Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0031793
Nº Convencional: JTRP00030939
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: LETRA
TÍTULO EXECUTIVO
JUROS DE MORA
JUROS LEGAIS
ACÇÃO EXECUTIVA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP200103010031793
Data do Acordão: 03/01/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J FELGUEIRAS 3J
Processo no Tribunal Recorrido: 196-A/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC EXEC.
DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CPC95 ART46 C ART45 N1 ART234 N4 ART466 N1 ART467 N1 D ART664.
LULL ART48 N2.
DL 262/83 DE 1983/06/16 ART4.
CCOM888 ART102 §3.
CCIV66 ART559.
PORT 263/99 DE 1999/04/12.
Sumário: I - Nas letras, emitidas e pagáveis em Portugal, como títulos executivos, é aplicável, em dado momento, aos juros moratórios, a taxa que decorre do disposto no artigo 4 do Decreto-Lei n.262/83, de 16 de Junho, e não a prevista no n.2 do artigo 48 da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças.
II - Em processo executivo é admissível o indeferimento liminar parcial da petição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto

I - Na comarca de Felgueiras, onde foi distribuída ao 3º juízo, ...-- ARTIGOS PARA CALÇADO, Ldª. instaurou execução para pagamento de quantia certa contra a executada ...- COMÉRCIO E INDÚSTRIA DE CALÇADO, Ldª., na qual veio peticionar o pagamento da quantia de esc. 1.275.609$00, correspondendo esc. 1.248.736$00 a duas letras de câmbio aceites por aquela executada e esc. 26.873$00 aos juros moratórios vencidos, à taxa constante da Portaria n.º 262/99, de 12/04, bem como os juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
No despacho liminar, o Senhor Juiz indeferiu parcialmente o requerimento executivo, relativamente à taxa de juros, calculada pela exequente em 12%, a qual fixou em 7%.
Do decidido a exequente agravou, tendo concluído as suas alegações pela forma seguinte:
1 - O juiz a quo não terá feito a melhor interpretação e aplicação da Portaria n.º 262/99, de 12/04, que fixou, para o caso sub judice, a taxa de 12% de juros.
2 - De resto, o aplicar a Portaria n.º 263/99, de 12/04, o juiz a quo terá feito errada interpretação e aplicação da taxa supletiva legal, porquanto não levou em linha de conta quanto consta dos arts. 1º e 2º do requerimento executório.
3 - Acresce que tão pouco o juiz a quo fez correcta interpretação e aplicação do disposto no art. 811º-A, n.º 2 do CPC, na medida em que os juros requeridos no requerimento executório não interferem, nem alteram, e menos fazem exceder, os limites constantes do título executivo.
4 - A ser verdade essa sustentação, que nem academicamente será admissível, tanto alteraria os limites do título executivo uma taxa de 2% como de 12%, como de 30%, o que, à partida, negaria à recorrente a faculdade de pedir os juros de lei.
5 - Sendo certo que os limites, objectivos e subjectivos, do título executivo são os que constam do próprio título ( art.45º, n.º 1 do CPC) que serve de base à execução, sobre cuja base incidirá a taxa de juros que for legalmente aplicável, não tendo aqui aplicação o art. 811º-A, n.º 2 do CPC.
6 - Ainda a aplicação da taxa de juros, nesta fase, não é de conhecimento oficioso, tanto mais que o juiz a quo com a posição assumida estará a tomar, antecipadamente, a defesa dos interesses da executada, antes de esta ser ouvida.
7 - Toda a jurisprudência e demais citações que constam do despacho recorrido são anteriores à Portaria n.º 262/99, de 12/04, que consagra, de forma especial e não genérica, a taxa de juros moratórios para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, o que ficou a constar expressamente do requerimento executório (arts. 1º e 2º da execução).
8- Termos em que a decisão deve ser revogada e aplicada ao caso dos autos a taxa de juro de 12%, atento o disposto na Portaria n.º 262/99, de 12/04.
Não foram apresentadas quaisquer contra alegações, tendo o Senhor Juiz sustentado tabelarmente o despacho proferido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Como decorre das transcritas conclusões da recorrente, a sua discordância, relativamente ao conteúdo do despacho recorrido, circunscreve-se às seguintes questões:
- taxa aplicável aos juros de mora; e
- inadmissibilidade legal do indeferimento parcial da execução, as quais se passarão, de seguida, a analisar descriminadamente.
III - Assim, e no que respeita à taxa referente aos juros de mora, peticionada pela recorrente no valor de 12%, e que o Senhor Juiz, ao abrigo do preceituado na Portaria n.º 263/99, de 12/04, reduziu para 7%, aquela vem sustentar a inaplicabilidade, ao caso em apreço, do estatuído naquele diploma legal, atendendo ao que consta dos arts. 1º e 2º do requerimento executivo - conclusão 2ª).
Com efeito, a exequente alegou "que tem por objecto social a comercialização de artigos e componentes para a indústria do calçado" e que, "no exercício da referenciada actividade, fez diversos fornecimentos de mercadorias, que a executada, comerciante, recebeu sob prévia encomenda" - arts. 1º e 2º do referido requerimento executivo.
Porém, como se constata do art. 12º do mesmo articulado, ao alegar que "as sobreditas letras são títulos executivos e a dívida é certa, líquida e exigível", a ora recorrente fundou a referida execução em duas letras de câmbio, de aceite da executada - art. 3º do aludido requerimento.
Ora, o título cambiário é um título executivo extrajudicial - vide art. 46º, al. c) do CPC e "Anotado" do Prof. Lebre de Freitas e outros, vol. I, pág. 91 -, que se consubstancia num documento que constitui prova legal para fins executivos, já que a declaração no mesmo representada, é ela própria o facto constitutivo do direito de crédito exequendo, constituindo deste prova sintética ou integral - vide "A Acção Executiva" do Prof. Lebre de Freitas, 2ª edição, pág. 56.
Temos, portanto, que, dilucidada a natureza jurídica dos títulos ora dados à execução, face ao teor do Assento n.º 4/92, de 13/07, publicado no DR - I Série - A -n.º 290 de 1992/12/17, onde se dispôs:
Nas letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal é aplicável, em dado momento, aos juros moratórios, a taxa que decorre do disposto no art. 4º do DL n.º 262/83, de 16/06, e não a prevista nos n.ºs 2 dos arts. 48º e 49º da LULL, jurisprudência esta de manifesta aplicação no momento presente, não só tendo em consideração a inalterabilidade, após a sua prolação, dos preceitos da legislação cambiária no mesmo contemplados, como também o preceituado no n.º 2 do art. 17º do DL n.º 329-A/95, de 12/12, há que apurar se a taxa dos juros moratórios aos mesmos aplicável será a vigente para as obrigações civis ou comerciais, já que naquele indicado art. 4º do DL n.º 262/83 se veio estabelecer que a indemnização correspondente à mora, consiste nos juros legais.
Com efeito, e se quanto àquelas obrigações civis vigora o regime decorrente do art. 559º do CC, já, quanto às restantes, o § 3º do art. 102º do C Com. consagra que "poderá ser fixada por portaria...uma taxa supletiva de juros moratórios, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas".
Todavia, nas execuções como a presente, em que o respectivo título executivo é constituído por uma ou várias letras de câmbio, há a considerar que, no domínio das obrigações cambiárias decorrentes da subscrição dos referidos títulos, vigoram os princípios da literalidade e da abstracção.
Assim, e segundo aquele primeiro indicado princípio, nomeadamente nos títulos perfeitos, v. g. a letra, o mesmo traduz-se na circunstância do teor do título ser decisivo no estabelecimento do conteúdo do direito incorporado, já que a prestação devida tem de ser conforme ao conteúdo do título, não sendo admissíveis, em regra, outras estipulações que dele não constem (quod non est in cambio, non est in mundo) - vide "Direito Bancário" do Dr. José Maria Pires, vol. II, pág. 99.
Por outro lado, e no que respeita ao referenciado princípio da abstracção, este significa que a obrigação cambiária não depende de qualquer causa jurídica, nascendo apenas do facto da aposição da assinatura no título, ou, num ponto de vista mais concreto, que tal obrigação se destaca da relação jurídica subjacente, abstraindo-se desta, relativamente à definição do regime jurídico da obrigação cambiária - vide "Lições de Direito Comercial" do Prof. Pinto Coelho, vol. 2º, fasc. II, pág. 49 -, de tal modo que, a convenção executiva, directamente conexionada com a relação fundamental determinante da subscrição do título cambiário, como convenção extra - cartular que é, está completamente separada, inclusive fora, da obrigação cambiária - vide "Lições de Direito Comercial" do Prof. Ferrer Correia, vol. III, págs. 46 e 47.
Portanto, nada constando dos títulos dados à execução, relativamente ao conteúdo concreto da relação subjacente, já que, no título cambiário, como se referiu, apenas se consubstancia o direito que o exequente pretende ver judicialmente reconhecido, o qual é totalmente independente da causa debendi, a mera alegação, no requerimento executivo, da comercialidade substancial da dívida titulada pelas letras de câmbio dadas à execução, por estranha ao conteúdo específico daquelas, não pode ser tida em linha de consideração, como elemento substitutivo do documento titulador da natureza do negócio jurídico que determinou a subscrição dos referidos títulos, sob pena de violação expressa dos indicados princípios da literalidade e abstracção.
Com efeito, para que na presente acção executiva se pudesse considerar a taxa dos juros moratórios, peticionada pela recorrente, tornar-se-ia necessário que as letras de câmbio, ora dadas à execução como títulos executivos, não tivessem sido utilizadas em tal qualidade jurídica, mas sim e apenas como meros documentos quirógrafos, relativamente a um outro qualquer título de natureza extrajudicial, do qual constasse expressamente a natureza comercial da obrigação exequenda - art. 46º, al. c) do CPC.
Refere ainda a recorrente, em apoio da sua tese de aplicabilidade da taxa dos juros de mora comerciais, o facto das citações jurisprudenciais constantes do despacho agravado se reportaram a momento anterior ao da entrada em vigor da Portaria n.º 262/99, de 12/04- conclusão 7ª).
Todavia, desde já se esclarece a recorrente que, constituindo o invocado diploma legal uma mera actualização governamental da taxa instituída pela Portaria n.º 1167/95, de 23/09, embora a jurisprudência e doutrina citadas no despacho recorrido tenham sido exaradas em momento anterior ao do início da vigência do questionado diploma, aquela mera natureza actualizadora deste último, conduz à manutenção integral dos pressupostos que presidiram à prolação das decisões referenciadas no aludido despacho.
Improcedem, portanto, as conclusões 2ª) e 7ª).
IV - Cumpre, de seguida, proceder à apreciação da segunda questão suscitada pela recorrente nas suas conclusões e traduzida na inadmissibilidade de indeferimento parcial do requerimento executivo.
Assim, e para tal, a exequente começa por referir não ser aplicável à situação em presença o preceituado no art. 811º-A, n.º 2 do CPC.
Com efeito, este normativo processual, introduzido pela redacção vigente da codificação adjectiva civil, e fundado no qual o Senhor Juiz, no despacho agravado, determinou o impugnado indeferimento parcial, veio consagrar a admissibilidade de tal indeferimento, quanto à parte do pedido que exceder os limites constantes do título executivo, sendo certo, por outro lado, que é através do conteúdo do referido título, que constitui o pressuposto da acção executiva, que se determinam os limites desta -- art. 45º, n.º 1 do CPC.
Ora, o Senhor Juiz, como se referiu no relatório da presente peça, fez assentar o aludido indeferimento, sob o ponto de vista jurídico, na circunstância dos juros moratórios peticionados pelo exequente excederem os legalmente devidos.
Porém, e quanto a tal, a recorrente vem alegar que, por um lado, os juros requeridos não interferem, alteram ou fazem exceder os limites do título executivo -- conclusão 3ª) -, enquanto que, por outro lado, qualquer que fosse a taxa de juro, sempre tais limites seriam alterados, o que obstaculizaria ao exercício da faculdade de peticionar os juros legais - conclusão 4ª).
Cremos, todavia, que não assiste qualquer razão à recorrente.
Na verdade, no domínio da acção executiva fundada em título cambiário, como ocorre na situação em apreço, os limites daquela não se restringem, estritamente, aos quantitativos monetários constantes do título dado à execução, ou seja, aos limites literais deste último, já que sempre haverá que ter em linha de consideração, quando devidamente peticionados, os restantes direitos indemnizatórios que assistem ao respectivo portador, e que constam dos arts. 48º e 77º da LULL e 45º da LUC, direitos esses que, embora não expressamente referenciados no título, pela sua legal e taxativa atribuição àquele portador, não podem deixar de ser tidos em linha de conta pelo julgador, quando aquele venha a juízo exercer o seu direito de acção contra o obrigado cambiário - arts. 466º, n.º 1, 467º, n.º 1, al. d) e 664º do CPC.
Assim, e em tais circunstâncias, atento o âmbito de conhecimento que assiste ao julgador, relativamente à matéria relacionada com o direito a aplicar, nunca o exequente se pode ver impedido de peticionar os juros cuja titularidade lhe é legalmente conferida, com fundamento no obstáculo de que tal pedido excede os limites do título dado à execução.
Alegou, igualmente, a recorrente, como motivo justificativo da impugnação do decidido indeferimento liminar, não ser do conhecimento oficioso, na fase processual em que teve lugar, a redução da taxa de juros peticionada, já que, com tal posição, o julgador está a assumir a defesa dos interesses da executada, antes desta ser ouvida - conclusão 6ª).
Ora, contrariamente ao estatuído para a tramitação do processo declarativo, em que foi consagrada, como regra geral, a inadmissibilidade do indeferimento liminar da petição inicial - art. 234º, n.º 4 do CPC -, no âmbito do processo executivo foi estabelecida posição contrária relativamente ao requerimento executivo, uma vez que, na opinião do legislador, "envolvendo a normal e típica tramitação do processo executivo, não propriamente a declaração ou reconhecimento dos direitos, mas a consumação de uma subsequente agressão patrimonial aos bens do executado, parece justificado que o juiz seja chamado, logo liminarmente, a controlar a regularidade da instância executiva" - vide relatório do DL n.º 329-A/95, de 12/12.
Com efeito, atento o já antecedentemente referido, quer quanto aos limites legais do pedido a formular na acção executiva pelo portador de um título cambiário, quer no que diz respeito ao conhecimento oficioso pelo julgador do direito aplicável às questões que lhe são submetidas para apreciação, não vislumbramos como possa merecer qualquer acolhimento a tese sufragada pela agravante, no sentido da impossibilidade do conhecimento oficioso da ilegalidade parcial do pedido formulado em acção executiva, sob pena de, a tal se entender, se violar frontalmente o pensamento do legislador, através da apreensão judicial de bens do executado, em valor ou quantidades superiores às necessárias à satisfação do efectivo, e não do alegado, crédito do exequente.
Improcedem, portanto também, as conclusões 3ª),4ª) e 6ª).
V - Face a todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, mantêm-se integralmente o despacho agravado.
Custas pela recorrente.
Porto, 1 de Março de 2001
José Joaquim de Sousa Leite
António Alberto Moreira Alves Velho
Camilo Moreira Camilo