Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0830162
Nº Convencional: JTRP00041096
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MÁ FÉ
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP200802140830162
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 748 - FLS 140.
Área Temática: .
Sumário: I – Quando a alienação é a título oneroso, a impugnação pauliana só pode proceder se o devedor e o terceiro adquirente tiverem agido de má fé (consilium fraudis), considerando a lei como má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art. 612º, nº2, do CC), nesta se abrangendo tanto os casos de dolo como os de negligência consciente em relação à verificação do prejuízo.
II – Impende sobre o credor o ónus de prova da má fé quer do alienante, quer do adquirente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………., Lda intentou contra
- C………. e mulher D………., e
- E………. e mulher F……….,
acção ordinária de condenação, pedindo se declare a ineficácia em relação a ela própria do acto de cessão referido na petição inicial e se ordene aos 2.ºs Réus a restituição do referido bem, de modo que a Autora se possa pagar à custa do mesmo.
Fundamentou a sua pretensão no facto de, tendo os 1ºs Réus uma dívida para consigo no montante de € 94.356,00, decorrente de aquisições pelos mesmos de produtos avícolas, dívida essa reconhecida pelo 1º Réu em 23.01.04, por escritura pública de 3 de Agosto de 2004, terem os referidos Réus cedido a quota titulada em nome do 1º Réu na sociedade “G………., L.da” ao Réu E………., sendo certo que: os 1ºs RR ao realizarem a escritura de cessão de quotas referida em A) dos factos assentes com o 2º R. marido pretenderam unicamente evitar serem proprietários de qualquer bem que pudesse satisfazer o crédito do A.; os 2ºs RR tinham conhecimento dos factos referidos de B) a G) dos factos assentes; e os 1ºs e 2º R. marido representaram e quiseram com a cessão de quotas referidas em H) dos factos assentes obstar à possibilidade de a Autora se ressarcir à custa desse bem.

Os Réus contestaram, impugnando o alegado conhecimento e intencionalidade.

II.
Teve lugar uma audiência preliminar, lavrou-se o saneador e condensou-se a matéria de facto.

Realizou-se o julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido.

III.
Recorreu a A., concluindo como segue a sua alegação:

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Não foi oferecida contra-alegação.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IV.
Factos considerados provados na sentença:
a) A A. é uma sociedade comercial e tem por objecto a produção e comercialização de produtos avícolas e, nesse exercício, vendeu aos 1ºs RR. produtos avícolas, que estes receberam, nada tendo reclamado à Autora (A).
b) Na sequência dessas transacções comerciais e para pagamento do preço devido no montante de € 98.756,00 (noventa e oito mil setecentos e cinquenta e seis euros), em 23 de Janeiro de 2004 o 1º R. marido confessou-se devedor dessa quantia e comprometeu-se ao pagamento da mesma em 30 (trinta) prestações mensais e sucessivas mediante a assinatura de documento particular (B).
c) O 1º R. não efectuou o pagamento da referida quantia, o que originou que a A. instaurasse a acção executiva sob a forma comum que foi intentada em 10.9.2004 no Tribunal Judicial de Vouzela e aí corre os seus termos na secção única sob o nº …/04.3TBVZL onde o 1º R, depois de devidamente citado não pagou, não deduziu oposição e nem nomeou bens à penhora (C).
d) Face ao referido em B), o débito dos 1ºs RR à Autora ascende, actualmente, à quantia de € 94.356,00 (noventa e quatro mil trezentos e cinquenta e seis euros) (D).
e) Os 1ºs RR não pagaram esta quantia, não obstante as insistências da Autora nesse sentido (E).
f) No âmbito da acção executiva referida em C), foi realizada uma penhora de bens móveis, aos quais, foi atribuído o valor de € 6.350,00, encontrando-se em fase de venda judicial, e foi penhorado um veículo automóvel com matrícula ..-..-CP, o qual não veio a ser aprendido pelas forças policiais (F e G).
g) Em 3 de Agosto de 2004, os 1º RR celebraram com os 2º RR no Cartório Notarial da Maia uma escritura pública de cessão de quotas da sociedade “G………., Lda”, NIPC ………, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Santo Tirso sob o nº 4984, com sede na Rua ………., Bloco .., nº ., freguesia de ………., concelho da Trofa (H).
h) Nessa escritura pública os outorgantes (1ºs RR), declararam ceder a quota titulada em nome do 1º R marido C………., pelo seu valor nominal de € 7.350,00 (sete mil trezentos e cinquenta euros) ao 2º R. marido E………., renunciando o 1º R. à gerência da sociedade "G………., Lda" (I).
i) Desse acto procederam ao respectivo registo na competente Conservatória do Registo Comercial (J).
j) Ao realizar a escritura de cessão de quotas referida em A) dos factos assentes, o 1º Réu sabia que, desse modo, dificultava a satisfação do crédito da Autora, bem como que a 1ª Ré e o 2º Réu marido tinham conhecimento de que o Réu C………. estava numa situação económica difícil (1.º).
l) O 1º Réu sabia que com a cessão de quotas referida em H) dos factos assentes obstava à possibilidade de a Autora se ressarcir à custa desse bem (3.º).

V.
Questões suscitadas pela apelante:
- onerosidade ou gratuitidade do acto impugnado;
- erro na decisão da matéria de facto;
- existência de má fé.

1.
A apelante insurge-se contra o segmento da sentença que refere:
Com efeito, apenas se tendo apurado que o 2º Réu marido tinha conhecimento de que o Réu C………. estava numa situação económica difícil, tal não é, como se viu, suficiente para que se considere verificada a má fé por parte deste, requisito essencial à impugnação pretendida, uma vez que o acto impugnado é acto oneroso.
O desacordo manifestado incide, especificamente sobre a consideração de que o acto é oneroso, pretendendo a recorrente que, pelo contrário, o mesmo é gratuito.
Tal consideração feita pela Ex.ma Juíza não se reporta a qualquer elemento de facto, inserindo-se na fundamentação jurídica da decisão e consistindo numa qualificação dos factos considerados provados.
Se atentarmos na alegação contida na p.i., a A. refere a realização da escritura de cessão de quotas (art. 8.º), o respectivo preço (art. 9.º), aludindo ao intuito que esteve na sua origem, a saber, a vontade de todos os RR. de obstar à possibilidade de a A. se ressarcir do seu crédito à custa desse bem (art. 11.º), afastando-o da titularidade dos 1.ºs RR. (art. 13.º).
Em lado algum a A. alega que os 1.ºs RR. não receberam o preço da cessão e que a declaração de quitação constante do texto da escritura é inexacta.
Apenas na fase da instrução a A. requereu a notificação dos RR. para esclarecerem qual o meio de pagamento e respectivo comprovativo do valor referente à cessão de quotas – fls. 121.
Mas como nenhum quesito foi formulado nesse sentido, porque a matéria correspondente não foi alegada, tal prova apenas poderia servir para mais consistentemente se responder aos quesitos sobre a má fé.
Assim, não se vê qual o interesse de se invocarem com este propósito os depoimentos de parte dos RR. produzidos em audiência, visto que, mesmo que se devesse entender que os mesmos esclareciam algo quanto ao pagamento do preço do negócio celebrado, não há factos nesse sentido que sejam susceptíveis de confissão.
Pelo que o Tribunal a quo apenas tinha de se ater ao teor da escritura de cessão de quotas e, concluir, como fez, que a cessão foi onerosa.
Desta forma, soçobram as conclusões 2.ª a 5.ª.

2.
Relativamente à má fé, a apelante não concorda com o seguinte entendimento expendido na sentença relativamente à não verificação da mesma na atitude intelectual do 2.º R..
Passamos a transcrever o que se disse na decisão impugnada sobre este tema:
Sabemos que, ao realizar a escritura de cessão de quotas referida em A) dos factos assentes, o 1º Réu sabia que, desse modo, dificultava a satisfação do crédito da Autora, tanto bastando, face ao que supra se deixou dito, para que se possa ter por verificado o requisito da má fé daquele, sendo, por outro lado, indubitável a anterioridade do crédito em relação à aludida cessão, pelo que não há que exigir que o dito negócio tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito da Autora.
Já não assim quanto ao terceiro (relativamente à relação creditícia em crise): no caso dos autos, E………. .
Com efeito, apenas se tendo apurado que o 2º Réu marido tinha conhecimento de que o Réu C………. estava numa situação económica difícil, tal não é, como se viu, suficiente para que se considere verificada a má fé por parte deste, requisito essencial à impugnação pretendida, uma vez que o acto impugnado é acto oneroso.
Nos termos do art. 610.º e ss. do CC, a impugnação pauliana tem os seguintes pressupostos:
a) a realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal;
b) que o crédito seja anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido ele realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
c) que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má fé tanto do alienante como do adquirente;
d) que resulte do acto a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

Vejamos o que dizem os factos provados relativamente ao requisito constante da anterior alínea c).
“Ao realizar a escritura de cessão de quotas referida em A) dos factos assentes, o 1º Réu sabia que, desse modo, dificultava a satisfação do crédito da Autora, bem como que a 1ª Ré e o 2º Réu marido tinham conhecimento de que o Réu C………. estava numa situação económica difícil (1.º).
O 1º Réu sabia que com a cessão de quotas referida em H) dos factos assentes obstava à possibilidade de a Autora se ressarcir à custa desse bem (3.º).”

A única coisa que se provou foi que o 2.º R. tinha conhecimento de que o 1.º R. estava numa situação económica difícil.
Note-se que no quesito 3.º se perguntava se “Os 1.ºs e 2.º R. marido representaram e quiseram com a cessão de quotas referida em H) dos factos assentes obstar à possibilidade de a A. se ressarcir à custa desse bem.”
A resposta foi restritiva, apenas se dando o mesmo como provado relativamente ao 1.º R.
Excluiu-se, expressamente, o 2.º R. do âmbito da resposta.
Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 2.ª ed., 292, afirma que quando a alienação é a título oneroso, a impugnação pauliana só pode proceder se o devedor e o terceiro adquirente tiverem agido de má fé (consilium fraudis), considerando a lei como má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art. 612.º/2 do CC).
Tomando posição sobre a controvérsia doutrinal a propósito da forma como deve ser definida a má fé, para efeitos da impugnação pauliana (o art. 1036.º do CC de 1867 definia a má fé como o conhecimento do estado de insolvência do devedor, mas quer Guilherme Moreira, Instituições, II, p. 170 e ss., quer Cunha Gonçalves, Tratado, V, p. 773, entendiam não bastar o conhecimento do estado de insolvência, exigindo-se a consciência do prejuízo causado ao credor, sem que esta tivesse que corresponder a uma intenção de prejudicar), afirma que o conceito deve abranger tanto os casos de dolo como os de negligência consciente em relação á verificação do prejuízo – ibid, e 293.
Afirma, ainda, que quer a má fé do alienante, quer a do adquirente têm de ser provadas pelo credor, para que a impugnação pauliana possa ser julgada procedente – ibid.
No quesito 3.º a formulação corresponde ao dolo, tal como alegado pela A. no art. 11.º da p.i.
Ora, a A., onerada com o ónus respectivo, não logrou provar o dolo do 2.º R.
Além disso, a apelante não impugnou a resposta ao quesito 3.º, pelo que a actuação do 2.º R. sempre se manteria despida de intenção dolosa.

3.
Finalmente, a apelante não aceita a resposta dada ao quesito 2.º, que foi negativa.

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Posto isto, a apelação improcede.

Nestes termos, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença.

Custas pela apelante.

Porto, 14 de Fevereiro de 2008
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira