): “Nos termos da cláusula 6ª do contrato de cessão da posição contratual de 3 de Fevereiro de 2003, ficou convencionado entre cedente e 2º A que a escritura definitiva de compra e venda seria efectuada logo após a obtenção da licença de habitabilidade a emitir pela Câmara Municipal de Matosinhos”.
A matéria dada como provada no item 4º dos factos traduz o que foi firmado na cláusula 6ª do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a firma M…………., L.da, e a Ré, ora apelante, contrato esse cuja cópia se encontra a fls. 25 e 26.
Nada há, pois, a alterar na matéria dada como provada no referido item 4º dos factos, matéria essa que tem como suporte documento junto e não impugnado.
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Arguiu a Ré a nulidade da sentença recorrida, em virtude de não se ter pronunciado sobre a excepção do abuso de direito invocado na contestação.
É certo que a Ré/apelante invocou, na sua contestação (vide fls. 64), a excepção do abuso de direito por parte dos Autores. E não é menos certo também que a sentença recorrida não se debruçou sobre essa questão, que é até de conhecimento oficioso (vide, por todos, o Ac. do S.T.J. de 12/11/98, R.L.J., Ano 132º, 3905/6, 256).
Não restam, por isso, dúvidas de que a sentença recorrida incorreu na nulidade prevista no artº 668º, nº 1, al. d), do C. de Proc. Civil, já que teria de apreciar e decidir a suscitada questão, o que não fez.
Não obstante, esta Relação conhecerá de tal questão, em substituição do Tribunal recorrido (artº 715º do C.P.C.).
Segundo alegou a apelante, “a essencial circunstância de não poder ser imputada responsabilidade ou mora à A na realização das escrituras, a fixação judicial de prazo, nos moldes requeridos pelos AA, consubstanciaria inaceitável abuso de direito” (vide artºs 42º e 43º da contestação).
Segundo o disposto no artº 334º do C. Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (C. Civil Anotado e Comentado, vol. I, 2.ª ed., pag. 277), em anotação àquele artigo, “exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (..)”.
Conforme refere Heirich Horster (in Teoria Geral do Direito Civil, pag.287), a maioria da doutrina nacional ou estrangeira tende a alargar o campo de aplicação do art. 334º do C.C. às faculdades, liberdades, poderes, etc., que fluem da capacidade jurídica das pessoas, ao abrigo da sua liberdade de agir, designadamente no que respeita à liberdade contratual, embora o autor lhe coloque reservas.
O abuso de direito pode manifestar-se num "venire contra factum proprium", ou seja numa conduta anterior do seu titular, que, objectivamente interpretada face à lei, bons costumes e boa fé, legitima a convicção de que tal direito não será exercido.
Vaz Serra (RLJ, 111º - 296), refere que há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado, e sustenta que a palavra “direito” é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar; refere ainda que não há motivo para excluir o exercício de meras faculdades do âmbito de aplicação do art. 334º do C. Civil.
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade. Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se fundamentalmente os juízos de valor positivamente consagrados na lei, como refere A. Varela (Das obrigações em geral, 2.ª ed., vol. 1º, pag.423), citado no C.C. Anotado e Comentado, já acima referido.
Ora, não se descortina na actuação dos Autores/apelados qualquer exercício abusivo do seu direito e muito menos um abuso excessivo. Aqueles vieram pedir a fixação judicial de prazo em relação a contratos-promessa celebrados com a ora apelante há longo tempo (entre 2002 e 2005).
A apelante, embora alegando não lhe poder ser imputada responsabilidade ou mora na realização das escrituras, o certo é que não está isenta de tal responsabilidade (vide itens 14º e 15º dos factos). Aos Autores é que não pode ser imputada a responsabilidade da não outorga das escrituras, em que estão certamente interessados, como deixa perceber a instauração da presente acção.
Improcede, por isso, a invocada excepção de abuso de direito.
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A sentença recorrida decidiu fixar em 120 dias o prazo de outorga das escrituras de compra e venda em relação aos contratos-promessa celebrados com os primeiro, segundo e terceiros Autores. Como os demais Autores não impugnaram a sentença, está aqui apenas em causa a fixação judicial de prazo em relação àqueles Autores.
E não restam dúvidas de que a sentença, ao fixar o prazo para a realização das escrituras em relação àqueles Autores, não merece qualquer censura.
O contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis é um contrato formal, sujeito por lei à forma escrita (artºs 410º, nº 2, e 875º do C.C.).
Essa forma foi respeitada nos contratos em causa, como decorre dos documentos juntos.
De acordo com o disposto no artº 1456º do C. de Proc. Civil, quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indicará o prazo que repute adequado.
Este processo especial foi introduzido na nossa lei processual civil pelo Dec. Lei nº 47 690, de 11/05/1967, a fim de tornar efectivo o direito de fixação de prazo nas obrigações de prazo natural, circunstancial ou usual aludidas no nº 2 do artº 777º do C. Civil (vide Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, vol. 2º, 4ª ed., 41/42, e Ac. desta Relação de 18/04/06 (Dr. Henrique Araújo, aqui 1º Adjunto), in www.dgsi.pt).
De acordo com o nº 1 daquele artigo 777º, na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.
Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao Tribunal (nº 2 do mesmo artigo).
Se a determinação do prazo for deixada ao credor e este não usar da faculdade que lhe foi concedida, compete ao Tribunal fixar o prazo, a requerimento do devedor (nº 3).
O pedido formulado neste tipo de processo é o da fixação do prazo e a causa de pedir é a falta de acordo entre credor e devedor quanto ao momento em que se vence a obrigação (vide, por todos, o Ac. desta Relação de 16/02/89, C.J., Ano 14º, 1º, 194).
Por isso, o seu âmbito de aplicação está confinado aos casos previstos no citado artº 777º, nº 2, não abrangendo aqueles em que o momento da obrigação é fixado por acordo das partes ou por imposição legal (vide Acs. Desta Relação de 17/03/97, proferido no Recurso nº 9650944, e de 28/11/96, no Recurso nº 9630592, ambos disponíveis no citado endereço electrónico).
O processo especial de fixação judicial de prazo visa, assim, o preenchimento de uma cláusula acessória do contrato (prazo de cumprimento da obrigação), indispensável para a determinação da mora.
Ora, no caso presente, a Ré não nega a existência da obrigação, mas diz que não lhe é imputável a responsabilidade na não realização das escrituras, em virtude de ainda não possuir as competentes licenças de habitabilidade.
O que, como se diz na sentença recorrida, está aqui em causa é exactamente a obrigação que impende sobre a ora apelante de obter a respectiva licença de utilização, promovendo os actos necessários ao licenciamento, promoção essa que, como decorre dos factos descritos nos itens 14º e 15º, a requerida não vem efectuando ou, pelo menos, não vem efectuando com a diligência que se lhe impunha. Esta obrigação traduz-se num dever acessório, paralelo ao dever principal que assumiu quanto à celebração do contrato definitivo. Como resulta do disposto nos artºs 227º, nº 1, e 762º, nº 2, do C. Civil, as partes estão obrigadas, nas negociações e celebração do contrato, bem como no cumprimento das obrigações que deste emergem, a actuar de acordo com as regras da boa fé, princípio que os obriga à observância dos comportamentos necessários ao cumprimento integral do contrato.
Deste modo, está a apelante obrigada a promover os actos necessários ao licenciamento da obra em questão, de modo a tornar possível a realização dos contratos definitivos em causa e, não estando as partes de acordo quanto ao prazo necessário a tal concretização, tinha o tribunal que fixar tal prazo, como fez.
Improcedem, assim, no essencial, as conclusões da alegação da apelante, pelo que a sentença recorrida terá de se manter.

DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 29 de Maio de 2007
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso