Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0120083
Nº Convencional: JTRP00029513
Relator: AFONSO CORREIA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
ACÇÕES NOMINATIVAS
TRANSMISSÃO DE TÍTULO
FORMALIDADES
RESPOSTAS AOS QUESITOS
SIMULAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE
FALTA DE FORMA LEGAL
Nº do Documento: RP200103200120083
Data do Acordão: 03/20/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 4 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 853/98-3S
Data Dec. Recorrida: 10/02/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Área Temática: DIR COM - SOC COM.
DIR CIV - TEORIA GERAL.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: DL 408/82 DE 1982/09/29 ART1 ART4 N1 ART26.
CSC86 ART5 ART331 ART337.
CPC95 ART646 N4 ART655 N2 ART659 N3.
Sumário: I - O regime de transmissão de acções resulta, hoje, da conjugação dos artigos 326 n.1 e 336 n.1 do Código das Sociedades Comerciais com o Decreto-Lei n.408/82, de 20 de Setembro (regulador do registo, depósito e transmissão de acções).
II - Assim, a transmissão entre vivos, de acções nominativas fora da bolsa só é válida se se tiver utilizado, em quadruplicado, a declaração para registo de modelo aprovado, com as assinaturas das partes reconhecidas por notário no original, e se, além disso, houver sido aposta no título a declaração do transmitente e nele lavrado o pertence.
III - As formalidades indicadas são essenciais, pelo que um mero negócio de transferência a que falte alguma delas não tem efeito translativo da propriedade sobre tais acções nominativas nem eficácia legitimadora do exercício dos direitos sociais que elas titulam.
IV - Em consequência, não opera a transmissão fora de bolsa de acções nominativas um negócio em que, apesar do preenchimento das declarações do "modelo 5", se verifique que nesses títulos não foi aposta a declaração do transmitente nem lavrado o pertence.
V - É considerada inexistente qualquer resposta sobre factos que só possam ser provados por documentos ou por forma exigida por lei.
VI - O juiz não pode tomar em consideração as respostas dadas aos quesitos sobre negócio simulado com base na prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores.
VII - O abuso de direito só é aplicável em casos excepcionais, para afastar a nulidade decorrente da falta de forma legalmente prescrita, designadamente quando não estiverem em causa interesses de ordem pública que imponham determinada forma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Acordam na Relação do Porto

F....., casado, administrador de empresas, residente na R. ....., no ....., intentou acção especial de apresentação de documentos contra R....., casado, administrador de empresas, residente na Av. ....., no ....., pedindo a designação de dia, hora e local para o requerido apresentar todas as actas das assembleias gerais da actual E.T.E., Lda. (ex-S.....), relativamente aos anos de 1985 a 1997, para apurar como ocorreu a transformação da sociedade, bem como cópia das convocatórias para aquelas assembleias gerais, respeitantes ao Autor, depois da transformação, ainda que recebidas pelo requerido como mandatário do A., e, ainda, os balanços relativos aos últimos treze anos.
Para tanto e em síntese, alegou o requerente que, por instrumento de 3 de Dezembro de 1985, nomeou o requerido seu representante, na qualidade de accionista, para intervir nas assembleias gerais da E.T.E., S.....; que esta empresa integra com outras empresas um "conglomerado" de situações altamente lucrativas, porquanto são credoras umas de outras, participadas umas por outras, sediadas umas noutras e em conjunto lideradas pelo requerido; que, apesar disso, foi apresentado, em 1992, um plano de recuperação de empresas; que quando o requerente pretendeu tomar conhecimento do andamento dos negócios e das deliberações tomadas, veio a ser informado, em Julho de 1997, que a sociedade de que era accionista se transformara em sociedade por quotas já desde 30 de Outubro de 1986, tendo a sua participação de 409 acções, no valor de 409000$00, sido convertida numa quota de 1.269. 000$00; que o A. nunca foi convocado para intervir nas assembleias, ordinárias ou extraordinárias, da sociedade por quotas; que, apesar de solicitações escritas e telefónicas, a sociedade não prestou informações do que se passara durante os 13 anos decorridos; que requereu notificações judiciais avulsas do requerido, gerente da sociedade, em 11 e 25 de Fevereiro de 1998, mas este não apresentou os documentos solicitados; e que o requerido, como mandatário do A., tem a obrigação de lhe prestar as informações que ele peça, comunicar a execução do mandato e prestar contas, nos termos do art. 1161º do Cód. Civil.
O requerido deduziu contestação, na qual e em síntese, alegou que o ora requerente se apresentou na assembleia geral da E.T.E., S....., efectuada em 29 de Março de 1985 e votou contrariamente à aprovação do relatório, balanço e contas relativas ao exercício de 1984, tendo posteriormente instaurado no Tribunal de ..... um acção de impugnação das respectivas deliberações sociais; que, entretanto, se chegou, nessa acção, a um acordo, em 27/11/85, no qual o requerente reconheceu serem válidas e eficazes as deliberações que impugnara; que, subjacente a esse acordo, houve um outro, segundo o qual o requerente vendeu ao requerido, por 70.000 contos, todas as acções próprias e de familiares, advogados e consultor, detidas, quer na E.T.E., S....., quer na F.T.O.F., S.A.; que, por essa ocasião, o A. entregou as acções ou passou os necessários documentos; que, porém e relativamente a parte das acções da E.T.E., o A. invocou um compromisso de honra que o impedia de tornar pública a transmissão das posições sociais enquanto fosse vivo o accionista a quem adquirira os títulos; que, a fim de ultrapassar essa dificuldade, os advogados do requerente e requerido gizaram uma procuração do requerente ao requerido, conferindo a este, "de forma irrevogável e no interesse do próprio mandatário, poderes especiais para o representar como accionista nas assembleias gerais da E.T.E., S....., como melhor entender"; que é justamente dessa procuração que o requerente se pretende agora fazer valer, quando na altura até se comprometera, sob palavra de honra, a não mais comparecer em qualquer assembleia daquela sociedade, o que não deixou de respeitar durante os últimos 13 anos; que, por isso, só formalmente o requerente continua a deter participação no capital da sociedade, constituindo a sua pretensão um abuso de direito.
Instruída e discutida a causa, o Tribunal recorrido entendeu provados, com interesse para a decisão, os seguintes
factos [Ver, a fs. 9, alteração dos n.os 8 e 9 e acrescentamento de outra factualidade]:
1 - Em 3 de Dezembro de 1985, o requerente outorgou a "procuração" junta a fs. 293, constituindo o requerido seu procurador e conferindo-lhe, de forma irrevogável e no interesse do próprio mandatário, poderes especiais para o representar como accionista nas assembleias gerais da E.T.E., S....., a fim de nelas discutir e votar como melhor entender.
2 - A referida empresa integra um "conglomerado" com outras sociedades, como a F.T.O.F., S.A., a F.T.O.F.-C., Lda., e a T.C.T., Lda., detendo umas participações, créditos e instalações noutras.
3 - As sociedades do grupo apresentaram-se, em 1992, a um processo especial de recuperação, em virtude de diversas e avultadas dívidas, relacionadas a fs. 19 a 30 (E.T.E.), a fs. 33 a 53 (F.T.O.F., S.A.) e a fs. 55 a 62 (F.T.O.F.C., Lda).
4 - A E.T.E., S....., foi, por escritura de 30/10/86, transformada em sociedade por quotas, tendo as 409 acções detidas pelo requerente ficado convertidas numa quota de 1.269.000$00.
5 - Em 1985, o ora requerente intentou uma acção, no Tribunal de ....., a impugnar deliberações sociais da E.T.E., S....., mas tal acção veio a terminar por acordo, em 27/11/85, no qual o requerente reconheceu serem válidas e eficazes as deliberações que impugnara.
6 - Subjacente a esse acordo, houve um outro, segundo o qual o requerente vendeu ao requerido, pelo valor global de 70.000 contos, todas as acções detidas no capital, quer da E.T.E., S....., quer da F.T.O.F., S.A..
7 - Nesse acordo foram abrangidas, não só as acções de que A. era titular, mas também as de que eram possuidores ou se encontravam em nome de familiares, advogados e consultor.
8 - Por essa mesma ocasião, o A. entregou as acções correspondentes a todas essas participações sociais ou passou os necessários documentos.
9 - Porém e relativamente a parte das acções da E.T.E., S...., o requerente invocou um compromisso de honra que o impedia de tornar pública a transmissão das acções, enquanto fosse vivo o accionista a quem adquirira os títulos.
10 - Para ultrapassar essa dificuldade, os então advogados do requerente e requerido minutaram a procuração irrevogável que o requerente veio a outorgar em 3/12/85.
11 - Na mesma ocasião, o A. comprometeu-se, sob palavra de honra, a não mais comparecer em qualquer assembleia daquela sociedade, o que não tem deixado de cumprir durante os últimos anos.
12 - Concomitantemente, o A. deixou de ser convocado para intervir nas assembleias, ordinárias ou extraordinárias, da sociedade.
13 - Porém, desde fins de 1997, o requerente passou a solicitar informações e elementos sobre a sobre as assembleias, convocatórias e balanços da sociedade, conforme cartas documentadas a fs. 65 a 68; e em 11 e 25 Fevereiro de 1998, solicitou notificações judiciais avulsas do requerido, documentadas a fs. 7 a 16, para exibir as actas das assembleias gerais da actual E.T.E., Lda., relativamente aos anos de 1986 a 1997, cópias das convocatórias do A. para as assembleias, ainda que recebidas pelo requerido como seu mandatário, e dos balanços relativos aos últimos cinco anos.
14 - Tais solicitações não têm sido satisfeitas, quer pela sociedade, quer pelo requerido.
Depois de fundamentar esta decisão na análise dos documentos juntos e nos depoimentos de parte e testemunhais prestados, com especial destaque para o depoimento da testemunha Dr. D...... que foi o advogado do requerido que, em conjunto com o do requerente, minutaram a procuração em causa, tendo explicado os antecedentes do acordo de fins de 1985, o teor desse acordo e que a procuração foi a forma encontrada para transmitir a posição social do requerente sem que isso chegasse ao conhecimento de um anterior accionista, o que o requerente não pretendia, tudo tendo sido feito no pressuposto de que, com a morte do anterior accionista, o requerente cederia definitivamente a sua posição social ao requerido, mais deixou dito o Ex.mo Juiz:
A circunstância de, depois do acordo de 27/11/85, aparecerem acções da E.T.E. detidas por empresas dominadas pelo requerente, conforme se alcança dos documentos juntos por este em audiência de julgamento, não invalida a anterior prova, já que se trata de acções ao portador, sendo a identidade do respectivo portador eventualmente desconhecida do requerido, e já que tais acções aparecem depositadas numa instituição bancária depois do sobredito acordo, conforme resulta dos documentos igualmente juntos, em resposta, pelo requerido na última sessão de julgamento e referente às sociedades S..... e T..... .
Com base nestes factos, o Ex.mo Juiz julgou a acção de todo improcedente com um triplo fundamento:
- estamos perante uma procuração, negócio jurídico unilateral, e não face a um mandato, negócio jurídico bilateral que envolve obrigações para a parte aceitante, o mandatário, vinculação do requerido que aqui não ocorreu, nem sequer por forma tácita;
- ainda que verdadeiro mandato existisse era ele nulo por simulado, visto que a declaração negocial expressa pelo requerente na procuração passada a favor do requerido não corresponde à real vontade das partes.
O que o requerente e requerido visaram, com a procuração irrevogável junta aos autos, foi: o primeiro, vender as acções que detinha na E.T.E.; e o segundo, comprar essas mesmas acções.
Apenas optaram por declarar algo diverso para que o accionista de quem o requerente adquirira os títulos não soubesse da venda ao ora requerido.
É certo que o reconhecimento dessa nulidade depara, no caso dos autos, com a limitação probatória do art. 394º, nº 1 e 2, do Cód. Civil, pois a procuração em causa é um documento particular, autenticado por notário, e, como tal, a prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado (a compra e venda das acções) não poderia ser obtida por testemunhas.
Mas, tal limitação encontra-se prevista para a hipótese de serem os próprios simuladores quem vem invocar a simulação, quando no caso é o tribunal que dela está a conhecer oficiosamente. Por outro lado, existem elementos documentais que apontam no sentido da simulação, designadamente o registo de outras acções a favor do requerido após o acordo de 27/11/85, conforme se alcança de fs. 286. E, por último, a transmissão de acções não depende de documento autentico ou autenticado, quando a referida limitação probatória se encontra prevista para negócios dependentes dessa forma, como meio de defender as exigências desta.
- ainda que não houvesse ou não se declarasse a simulação, sempre a acção improcederia por abuso de direito, pois os factos apurados apontam no sentido desta excepção peremptória na sua principal modalidade, o venire contra factum proprium.
Inconformado com o assim decidido, apelou o requerente a pugnar pela revogação da sentença, depois de devidamente corrigido manifesto erro de escrita na fundamentação e alterada parte da matéria de facto, com os fundamentos constantes das doutas alegações que coroou com as seguintes
conclusões
a) - Há erro manifesto, ostensivo, quando se diz, em sede de facto que, "as acções aparecem depositadas numa instituição bancária depois do sobredito acordo, conforme RESULTA EM DOCUMENTOS IGUALMENTE JUNTOS pelo requerido" (sic).
É que, dos próprios documentos em que assentou a douta conclusão, ressalta que, pelo menos a SARC....., era detentora de acções, depositadas em seu nome, já aquando da assembleia geral de 21 de Junho de 1985, ou seja bem antes do acordo, que é de NOVEMBRO seguinte, que teve depositadas em seu nome, acções da E.T.E., desde muito antes até muito depois do acordo.
b) - Apesar de se dar como assente que, quanto a entidades depositantes, de pelo menos 1210 acções, o requerente era só titular de posição dominante nas sociedades que as depositaram e mantiveram no seu activo, e não provado que delas fosse representante, disse se que o mesmo fizera entrega de um total de 1269 acções, sem "traditio" nem declaração de transmissão.
Há, pois, erro na valoração da matéria de facto, pelo que, e porque o processo fornece todos os elementos que permitem sindicar a convicção do douto Tribunal, deve ser alterada a decisão de facto, nesta parte.
c) - Atenta a ratio do artigo 394º, nº 2 do C. Civil e porque não se trata, no caso de acto em fraude à lei, nem ilícito (proibido), o interesse ressalvado é o de terceiro - quanto à prova!
(Rev. L. J. 107, pág. 310 e segs., como C. Civil Anot., Vol. I, nota ao artigo 394º e já Prof. Beleza dos Santos, op. citada acima em 41. destas alegações).
Não pode, pois, o Tribunal ser, para este fim, um terceiro.
d) - Considerar que o Tribunal pode, com base em presunção, ultrapassar a limitação legal de prova é confundir "ónus de iniciativa de prova" e "ónus de prova" - autor citado acima em 36 destas alegações.
Porque a presunção não elimina o ónus da prova - Manual de Proc. Civil , 2ª ed., pág. 553, fará errada interpretação e aplicação dos artigos 342 do C.C. e 659, nº 2, do C.P.C., como (do) dec-lei 408/82, de 29 de Setembro, basear-se em presunção.
e) - Face aos dados de facto quanto a tais acções, nominativas e ao portador, tanto no que respeita à E.T.E. como ao requerente, a gestão das mesmas era negócio alheio ou, quando menos, "ao mesmo tempo próprio e alheio", o que obriga à prestação de contas de que, aliás a procuração não isentava.
f) - Como o pedido era de prestação de contas, fez errada aplicação do regime dos artigos 1161, b) e d), como 573 do C.C., a douta sentença, pelo que deve ser revogada.
Em contra-alegações não menos doutas, o Recorrido entende não haver qualquer erro de escrita na fundamentação pois só às sociedades S..... e T..... se referia o Ex.mo Juiz, como se vê da transcrição integral desse passo; não há que alterar a matéria de facto e improcede o mais alegado, sendo certo que o recorrente ter-se-á conformado com a decisão sobre o abuso de direito porque as suas conclusões são, nessa parte, completamente omissas.
Juntou fotocópia da lista de presenças dos senhores accionistas na assembleia ordinária da E.T.E., S....., de 26.3.86, para prova de que nunca o recorrente ou as sociedades T..... e S..... enviaram as cartas de fs. 341 e 342 como resulta do facto de não estarem presentes na Assembleia de 26 de Março de 1986.
A decisão do recurso, delimitada com está pelas conclusões do Recorrente, salvo no tocante a questões de conhecimento oficioso, impõe-nos e pressupõe o conhecimento das seguintes questões:
I - Fixação da matéria de facto, com correcção de alegado erro ostensivo na fundamentação e alteração da matéria de facto na parte em que se decidiu ter o Requerente vendido e entregue 1269 acções da E.T.E., sem traditio nem declaração de transmissão - conclusões a) e b);
II - Se o Tribunal podia julgar provada a simulação e dela conhecer oficiosamente - conclusões c) e d);
III - Se a matéria provada determina a procedência da acção e consequente revogação do decidido - conclusões e) e f).
Resumindo as posições das Partes, temos que o Requerente fundou o seu pedido de informações e apresentação de documentos no facto de o Requerido ser seu mandatário nos termos da procuração junta e, apesar de repetidamente instado, ter vindo a recusar as pedidas informações; entende o Requerido não ter que prestar nenhumas informações porque só formalmente o Requerente é sócio da sociedade, pois já em Novembro de 1985 vendeu ao Requerido, por 70 mil contos, todas as posições sociais - dele e doutorem - que detinha na E.T.E., S....., agora L.da, a que as informações se referem. A procuração em causa foi a forma encontrada para, cumprindo exigência do vendedor, manter sigilosa a venda de algumas participações sociais enquanto vivo fosse o transmitente dessas acções para o Requerido vendedor.
O agora pedido pelo Requerente integra claro abuso de direito porque, tendo ele intervindo no negócio e cumprido o compromisso de não mais aparecer nas assembleias da sociedade, vem agora, decorridos mais de uma dúzia de anos, exercer um direito que sabe não lhe assistir.
Já acima se indicou a súmula da tríplice fundamentação de improcedência da acção. Por agora e quanto ao
I - erro ostensivo na fundamentação de facto diremos que não ocorre tal erro porque, como se vê da leitura de todo o último parágrafo de fs. 357, referia- -se o Ex.mo Juiz, apenas, às sociedades S..... e T..... . Só as estas duas sociedades se reportam os documentos juntos pelo Requerido na última sessão de julgamento (fs. 347 e 348), deles se vendo que no dossier de títulos destas duas sociedades aparecem depositadas, no Banco C, 50 acções ao portador desde 28.2.86 e 760 acções, igualmente ao portador e também da E.T.E., S......, desde 28.11.85.
A referência às acções depositadas por Produtos Sarc....., L.da, aparece no documento de fs. 344, junto na sessão da audiência de julgamento de 6.7.2000, e desse documento se vê que 50 acções ao portador, da ETE, S....., estavam depositadas em nome da Sarc....., L.da, desde 29.5.85, cerca de seis meses antes do questionado acordo.
Todas estas 860 (760+50+50) acções continuaram depositadas em nome destas sociedades desde aquelas datas, no mesmo Banco até 15.12.97 e no Banco B - para onde foram transferidas - desde 15.12.97, tendo regressado ao Banco C em 4.8.98.
Em vez de erro ostensivo na fundamentação não se atendeu aos documentos juntos naquela sessão de 6 de Julho, três cartas (fs. 341 a 343) dirigidas pelo Credit F..... ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral da E.T.E., a testemunha Dr. V....., em que aquele Banco informava o Ex.mo Senhor Presidente da Assembleia Geral da E.T.E., S....., para efeitos das Assembleias Gerais Ordinária e Extraordinária, a realizar em 26 de Março de 1986, que as sociedades S....., T...... e Produtos Sarc..... tinham depositadas nas caixas do Banco, respectivamente, 760, 50 e 50 acções ao portador daquela S..... .
Depois de apreciar estes documentos naquela sessão da audiência, juntou o Requerido, com a sua alegação, um lista de presenças nessa assembleia de 26 de Março de 1986, lista de que não constam nem o Requerente nem qualquer daquelas sociedades (ou seus representantes), desta ausência concluindo que aquelas cartas de fs. 341 a 343 jamais foram enviadas.
Afigura-se-nos fora de dúvida que esta lista de presenças prova, apenas, que na dita assembleia estiveram presentes as pessoas que dela constam e que aquelas sociedades e o Requerente não compareceram. Não prova, de forma nenhuma, que as cartas não tenham sido remetidas.
Em suma e neste ponto: pode ter havido erro na apreciação da prova, mas inexiste o apontado erro - e, muito menos, ostensivo - na fundamentação. Pelo que se desatende o concluído em a).
Pretende o Recorrente se altere a decisão sobre a matéria de facto na parte em que se deu como provado ter ele feito entrega de um total de 1269 acções, sem traditio nem declaração de transmissão.
A matéria em crise consta dos números 5 a 10 dos factos acima e que, para mais fácil análise, aqui se reproduz:
5 - Em 1985, o ora requerente intentou uma acção, no Tribunal de Vila Nova de ....., a impugnar deliberações sociais da E.T.E., S....., mas tal acção veio a terminar por acordo, em 27/11/85, no qual o requerente reconheceu serem válidas e eficazes as deliberações que impugnara.
6 - Subjacente a esse acordo, houve um outro, segundo o qual o requerente vendeu ao requerido, pelo valor global de 70.000 contos, todas as acções detidas no capital, quer da E.T.E., S....., quer da F.T.O.F., S.A..
7 - Nesse acordo foram abrangidas, não só as acções de que A. era titular, mas também as de que eram possuidores ou se encontravam em nome de familiares, advogados e consultor.
8 - Por essa mesma ocasião, o A. entregou as acções correspondentes a todas essas participações sociais ou passou os necessários documentos.
9 - Porém e relativamente a parte das acções da E.T.E., S....., o requerente invocou um compromisso de honra que o impedia de tornar pública a transmissão das acções, enquanto fosse vivo o accionista a quem adquirira os títulos.
10 - Para ultrapassar essa dificuldade, os então advogados do requerente e requerido minutaram a procuração irrevogável que o requerente veio a outorgar em 3/12/85.
Lendo atentamente estes factos, sobretudo os constantes dos n.os 6 a 9, vemos que neles se contêm dois negócios distintos:
- o de compra e venda, por 70 mil contos, de todas as acções detidas, directa ou indirectamente, pelo Requerente no capital da F.T.O.F., SA, e E.T.E., S....., com entrega das acções ou assinatura dos documentos necessários no tocante às acções da F.T.O.F., SA, e parte das acções da E.T.E., S.....;
- outorga da procuração irrevogável em substituição da entrega das acções e da assinatura dos documentos necessários relativamente a outra parte das acções da E.T.E., S....., em relação às quais o vendedor invocou compromisso de honra que o impedia de tornar pública a alienação das acções enquanto vivo fosse o accionista que lhas vendera.
Em parte alguma ficou escrito que o Requerente fez entrega de um total de 1269 acções da E.T.E., S....., (única sociedade em questão) ou assinou os necessários documentos.
Convém, no entanto, precisar os factos relatados em 8 e 9, em relação aos quais os autos fornecem elementos bastantes e que, por isso e ao abrigo do art. 712º, nº 1, b), do CPC, este Tribunal pode alterar a decisão sobre a respectiva matéria de facto.
Em 17 de Setembro de 1999 (fs. 264) o Ex.mo Juiz mandou notificar o Requerido para comprovar documentalmente a «venda de participação social» a que se reporta no art. 56º da contestação apresentada, já que tais factos carecem de prova autêntica; prazo: 15 dias. A venda de participação social referida em 56º da contestação era precisamente a venda pelo Requerente ao Requerido, em Novembro de 1985, da posição de que ele (Requerente) era detentor no capital da E.T.E..
Na sequência desta notificação, veio o Requerido (fs. 277 e ss) explicar detalhadamente o negócio havido.
Do afirmado e confessado nesse requerimento de 12 de Outubro de 1998 e dos documentos juntos seis dias depois (fs. 282 a 287) resulta provado que:
- O Requerente participou na assembleia da E.T.E., de 21.6.85, como titular de 1319 acções - fs. 282;
- Dessas 1319 acções, 459 estavam registadas em nome do Requerente nos livros da sociedade (fs. 284), por declarações apresentadas em 7 e 12 de Março de 1985, sendo 50 sob o nº 19 (7.3.85), 403 sob o nº 20 (12.3.85) e seis sob o nº 21 (também com base em declaração de 12.3.85 e registo em 26.3.85) - fs. 284.
- As 50 acções nominativas registadas sob o nº 19 ficaram registadas em nome do Requerido, agora sob o nº 22, com base em declaração apresentada em 6.12.85 - fs. 286.
- As sociedades Sarc....., T..... e S....., todas dominadas pelo Requerente, têm depositadas em seu nome, no Banco C, 50, 50 e 760 acções ao portador, da E.T.E., S....., desde 29.5.85, 28.2.86 e 28.11.86, respectivamente - fs. 344, 347 e 348.
- O Requerente jamais assinou qualquer documento referente a transmissão das 409 acções nominativas e ou das 860 acções ao portador nem entregou qualquer destas 860 acções ao portador,
- continuando aquelas registadas em seu nome e estas depositadas nos termos agora vistos - fs. 278 e vº.
Por tudo se decide precisar a factualidade levada aos n.os 8 e 9 que ficam assim redigidos:
8 - Por essa mesma ocasião, o A. entregou as acções correspondentes a todas essas participações sociais ou passou os necessários documentos,
9 - salvo quanto a 409 acções nominativas - das 459 registadas em seu nome - e 860 acções ao portador da E.T.E, S....., relativamente às quais o requerente invocou um compromisso de honra que o impedia de tornar pública a transmissão das acções, enquanto fosse vivo o accionista a quem adquirira os títulos.
E acrescenta-se àquela factualidade a seguinte:
15 - O Requerente participou na assembleia da E.T.E., de 21.6.85, como titular de 1319 acções - fs. 282;
16 - Dessas 1319 acções, 459 estavam registadas em nome do Requerente nos livros da sociedade (fs. 284), por declarações apresentadas em 7 e 12 de Março de 1985, sendo 50 sob o nº 19 (7.3.85), 403 sob o nº 20 (12.3.85) e seis sob o nº 21 (também com base em declaração de 12.3.85 e registo em 26.3.85) - fs. 284.
17 - As 50 acções nominativas registadas sob o nº 19 ficaram registadas em nome do Requerido, agora sob o nº 22, com base em declaração apresentada em 6.12.85 - fs. 286.
18 - As sociedades Sarc....., T..... e S....., todas dominadas pelo Requerente, têm depositadas em seu nome, no Banco C, 50, 50 e 760 acções ao portador, da E.T.E., S....., desde 29.5.85, 28.2.86 e 28.11.86, respectivamente - fs. 344, 347 e 348.
19 - O Requerente jamais assinou qualquer documento referente a transmissão das 409 acções nominativas e ou das 860 acções ao portador nem entregou qualquer destas 860 acções ao portador,
20 - continuando aquelas registadas em seu nome e estas depositadas em nome daquelas três sociedades, nos termos agora vistos - fs. 278 e vº.
Pelo que, sem prejuízo do que se dirá sobre prova legal, temos por definitivamente assente a seguinte matéria de facto:
1 - Em 3 de Dezembro de 1985, o requerente outorgou a "procuração" junta a fs. 293, constituindo o requerido seu procurador e conferindo-lhe, de forma irrevogável e no interesse do próprio mandatário, poderes especiais para o representar como accionista nas assembleias gerais da E.T.E., S....., a fim de nelas discutir e votar como melhor entender.
2 - A referida empresa integra um "conglomerado" com outras sociedades, como a F.T.O.F., S.A., a F.T.O.F.C., Lda., e a T.C.T., Lda., detendo umas participações, créditos e instalações noutras.
3 - As sociedades do grupo apresentaram-se, em 1992, a um processo especial de recuperação, em virtude de diversas e avultadas dívidas, relacionadas a fs. 19 a 30 (E.T.E.), a fs. 33 a 53 (F.T.O.F., S.A.) e a fs. 55 a 62 (F.T.O.F.C., Lda).
4 - A E.T.E., S....., foi, por escritura de 30/10/86, transformada em sociedade por quotas, tendo as 409 acções detidas pelo requerente ficado convertidas numa quota de 1.269.000$00.
5 - Em 1985, o ora requerente intentou uma acção, no Tribunal de Vila Nova de ....., a impugnar deliberações sociais da E.T.E., S....., mas tal acção veio a terminar por acordo, em 27/11/85, no qual o requerente reconheceu serem válidas e eficazes as deliberações que impugnara.
6 - Subjacente a esse acordo, houve um outro, segundo o qual o requerente vendeu ao requerido, pelo valor global de 70.000 contos, todas as acções detidas no capital, quer da E.T.E., S....., quer da F.T.O.F., S.A..
7 - Nesse acordo foram abrangidas, não só as acções de que A. era titular, mas também as de que eram possuidores ou se encontravam em nome de familiares, advogados e consultor.
8 - Por essa mesma ocasião, o A. entregou as acções correspondentes a todas essas participações sociais ou passou os necessários documentos,
9 - salvo quanto a 409 acções nominativas - das 459 registadas em seu nome - e 860 acções ao portador da E.T.E., S....., relativamente às quais o requerente invocou um compromisso de honra que o impedia de tornar pública a transmissão das acções, enquanto fosse vivo o accionista a quem adquirira os títulos.
10 - Para ultrapassar essa dificuldade, os então advogados do requerente e requerido minutaram a procuração irrevogável que o requerente veio a outorgar em 3/12/85.
11 - Na mesma ocasião, o A. comprometeu-se, sob palavra de honra, a não mais comparecer em qualquer assembleia daquela sociedade, o que não tem deixado de cumprir durante os últimos anos.
12 - Concomitantemente, o A. deixou de ser convocado para intervir nas assembleias, ordinárias ou extraordinárias, da sociedade.
13 - Porém, desde fins de 1997, o requerente passou a solicitar informações e elementos sobre a sobre as assembleias, convocatórias e balanços da sociedade, conforme cartas documentadas a fs. 65 a 68; e em 11 e 25 Fevereiro de 1998, solicitou notificações judiciais avulsas do requerido, documentadas a fs. 7 a 16, para exibir as actas das assembleias gerais da actual E.T.E., Lda., relativamente aos anos de 1986 a 1997, cópias das convocatórias do A. para as assembleias, ainda que recebidas pelo requerido como seu mandatário, e dos balanços relativos aos últimos cinco anos.
14 - Tais solicitações não têm sido satisfeitas, quer pela sociedade, quer pelo requerido.
15 - O Requerente participou na assembleia da E.T.E., de 21.6.85, como titular de 1319 acções - fs. 282;
16 - Dessas 1319 acções, 459 estavam registadas em nome do Requerente nos livros da sociedade (fs. 284), por declarações apresentadas em 7 e 12 de Março de 1985, sendo 50 sob o nº 19 (7.3.85), 403 sob o nº 20 (12.3.85) e seis sob o nº 21 (também com base em declaração de 12.3.85 e registo em 26.3.85) - fs. 284.
17 - As 50 acções nominativas registadas sob o nº 19 ficaram registadas em nome do Requerido, agora sob o nº 22, com base em declaração apresentada em 6.12.85 - fs. 286.
18 - As sociedades Sarc....., T..... e S....., todas dominadas pelo Requerente, têm depositadas em seu nome, no Banco C, 50, 50 e 760 acções ao portador, da E.T.E., S....., desde 29.5.85, 28.2.86 e 28.11.86, respectivamente - fs. 344, 347 e 348.
19 - O Requerente jamais assinou qualquer documento referente a transmissão das 409 acções nominativas e ou das 860 acções ao portador nem entregou qualquer destas 860 acções ao portador,
20 - continuando aquelas registadas em seu nome e estas depositadas nos termos agora vistos - fs. 278 e vº.
Termos em que se acolhe o concluído em b).
Aplicando a estes factos o
Direito
Antes de entrarmos no conhecimento da segunda questão - e porque aí assentou o primeiro fundamento da decisão recorrida - diremos que a procuração é o negócio jurídico unilateral pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes de representativos - 262º, nº 1, CC.
Estabelecendo a distinção entre procuração e mandato, diz o Prof. Vaz Serra, Rev. Leg. Jur., 112,222 (e, também, no Ano 109,125), que a procuração é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa confere a outra poderes de representação, isto é, para, em nome dela, concluir um ou mais negócios jurídicos (art. 262º, nº 1); o mandato, diversamente, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (art. 1.157). A procuração é, pois, o acto pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação, tendo por consequência que, se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, o negócio produz os seus efeitos em relação ao representado. O mandato é independente da procuração, podendo ser com representação (arts. 1.178º e segs.) ou sem ela (arts. 1.180 e segs.). A procuração, salvo disposição legal em contrário, tem de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art. 262º nº 2), ao passo que o mandato não está sujeito a forma especial, podendo, por isso, ser concluído livremente, nos termos gerais (C.C., art. 219º) [Col. Jur. (STJ) 2000-I-115].
Como resulta do art. 258º do CC, a representação traduz-se na prática de um acto jurídico em nome de outrem, para na esfera desse outrem se produzirem os respectivos efeitos. A representação voluntária - conceito diferente da representação orgânica ou estatutária e da representação legal - é a que se funda no acto voluntário atribuidor de poderes representativos, a procuração [Mota Pinto, Teoria Geral, 1999, 387 e 535 e ss; H. Horster, Teoria geral, 1992, 483 e ss].
O mandatário, pessoa que aceitou - que se obrigou - a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (1157º), pode ser (1178º) ou não (1180º) representante do mandante. Mas se o for, como acontece quando celebra os negócios jurídicos para os quais lhe foram, pela procuração, atribuídos poderes representativos, não deixa de ser mandatário e, como tal, de ser titular dos direitos e obrigações do mandatário-representante (1161º e 1178º).
Se é certo que o mandato (negócio jurídico bilateral, contrato) impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta de outrem e a procuração (acto ou negócio jurídico unilateral) confere o poder de os celebrar [P. Lima - A. Varela, Anotado, II, nota 2 ao art. 1157º, citando Galvão Teles], não é menos verdade que os negócios celebrados pelo mandatário-representante produzem os seus efeitos na esfera jurídica do representado em nome e por conta de quem o mandatário com poderes representativos - atribuídos pela procuração que aceitou e usou - deve agir (art. 1178º, n.os 1 e 2).
Nos casos de mandato representativo são de aplicar conjuntamente as normas da representação e do mandato - 1178º, nº 1 - porque a procuração, uma vez aceita, obriga o mandatário-procurador, em princípio, a celebrar o acto em nome do mandante [ibidem, nota 3 ao art. 1178º].
A obrigação de prestar contas é uma obrigação de informação. Esta existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias - artigo 573º do CC.
Segundo a formulação de Alberto dos Reis (Processos especiais, vol. I, pág. 303), «quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses». Ou, como escreve o Prof. Vaz Serra, citado no acórdão deste Supremo Tribunal, de 28 de Janeiro de 1975 (Boletim, nº 243, pág. 265): a obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios».
Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que, no dizer do mesmo ilustre Professor (Scientia Iuridica, vol. XVIII, pág. 115), «importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte» [BMJ 340-401].
II - Simulação, transmissão de acções e sua prova.
De acordo com a doutrina tradicional, o art. 240º, nº 1, do CC, fixa o conceito de negócio simulado: se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real, o negócio diz-se simulado.
Desta norma concluem os Autores serem três e de verificação simultânea os elementos integradores do conceito de negócio simulado: intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (que não exclui a simulação nos negócios unilaterais - 2200º CC) e o intuito de enganar terceiros.
A simulação é absoluta quando as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio; Na simulação relativa as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso. Por detrás do negócio simulado ou aparente ou fictício ou ostensivo há um negócio dissimulado ou real ou latente ou oculto («colorem habet, substantiam vero alteram ») [Mota Pinto, op. cit., 473].
Com efeito e nos termos do nº 1 do art. 241º do CC, quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
Porém, continua o nº 2 do mesmo art. 241º, se o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei. Por isso se decidiu já que para a existência da simulação relativa se deve juntar aos três requisitos da simulação absoluta um quarto, a existência (legal, formal) do negócio dissimulado [Col. Jur. 97-III-210 e loc. Cit].
A simulação relativa pode referir-se aos sujeitos (interposição fictícia de pessoas ou supressão de um sujeito real) ou versar sobre o conteúdo, a natureza ou o valor do negócio, tendo em vista, nesta espécie de simulação relativa e mais frequentemente, afastar ilegitimidades ou indisponibilidades, dificultar o exercício de direito de preferência ou atenuar a carga fiscal.
Da simulação relativa objectiva é de distinguir o chamado negócio indirecto.
Segundo Manuel de Andrade, fala-se em negócio indirecto face a uma situação que se traduz em um negócio típico (...) cujos efeitos são realmente queridos pelas partes, ser concluído por um motivo ou para um escopo ulterior diverso dos que estão de acordo com a função característica (causa) desse tipo negocial e correspondente a outro negócio típico ou tipificável (...). É o caso, por exemplo, da chamada venda para garantia... As partes querem verdadeiramente o negócio-meio, com os efeitos que lhe são próprios, embora só para conseguirem através dele um resultado prático diverso do que lhe é normal.
O negócio indirecto, distinto assim do negócio simulado, não está, enquanto tal, ameaçado de qualquer forma de nulidade. Todos são concordes neste ponto. O regime aplicável à situação será o do negócio adoptado - e só haverá lugar a invalidade se esta resultar de tal regime -, não relevando nesta sede a circunstância de o negócio ter sido utilizado para finalidades diversas das que normalmente presidem ao seu emprego. Na verdade, o Direito não veda aos particulares servirem-se dos negócios que configurou como típicos para fins práticos diversos dos que correspondem à função de tais negócios. Isto, é claro, desde que os particulares, procedendo deste modo, não estejam a praticar uma fraude à lei - coisa que aliás frequentemente acontecerá. Mas, seja como for, se não cair na alçada do regime da fraude à lei, o negócio indirecto, pelo facto de o ser, não deixa de se apresentar como plenamente válido [Pires de Lima-V. Lobo Vavier, citados em H. E. HORSTER, 543].
O negócio simulado é nulo - 240º, nº 2 - e, de acordo com o regime geral, a nulidade pode a todo o tempo ser invocada por qualquer interessado e declarada oficiosamente pelo Tribunal (286º); pode ser deduzida por via de acção ou excepção (287º, nº 2).
Na simulação relativa o negócio fictício ou simulado é nulo, tal como na simulação absoluta. O negócio dissimulado, disfarçado, vale por si, não sendo afectado pela simulação: será objecto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação, se tivesse sido abertamente concluído - 241º, nº 1.
Se, como se viu, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei - nº 2 do art. 241º.
Para a validade do negócio real torna-se necessária a observância do formalismo que, para ele, exige a lei, mesmo que tal forma não seja suficiente para o negócio aparente.
E se não existe uma contra-declaração, sendo certo, todavia, que o tipo de formalismo exigido para o negócio dissimulado foi observado, embora do documento conste o negócio aparente e não o acto oculto (p. ex., lavrou-se uma escritura pública, donde consta uma venda de imóveis, quando na realidade se fez uma doação, ou vice-versa)?
O n.° 2 do artigo 241º parece consagrar, nesta hipótese, a solução da nulidade do negócio dissimulado, tal como foi preconizada por BELEZA DOS SANTOS e estava reconhecida por um Assento de 23 de Julho de 1952. Diversa era a solução sustentada por MANUEL DE ANDRADE [Mota Pinto, ib., 479-480; em sentido diferente: P. Lima-A. Varela, Anotado, I, nota ao art. 241º e H. E. Horster, 544 e ss; V. Serra, na RLJ 113-60 e ss, maxime, 73, defende a solução antes preconizada por M. de Andrade]...
A nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores, mesmo que a simulação seja fraudulenta - 242º, nº 1.
Advirta-se, no entanto, que esta possibilidade de a nulidade ser invocado pelos próprios simuladores entre si sofre uma apreciável restrição indirecta por força do artigo 394º, nº 2. Aí se estatui que é inadmissível a prova testemunhal do acordo simulatório e do negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores, solução oposta à defendida anteriormente. A prova da simulação pelos simuladores é assim praticamente restringida à prova documental (contra-declarações ou outros documentos) e à confissão, pois não é admissível a prova por presunções (cfr. art. 351º), nem a testemunhal (art. 394º, n° 2, já citado) e poucos ou nenhuns ensejos de utilização terão a prova pericial ou a prova por inspecção [Mota Pinto, op. cit., 481].
Praticamente, a prova desta (simulação pelos simuladores) fica reduzida à prova documental e à prova por confissão. Note-se, a este propósito, que desapareceu do Código de Processo Civil o texto do art. 617, com base no qual a doutrina sustentava solução oposta à que consta do art. 394º, nº 2, do novo Código Civil [P. Lima-A. Varela, op. cit., nota 2 ao art. 242º].
As acções representativas do capital de sociedades anónimas (art. 166º do C. Comercial) classificavam-se, quanto à livre circulabilidade, em nominativas e ao portador.
Dá-nos conta Pinto Furtado [Código comercial Anotado, II, Das Sociedades em Especial, Tomo I 167 e ss] que desde cedo o Legislador procurou impor a nominatividade obrigatória das acções ao portador, mandando que os titulares de acções de sociedades as depositassem numa instituição de crédito ou as submetessem a registo na sede da sociedade - Dec-lei nº 150/77, de 13 de Abril.
Dispunha o art. 168º do C. Comercial que na sede da sociedade existisse um livro de registo, acessível a qualquer accionista, donde devia constar, além do mais, os nomes dos subscritores e os números das respectivas acções (1º) e a transmissão das acções nominativas, com indicação da sua data (3º). Tratava-se de um registo privado social, com fortes semelhanças com o registo público, pois, nos termos do parágrafo 1º, a propriedade e a transmissão das acções nominativas não produzirá efeitos para com a sociedade e para com terceiros senão desde a data do respectivo averbamento no livro de que trata este artigo.
O regime da transmissão, registo e depósito de acções foi regulado mais em pormenor pelo Dec-lei nº 408/82, de 29 de Setembro, que entrou em vigor em 29.2.83 e foi mantido pelo art. 5º do Dec-lei nº 262/86, de 2 de Setembro, aprovador do Código das Sociedades Comerciais, que, para os efeitos do art. 331º deste CSC, o declarou lei especial.
Nos termos do art. 1º deste Dec-lei nº 408/82, de 29 de Setembro, o regime de registo ou depósito era obrigatório para as acções nominativas e facultativo para as acções ao portador.
Mas a titularidade, os direitos ... sobre acções sujeita a registo ou a depósito só produzem efeitos se estas estiverem registadas ou depositadas de acordo com as respectivas normas - art. 4º, nº 1.
O registo é efectuado na sociedade emitente (art. 7º, nº 1), em livro próprio (9º, nº 1) tendo por base as declarações que lhe sejam apresentadas, em regra assinadas pelos titulares das acções, seja para registo (7º, 8º e 26º, nº 2), seja para cancelamento (11º, 15º e 26º, nº 2). A Portaria nº 442/83, de 12 de Abril, aprovou o modelo de declaração a que se refere o nº 1 do art. 7º.
Determina o art. 26º do dito Dec-lei nº 408/82:
1 - A transmissão fora da bolsa, a título gratuito ou oneroso, de acções registadas somente será válida quando se utilizar declaração de modelo a aprovar por portaria do Ministro de Estado e das Finanças e do Plano, preenchida em quadruplicado e com as assinaturas do transmitente e do adquirente reconhecidas por notário no original.
2 - A declaração será apresentada numa Instituição de crédito, que anotará no original a data da apresentação, arquivará o duplicado e enviará o original e os demais exemplares à sociedade no prazo de cinco dias úteis, a fim de esta efectuar o cancelamento do anterior registo, bem como, no caso de acções registadas nos termos do n.° l do artigo 1º, proceder a novo registo em nome do adquirente e fazer a correspondente anotação em dois exemplares, devolvendo um ao transmitente e outro ao adquirente.
3 - Considera-se como data da transmissão a da apresentação da declaração na instituição de crédito, salvo prova em contrário, mediante documento com data certa.
Isto mostra que a transmissão (fora de bolsa) resulta de um negócio causal (compra e venda, troca, doação, etc.), para cuja validade se exige, como requisito de forma “ad substantiam”, a apresentação da declaração para registo [Luís Brito Correia, Direito Comercial, II, Sociedades Comerciais, 1989, 384A].
Esta doutrina tem sido invariavelmente seguida pelos nossos Tribunais Superiores, designadamente desde que a Relação de Coimbra, apoiada nos ensinamentos de Brito Correia e em Pareceres dos Professores Raul Ventura - à luz do CSC e do Dec-lei nº 408/82 - e Lobo Xavier - este apenas sobre o CSC - decidiu que a transmissão entre vivos a título gratuito ou oneroso fora da bolsa, está regulada no C.S.C., artigo 337º, para as acções ao portador, registadas ou depositadas e no artº 26º do Dec-Lei nº 408/82, para as acções nominativas. Em todos os casos, a transmissão devia utilizar declaração de modelo a aprovar por portaria do Ministério das Finanças e do Plano (portaria nº 422/83, de 12 de Abril e o modelo aprovado para o registo conhecido na prática por "Modelo nº 5"), preenchido em quadruplicado e com as assinaturas do transmitente do adquirente reconhecidas por notário no original [Ac. de 12.12.95, na Col. Jur. 1995-V-61].
O assim decidido foi confirmado pelo Supremo Tribunal [Ac. de 6.2.97, no BMJ 464-551] e reafirmado, com expressa referência àquele acórdão de Coimbra, em 6.10.98, por Acórdão assim sumariado:
I - O regime da transmissão de acções resulta, hoje, da conjugação dos artigos 326º, nº 1, e 336º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais com o Decreto-Lei nº 408/82, de 29 de Setembro (regulador do registo, depósito e transmissão de acções).
II - Assim, a transmissão entre vivos de acções nominativas fora da bolsa só é válida se se tiver utilizado, em quadruplicado, a declaração para registo de modelo aprovado, com as assinaturas das partes reconhecidas por notário no original, e se, além disso, houver sido aposta no título a declaração do transmitente e nele lavrado o pertence.
III - As formalidades indicadas são essenciais, pelo que um mero negócio de transferência a que falte alguma delas não tem efeito translativo da propriedade sobre tais acções nominativas nem eficácia legitimadora do exercício dos direitos sociais que elas titulam.
IV - Em consequência, não opera a transmissão fora da bolsa de acções nominativas um negócio em que, apesar do preenchimento das declarações do «modelo 5», se verifique que nesses títulos não foi aposta a declaração do transmitente nem lavrado o pertence [BMJ 480-490].
No mesmo sentido e com idêntica motivação decidiu a Relação de Lisboa em 24 de Junho e 7 de Dezembro de 1999 [Col. Jur. 99-III-123 e V-121].
A lei distingue entre negócios formais ou solenes - aqueles para os quais a lei prescreve a necessidade de determinada forma, o acatamento de determinado formalismo - e não solenes ou consensuais - os que podem ser celebrados por quaisquer meios declarativos aptos a exteriorizar a vontade negocial.
Princípio geral da nossa lei é o da liberdade de forma ou consensualidade (art. 219º - a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei o exigir). Mas, nos casos excepcionais em que a lei prescrever uma certa forma, esta não for observada, a declaração negocial que dessa forma careça é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei - art. 220º CC.
Este art. 220º, conjugado com o disposto no nº 1 do art. 364º, consagra explicitamente, como regra, a solução que considera as formalidade legais da declaração como formalidades ad substantiam (e não como meras formalidades ad probationem. Supõe a exigência de certa forma como elemento do negócio; a inobservância de forma determina a nulidade do negócio, salvo se este constar de documento de força probatória superior.
Se a lei exigir a forma apenas para prova da declaração, já o acto não é nulo, visto poder provar-se por confissão expressa, nos termos do nº 2 do art. 364º do CC. É preciso, no entanto, que isso resulte claramente da lei, como se diz neste último preceito [P. Lima-A. Varela, op. cit. notas aos art. 220º e 364º].
Em princípio, quando a lei exige documento para certo tipo de negócio jurídico, requere-o com forma que o negócio deve revestir, portanto como algo indispensável à sua existência válida (Cód. Civ., art. 364º e 219º). Antes de o documento ser lavrado e nele se vazar o conteúdo de negócio, este poderá existir como negócio de facto, não porém como negocio validamente constituído, ou seja, formado segundo as prescrições legais. O documento não pode dispensar-se se se quer dar vida a um acto conforme com a lei e dotado da correspondente relevância jurídica.
Poderá porém acontecer que da lei resulte claramente que o documento é exigido somente para a prova do negócio jurídico. Quando tal se verifique, o acto celebra-se validamente por qualquer modo, não tendo que ser reduzido a escrito. Simplesmente, a lei dificulta a prova dessa celebração, porque não se contenta com qualquer meio probatório para convencer da existência do acto. Em principio, a prova do acto só pode produzir-se através da exibição do documento exigido: essa exibição apenas poderá ser substituída por confissão expressa judicial ou por confissão expressa extrajudicial constante de documento de valor igual ou superior (Cód. Civ., art. 364º nº 2).
Quando o documento seja exigido para a celebração do acto, como requisito de forma e portanto como condição de validade, também se põe um problema de prova: a prova de que se fez o documento, com determinado conteúdo. Tem de se provar a existência válida do negócio, e como essa existência válida depende da feitura do documento, tem de se provar essa feitura [Parecer de Galvão Teles, na Col.. Jur. 84-4-5 e ss e Ac. do STJ, de 28.11.99, na Col. (STJ) 99-III-130 e 131].
No domínio do direito probatório material a lei - art. 341º e ss - estabeleceu clara hierarquia das provas tanto no valor como na sua admissibilidade.
Assim, as presunções (art. 349º) só são admitidas nos casos e termos em que o é a prova testemunhal - 351; a confissão (art. 352º) não é admitida, além do mais, quando for declarada insuficiente por lei - art. 354º, a); só o documento ad probationem pode ser substituído por confissão expressa que, quando judicial e provocada deve ser reduzida a escrito (art. 563º, nº 1, do CPC) e se extrajudicial há-de constar de documento de valor probatório igual ou superior - art. 364º, n.os 1 e 2; a prova testemunhal (art. 392º) é admitida sempre que não seja directa ou indirectamente afastada.
A particular falibilidade da prova testemunhal [Ac. do STJ, de 2.6.99, BMJ 488-315, nota 7; A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª. ed., 616] explica que ela não seja admitida
- sempre que a declaração negocial haja de ser reduzida a escrito ou deva ser provada por escrito, que o mesmo é dizer, em todos os casos de formalidade ad substantiam ou ad probationem - 393º, nº 1, e 364º do CC;
- para prova de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, autenticado ou particular cuja autoria esteja ou venha a ser reconhecida - 394º, nº 1 - nem para
- prova do acordo simulatório ou do negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores - 394º, nº 2.
O objectivo dos n.os 1 e 2 (deste art. 394º) é afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal seria capaz de originar: quando uma das partes (ou ambas) quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio, poderia socorrer-se de testemunhas para demonstrar que o negócio foi simulado, destruindo assim, mediante uma prova extremamente insegura, a eficácia do documento (vide Vaz Serra, Provas, n.° 136).
Não obstante a formulação irrestrita dos n.os l e 2, Vaz Serra propugna a admissibilidade da prova testemunhal em determinadas situações excepcionais: quando exista um começo ou princípio de prova por escrito; quando se demonstre ter sido moral on materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e ainda em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova (vide Rev. de Leg. e de Jur.. ano 107.º, pág. 311 e segs.).
A doutrina do nº 2 não impede que os simuladores façam a prova da simulação por qualquer outro meio, desde que não seja a testemunhal ou a prova por presunções (art. 351º) [P. Lima e A. Varela, Anotado, notas 5 e 6 ao art. 394º].
Já se admitiu a produção de prova testemunhal quando exista uma base de prova escrita ou quando concorra para a interpretação do alcance que as partes contratantes quiseram dar a um acordo escrito [Mota Pinto, Parecer na Col. 85-III-9 e ss], e no mesmo sentido se decidiu mas advertindo que interpretar um documento não se confunde com contrariá-lo ou aditar-lhe convenções e que a boa decisão da causa, se deve levar a facilitar a produção de prova, tem de considerar e respeitar sempre os limites inultrapassáveis da lei [STJ, ac. de 6.7.93, no BMJ 429-769 e 771].
O princípio da livre admissibilidade dos meios de prova anda estreitamente ligado ao da livre apreciação da prova e ambos sofrem limitações de relevo. Com efeito, têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo (julgador de facto, por excelência) sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos - nº 4 do art. 646º do CPC; e à apreciação livre das provas pelo Colectivo, para decisão segundo a sua prudente convicção, impõe a lei - 655º, nº 2 - forte restrição: mas quando a lei exige, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.
Outro tipo de excepção ao princípio da livre apreciação da prova é constituído pela imposição legal, directa ou indirecta, de que a prova de determinado facto se faça por certo meio probatório, normalmente documental. A imposição é directa quando a lei exige o meio apenas para a prova do facto: documento ad probationem de declaração negocial, aliás substituível por confissão em documento de igual ou superior valor probatório (art. 364-2 CC); E indirecta quando a lei exige um documento, autêntico ou particular, como forma da declaração negocial (art. 364-1 CC), o que implica o ónus de conservação do documento e a sua apresentação para a prova dessa declaração, com consequente afastamento de outros meios de prova (cf. arts. 351 CC, 354-a CC, 393 CC, 394 CC, 485-d e 490-2, do CPC).
A distinção entre meio de prova legal e meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (meio de prova livre) leva a uma repartição de funções entre o juiz da matéria de facto e o juiz que profere a sentença. A este cabe conhecer dos meios de prova legal, nomeadamente a admissão, a confissão e o documento (art. 659-3). Àquele cabe conhecer dos meios de prova livre, tanto assim que, se se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, as respostas que der, tal como as que incidirem sobre questões de direito, são nulas («têm-se por não escritas»: art. 646-4) [Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 160].
De acordo com o disposto no art. 265º, nº 3, do CPC, o juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade e - 264º, nº 2 CPC - pode fundar a sua decisão na consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (515, 1ª parte, do CPC).
Mas a exclusão da prova livre (art. 655º, nº 2) e as restrições à admissibilidade de certas provas (364º, 393º e 394º do CC) impõem que o tribunal se limite à apreciação de prova validamente produzida na audiência.
Por isso, segundo o disposto no art° 646°, nº 4, 2ª parte, é considerada inexistente qualquer resposta desse tribunal sobre factos que só possam ser provados por documentos (cfr. art. 364°, nº l, CC) [Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 350].
É a todas as luzes evidente que o Juiz não pode substituir-se às partes na alegação e prova dos factos, assim como lhe está vedado dispensar certa prova legal e admitir outra quando a lei exige qualquer formalidade, seja para a existência seja para prova do facto (646º, nº 4 e 655º, nº 2, CPC).
Assim, se a lei exige, como forma da declaração negocial, documento escrito, não pode o juiz substituir o documento por outro meio de prova ou outro documento que não seja de força probatória superior - 364º, nº 1; e se, em vez de requisito ad substantiam, a lei exigir o documento ad probationem, também é defeso ao juiz admitir para a respectiva prova outro meio que não seja a confissão expressa - 364º, nº 2.
Admitir prova testemunhal nas hipóteses em que a lei a não admite ou - o que é mais grave - julgar válidos e provados com base em testemunhas (ou em presunções tiradas de factos provados por testemunhas) factos para cuja válida existência ou prova a lei exige documento escrito ou confissão expressa constitui violação clara das regras de direito substantivo analisadas - as dos art. 219º, 220º, 364º, 393º, nº 1, 394º, n.os 1 e 2, 354º, a), 1ª parte, 392º e 351º, por um lado, e 240º e 241º, nº 2, por outro - com sanção apropriada no nº 4 do art. 646º do CPC: é considerada inexistente qualquer resposta sobre factos que só possam ser provados por documentos ou por forma (dispensada, apesar de) exigida por lei 655º, nº 2, do CPC).
A possibilidade de declarar oficiosamente a nulidade de um negócio supõe, naturalmente, que se fez prova legal dos factos integrantes dessa nulidade, sob pena de, assim não procedendo, tal declaração subverter tanto as regras de forma como as do direito probatório material e processual.
O acordo simulatório e o negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores, não podem provar-se por testemunhas, nos termos expressos do nº 2 do art. 394º do CC. E por isso também não é admissível para aquele fim o recurso a presunções - 351º, 358º e 364º.
Daqui que no exame crítico das provas o Juiz não possa tomar em consideração as respostas dadas aos quesitos sobre negócio simulado com base na prova testemunhal quando a simulação é invocada pelos próprios simuladores (art. 659º, nº 3 e 646º, nº 4, ambos do CPC) [Col. Jur. (STJ) 93-II-61].
Termos em que se atende o concluído em c) e d).
III
O segundo fundamento de improcedência da acção foi a nulidade do (se existente) mandato porque se julgou verificada simulação relativa; por detrás do mandato estava o negócio verdadeiramente querido pela partes: o requerente quis vender e o requerido quis comprar as acções de que o primeiro era (directa ou indirectamente) titular no capital da sociedade E.T.E., S..... . Mas porque o Requerente invocou compromisso de honra que o impedia de tornar pública a transmissão das acções, enquanto vivo fosse o accionista a quem adquirira os títulos, os advogados de requerente e requerido minutaram a procuração irrevogável e no interesse do próprio mandatário, com poderes especiais para o representar como accionista nas assembleias gerais daquela sociedade, a fim de nelas discutir e votar como melhor entendesse, mais se comprometendo a não mais pôr os pés em qualquer assembleia da sociedade.
Os factos assentes e validamente provados não nos permitem concluir pela existência de simulação, ainda que relativa.
Desde logo não está presente o acordo simulatório que só podia provar-se por documento ou confissão expressa, inexistentes um e outra, nunca por testemunhas, ainda que muito qualificadas e respeitáveis, nem por presunções, se bem que judiciais.
O intuito de enganar terceiros não se enxerga. Terá havido, quando muito, um negócio indirecto ou fiduciário, perfeitamente querido pelas partes.
O negócio unilateral que é a procuração ou o registo de algumas acções em nome do requerido (fs. 286) não podem constituir começo de prova escrita porque deste registo nada se tira no sentido de ter havido transmissão de acções - da E.T.E., únicas aqui em causa - além das cinquenta nominativas antes registadas em nome do vendedor aqui Recorrente; na procuração não se encontra rasto de poderes de negócio consigo mesmo, ainda que a prazo, que permitisse ao procurador comprar as acções cuja administração lhe foi confiada e aceitou.
O negócio (dito) dissimulado, a compra e venda de acções, é claramente negócio jurídico formal. Como acima se concluiu, a transmissão (fora de bolsa) resulta de um negócio causal (compra e venda, troca, doação, etc.), para cuja validade se exige, como requisito de forma “ad substantiam”, a apresentação da declaração para registo [Luís Brito Correia, Direito Comercial, II, Sociedades Comerciais, 1989, 384 A].
Outro elemento da simulação relativa em falta, ao menos para quem entenda a validade do negócio dissimulado como quarto requisito dessa simulação.
Por isso, ainda que provado o acordo simulatório, o negócio dissimulado, a compra e venda de acções, só seria válido se tivesse sido observada a forma exigida pelo art. 26º do Dec-lei nº 408/82, de 29 de Setembro - 241º, nº 2, CC [Não se acompanha, pois, a sentença recorrida quando entende a transmissão de acções nominativas fora de bolsa, em 1985 (art. 12º, nº 2, do CC), como negócio consensual ou com formalidade ad probationem] - e não o foi. Daí que se tenha por certo que não houve válida transmissão de acções para além das cinquenta nominativas cujo registo a favor do vendedor foi cancelado para ser, como foi, averbado em nome do comprador.
Resta-nos, pois, uma compra e venda de acções que, a ter incluído as 409 nominativas e as 860 ao portador, seria nula por falta de forma (requisito ad substantiam) e que, justamente por ser nula, não produziu o normal efeito translativo da titularidade sobre elas, titularidade que se manteve na esfera jurídica do Requerente.
Foi para o representar como accionista nas assembleias gerais da E.T.E. que o Requerente passou a favor do Requerido a procuração atributiva de poderes de representação em que se funda o pedido. Ora, estando o mandatário-representante obrigado a prestar as informações pedidas, procede o pedido do Requerente-mandante, como se pretende em e) e f).
Do abuso de direito
A improcedência decretada pela sentença recorrida ficou, por último, a dever-se ao facto de o Ex.mo Juiz ter julgado verificado o abuso de direito na sua principal modalidade, o venire contra factum proprium.
Contra este fundamento da sentença nada disse o Apelante. Apesar disso, conheceremos da questão porque, como é jurisprudência corrente, o abuso de direito é de conhecimento oficioso, mesmo pelo STJ, não obstante não ter sido invocado pela parte que dele se pode prevalecer por estar em causa um princípio de interesse e ordem pública [Por último, o Ac. do STJ, de 25.11.99, na Col. Jur. (STJ) 99-III-126 e RLJ 132º-272].
Depois, é controvertida a questão de saber se o caso julgado material abrange os fundamentos da decisão ou se se forma, apenas, sobre o pedido [BMJ 484-318 e 362, com abundante indicação de doutrina].
Como se escreveu em acórdão desta Relação [Col. Jur. 99-III-218], subscrito pelos signatários deste, a proibição do venire contra factum proprium cai no âmbito do abuso de direito através da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito «quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé» (Antunes Varela, Obrigações, I, 6ª ed. pág. 517; Baptista Machado, «Tutela de confiança e venire contra factum proprium», Obra Dispersa, vol. I, pág. 385).
Os efeitos do abuso de direito nesta especial modalidade exigem a verificação dos seguintes pressupostos:
1 - Uma situação objectiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
2 - Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;
3 - Boa fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico «jurídico». (Ob. cit., págs. 415 a 418).
A ilegitimidade do abuso de direito tem as consequências de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar; à nulidade, nos termos gerais do art. 294º; à legitimidade de oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed.. págs. 299 e 300; Vaz Serra, RLJ, ano 107º, pág. 25) - BMJ 461-397.
Não se suscitam, nesta parte, dúvidas de vulto. Mas já é muito controvertida a questão de saber se a invocação do abuso de direito procede contra a nulidade por falta de forma [Sobre a questão pode ver-se, por mais recente, a RLJ 132-270, nota 14, com indicação de vários Autores e respectivos ensinamentos].
Temos para nós, sopesados os interesses tutelados pelas exigências de forma e consequências fixadas pela lei para a sua inobservância, por um lado, e as exigências do «justo» que estão na base do abuso de direito, por outro, que esta figura só é invocável em casos excepcionais, para afastar a nulidade decorrente da falta de forma legalmente prescrita, designadamente quando não estiverem em causa interesses de ordem pública que imponham determinada forma [BMJ 451-506] e que o abuso de direito só existe em casos verdadeiramente excepcionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste uma vontade contrária à tida no momento da celebração do contrato, pois que é ainda necessário que a segunda atitude se apresente como um comportamento de todo em todo ofensivo do nosso sentido ético-jurídico, clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes [BMJ 459-519].
No caso em apreço não vemos que o Requerente esteja a exercer o seu direito por forma clamorosamente ofensiva do sentido ético-jurídico dominante.
Já se viu que na procuração não há vestígios de se ter querido vender as acções aí referidas, nem os factos assentes permitem concluir que o vendedor induziu dolosamente o comprador a omitir a forma legalmente prescrita para a transmissão de acções fora de bolsa. Pelo contrário, os contratantes eram assistidos por Distintos Advogados e houve válida transmissão de, pelo menos, cinquenta acções nominativas, registadas no mesmo livro de registo (com igual sigilo, portanto) destas cuja propriedade o Requerente conservou.
Depois, aquele Dec-Lei nº 408/82, de 29 de Setembro, é claríssimo ao exigir os vistos requisitos de validade de transmissão como formalidades ad substantiam, como elementos do próprio contrato de transmissão. Seria defraudar a lei validar, à sombra de equívoco abuso de direito, um negócio que de outra forma sempre seria nulo.
Decisão
Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a decisão recorrida e se defere o requerido, devendo proceder-se no Tribunal a quo em conformidade com o disposto na parte final do art. 1476º do CPC.
Custas, em ambas as instâncias, pelo Requerido e Apelado, por vencido, nos termos dos n.os 1 e 2 do Art. 446º do CPC.
Porto, 20 de Março de 2001
Afonso Moreira Correia
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves