Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0612742
Nº Convencional: JTRP00039564
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: SENTENÇA
CONDENAÇÃO
Nº do Documento: RP200610090612742
Data do Acordão: 10/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 87 - FLS. 171.
Área Temática: .
Sumário: I- Nos termos do art. 74º do CPT, o juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do art. 514º do CPC, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho.
II- O direito ao salário, ou mais concretamente às diuturnidades nele incluídas, é um direito irrenunciável durante a vigência do contrato de trabalho, mas deixa de o ser com a cessação da relação laboral.
III- Assim, não tendo o autor formulado, na petição inicial, o pedido de condenação da ré no pagamento das diuturnidades e tendo formulado a sua pretensão já depois da cessação do contrato de trabalho, não pode o juiz condenar a ré além do pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
B………., com o patrocínio do MP., instaurou no Tribunal do Trabalho do Porto contra C……. Lda., acção emergente de contrato de trabalho, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a) € 5.362,03 a título de diuturnidades; b) € 1.187,82 a título de trabalho suplementar; c) os juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento daquelas quantias e até integral pagamento.
Alega o Autor que foi admitido ao serviço da Ré em 1966 para exercer as funções de motorista, conduzindo veículo pesado de mercadorias, sendo que e enquanto vigorou o contrato de trabalho – o Autor encontra-se reformado desde 31.1.04 -, a Ré nunca lhe pagou as diuturnidades a que tinha direito nem o trabalho que prestou para além do seu horário de trabalho, conforme indica na petição.
A Ré contestou alegando que as diuturnidades reclamadas antes de 1984 estão abrangidas pela prescrição ordinária de 20 anos, e que desde 1992 sempre pagou as diuturnidades a que o Autor tinha direito, sendo falso que ele tenha prestado o trabalho suplementar que indica. Conclui, assim, pela improcedência da acção.
O Autor veio responder à contestação pedindo seja julgada improcedente a excepção invocada pela Ré juntando ainda 36 documentos (os tacógrafos do veículo que conduzia).
A Ré veio tomar posição relativamente à junção dos documentos.
Entretanto o Autor constituiu mandatário nos autos.
A Mma. Juiz a quo convidou o Autor a apresentar nova petição o que este fez.
A Ré, notificada da nova petição, veio manter o alegado na contestação e na resposta aos documentos juntos pelo Autor.
Proferido o despacho saneador, nele se conheceu da excepção de prescrição invocada pela Ré, julgando-se a mesma improcedente.
Procedeu-se a julgamento, consignou-se a matéria provada e não provada e foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e a condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 5.362,03 a título de diuturnidades, acrescida dos juros à taxa legal, a contar de 31.1.04 e até integral pagamento. Dos demais pedidos foi a Ré absolvida.
O Autor veio recorrer da sentença pedindo a sua alteração no sentido da condenação da Ré na quantia de € 11.714,64 a título de diuturnidades, formulando as seguintes conclusões:
A despeito do Autor não ter especificado no seu pedido o montante de € 11.714,64, mas por lapso, de € 5.362,03, o certo é que na petição alega elementos que suportam tal pedido de € 11.714,64.
Só pela razão de, somente por lapso, se não ter indicado o montante exacto, o que se traduz num erro de cálculo, sempre sanável, devia a Mma. Juiz a quo ter condenado a Ré no pagamento integral relativo às cinco diuturnidades e não três.
Tal resulta da extensão do pedido e insere-se no espírito do art.74º do CPT, pois o pagamento de diuturnidades é um direito que flúi do próprio instrumento de regulamentação colectiva de trabalho e flúi da própria lei e são devidos pelo simples passar do tempo.
O concluir-se o contrário faria com que o citado art.74º perdesse todo o seu propósito, pois todo o trabalhador despedido, ainda que sem justa causa deixaria de ver garantidos os direitos intocáveis, que emanam directamente da lei ou CCT, deixando de haver protecção contra lapsos de escrita, ou outros, a que aquele trabalhador é completamente alheio.
Há na sentença a violação do art.74º do CPT que a torna nula tal como determina o art.668º al.d) do CPC..
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Admitido o recurso e corridos os vistos cumpre decidir.
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II
Matéria dada como provada e a ter em conta no presente recurso.
A Ré é uma empresa que se dedica ao transporte de mercadorias.
O Autor foi admitido ao serviço da Ré em 1966, mediante acordo verbal, para prestar o seu trabalho como motorista sob as ordens, direcção e fiscalização daquela.
O trabalho do Autor consistia na condução de um veículo pesado de mercadorias que, ao serviço da Ré, transportava mercadorias por todo o país.
O horário do Autor era de 2ª a 6ª feira das 8 às 17 horas, com um intervalo para almoço das 12 às 13 horas.
O Autor prestou trabalho à Ré como motorista até 31.1.04 e nesta data foi-lhe concedida a reforma, por idade, pela Segurança Social.
O Autor auferiu ao serviço da Ré as seguintes remunerações base mensais: 1992 – 85.000$00; 1993 – 85.000$00; 1994 – 85.000$00; 1995 – 85.000$00; 1996 – 100.000$00; 1997 – 100.000$00; 1998 - € 518,75; 1999 - € 548,68; 2000 – 698,32; 2001- € 698,32; 2002 – 700,00; 2003 – 700,00; 2004 – 700,00.
No ano de 2000, após a morte do Sr. D………., o qual dirigia a Ré, esta tinha perdido clientes e competitividade.
O Autor sempre teve autorização da Ré para levar as viaturas que conduzia ao serviço desta para casa, a partir da qual iniciava, por via de regra a jornada de trabalho.
O Autor, aos sábados executava tarefas particulares para o gerente da Ré, deslocando-se a Mogadouro na viatura da Ré que conduzia normalmente.
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III
Questão a apreciar.
Da aplicação do disposto no art.74º do CPT – condenação extra vel ultra petitum.
O Autor veio defender que por erro de cálculo indicou a quantia de € 5.362,03 a título de diuturnidades, erro que a Mma. Juiz a quo poderia ter sanado ao abrigo do art.74º do CPT, o que torna a sentença nula nos termos do art.668º nº1 al.d) do CPC..
A tal respeito diz-se na sentença o seguinte: (…) “ Consequentemente o Autor teria direito a receber € 11.714,64 a título de diuturnidades vencidas desde 1.2.82. Apesar disso, o Autor apenas peticionou a quantia de € 5.362,03, valor ao qual o Tribunal está limitado nos termos do disposto no art.661º nº1 do CPC, sendo certo que tendo cessado o contrato de trabalho entre as partes em 31.1.04 e com ele a indisponibilidade do direito à retribuição, não é aplicável o disposto pelo art.74º do CPT”….Que dizer?
Antes do demais cumpre referir que a questão colocada pelo apelante não se prende com a “nulidade de sentença” mas antes com o eventual erro de julgamento, a saber: se a Mma. Juiz a quo deveria ter condenado a Ré no pagamento da quantia de € 11.714,64 em vez da referida na petição inicial (de € 5.362,03). Vejamos então.
Nos termos do art.74º do CPT “o Juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do art.514º do CPC., de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”.
A redacção do art.74º não difere daquela que constava do art.69º do CPT de 1981, sendo que a aplicação daquele artigo passa pela questão de saber o que se deve entender por “preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”.
Segundo Leite Ferreira “preceitos inderrogáveis são apenas aqueles que o são absolutamente, isto é, que reconhecem um direito a cujo exercício o seu titular não pode renunciar, como será o caso do direito à indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional ou de direito ao salário na vigência do contrato. Se, em vez disso, os preceitos são inderrogáveis apenas no plano jurídico porque o exercício do direito que reconhecem está confiado à livre determinação da vontade das partes, a possibilidade de condenação ultra vel extra petitum tem de considerar-se excluída” – C.P.T. anotado, 4ª edição, p.355. Sobre tal questão, e no mesmo sentido, é a posição de Isabel Alexandre no seu trabalho “ Princípios Gerais do Processo do Trabalho” publicado nos Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, vol. III, pgs.389 e segts..
E se o art.74º do CPT tem a ver com a irrenunciabilidade de certos direitos, como parece que tem, a sua aplicação pelo Juiz passa necessariamente pela análise da existência daquela irrenunciabilidade ou não.
Ora, no caso dos autos, quando o Autor instaurou a presente acção já não se encontrava vinculado à Ré por qualquer contrato de trabalho. Tal significa que o direito ao salário (nele se incluem as diuturnidades), que era irrenunciável durante a vigência do contrato de trabalho, deixou de o ser com a cessação da relação laboral.
E se não se está perante direitos irrenunciáveis ou indisponíveis, então não é lícito ao Juiz usar da faculdade prevista no art.74º do CPT.
Acresce que o disposto no citado artigo não visa reparar erros de cálculo. Mas mesmo que assim não se entenda certo é que no caso não se encontra qualquer erro de cálculo na petição, face ao teor dos seus arts. 11 e 12 (nestes artigos o Autor fez com minúcia o cálculo das quantias que no seu entender a Ré lhe devia a título de diuturnidades).
Por isso, não merece qualquer reparo a sentença recorrida ao ter condenado a Ré, a título de diuturnidades, na quantia pedida pelo Autor na petição inicial.
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Termos em que se julga a apelação improcedente e se confirma a sentença recorrida.
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Custas pelo apelante.
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Porto, 09 DE Outubro de 2006
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
Domingos José de Morais