Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0422523
Nº Convencional: JTRP00037032
Relator: PELAYO GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE FACTORING
NOTIFICAÇÃO
FACTURA COMERCIAL
Nº do Documento: RP200406290422523
Data do Acordão: 06/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de "factoring" vem sendo definido como aquele pela qual uma entidade (cliente ou aderente) cede a outra (cessionário financeiro ou "factor") os seus créditos sob um terceiro (o devedor ou "debitor") mediante uma remuneração.
II - Trata-se de uma cessão de créditos, não carecendo de consentimento do devedor, mas que a este deve ser notificada, mesmo extrajudicialmente.
III - Tal notificação basta-se com a indicação na factura do devedor da cessão do crédito respectivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

No Tribunal de Comarca e de Família e de Menores de....., distribuída ao -º Juízo Civil, H....., S.A., com sede na Rua....., em....., intentou acção declarativa, sob a forma ordinária, contra F....., S.A., com sede na Rua....., ....., ....., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia no valor de € 32.430,23, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 7%, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que é uma sociedade de factoring, e no exercício dessa actividade celebrou um contrato de factoring com a Sociedade N....., L.da, mediante o qual, esta se obrigou a submeter à aceitação da A. a totalidade dos seus créditos sobre terceiros e a A. se obrigou a aceitar a cessão desses créditos. Entre os seus créditos a N....., Lda cedeu à A. os constantes das facturas 88 e 89, respectivamente do valor de € 16.746,15 e € 15.684,08, ambas datadas de 23.02.2000 e com vencimento em 23.04.00, que a Ré não pagou à A.. Por carta datada de 23.02.00 e recebida em 02.03.00, a N....., Lda notificou a Ré de ter celebrado com a A. o aludido contrato. Por virtude do referido deve a ré F....., SA ser condenada a pagar-lhe a quantia e os juros do seu pedido supra.
Juntou 11 documentos e procuração forense.

Contestou a Ré logo suscitando a excepção de ilegitimidade da A. por ter sido notificada da cessão de créditos entre ela e a N....., Lda, no dia 23.02.2000, e que tal passaria a produzir efeitos a partir dessa data, pelo que não se encontrariam abrangidos os créditos aqui em causa, cujas facturas são do mesmo dia, data a partir da qual se operava a produção dos efeitos da cessão de créditos, pelo que nada tem a A. que ver com os créditos que reclama. Alegou ter celebrado com a N....., Lda dois contratos de fornecimento e montagem, um em 08.03.00 e outro em 30.06.99, sendo o primeiro relativa a uma obra sita em Aveiro, e o segundo no Porto, pagando-os na integra, designadamente as factura que foram juntas aos autos. Não pagou qualquer quantia à A. por não estar adstrita a tal obrigação, pois a notificação da cessão de créditos apenas se aplica aos contraídos depois de 23.03.00, tanto mais que a N....., Lda sempre lhe afirmou que os pagamentos deviam ser feitos a ela, enviando letras directamente para a sua direcção e para esse efeito. Concluiu no sentido de que nada deve à A. pelo que deve ser absolvida da totalidade do pedido.

A A. replicou aceitando a confissão expressa pela Ré, de que já pagou o crédito aqui em causa, e que o mesmo foi feito directamente à N....., Lda, não tendo tal pagamento a virtualidade de exonerar a Ré da obrigação de pagar à A. essas quantias, por ser ela a única e exclusiva titular dos créditos por forçada cessão dos mesmos operada no âmbito do contrato de factoring, que lhe foi notificado tempestivamente, donde manter o seu pedido inicial na íntegra.

O Mer.mo juiz entendeu já ter elementos bastantes para apreciar da questão do mérito da acção, nos termos do art. 510º, n.º 1, al. b) do CPC, pelo que passou a proferir sentença. E nela, de fls. 110 a 117, julgou a acção totalmente provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 32.430,23, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a citação, ocorrida em 02.04.03, à taxa de 7%, até integral pagamento.

Não se conformou a Ré com a sentença pelo que dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação e com efeito devolutivo - v. fls. 127.
Nas suas alegações de recurso a Apelante formulou as seguintes conclusões:

1. A A. aqui apelada e N....., L.da celebraram contrato de “factoring”, mediante o qual este cede àquela os seus créditos comerciais;
2. O contrato estava condicionado a termo inicial, qual seja, a data de 23.02.2000, data a partir da qual as facturas e títulos emitidos pela N....., Lda seriam cedidos à A.;
3. As facturas dos autos datam, ambas, de 23.02.2000, logo, foram emitidas no dia imediatamente anterior àquele em que as facturas da N....., Lda seriam cedidas à Apelada;

Sem prescindir
4. As facturas foram pagas directamente à N....., Lda, pela forma de pagamento estipulada nos contratos celebrados entre a Apelante e a N....., Lda;
5. Segundo o contrato de Factoring celebrado entre a Apelada e a N....., Lda, caso se verificasse pagamento de créditos cedidos directamente à N....., Lda esta recebia-os por conta da Apelada, como mandatária;
6. Nos termos do dito contrato a Apelada era detentora de direito de regresso sobre tais quantias assim recebidas pela N....., Lda.
7. Acresce que, a Apelante, ali Ré, impugnou matéria alegada pela Apelada, ali A.;
8. Designadamente, matéria relativa à efectiva cessão de créditos e sua aplicação no tempo;
9. Igualmente, matéria relativa à interpelação para pagamento dos alegados créditos de que se arroga detentora a Apelada;
10. Consequentemente, não deveria o Meritíssimo Juiz “a quo” ter proferido saneador-sentença
Finaliza no sentido de que a sentença deve ser revogada por outra que absolva a Ré do pedido ou, caso assim não se entenda, por outra que ordene o prosseguimento dos autos, com fixação da matéria assente e organização da base instrutória, e consequente produção de melhor prova.
(numeração nossa)

A A./Apelada contra-alegou a pugnar pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

O Mer.mo Juiz limitou-se a ordenar a remessa dos autos a esta Relação, pois que, não foram invocadas nulidades – art. 668º, n.º 4 do CPC.
Aqui foi mantida a espécie e efeito do recurso e colhidos os vistos legais dos Ex.mos Colegas Adjuntos.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.

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Findos os articulados, por considerar que os autos já possuíam os elementos bastantes para conhecer do seu mérito, o Mer.mo Juiz deu por provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade que se dedica à actividade de aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, nos mercados interno e externo.
2. Em 22 de Janeiro de 1999, entre a A. e a sociedade N....., L.DA foi ajustado, por escrito, um acordo (chamado “Contrato de Factoring”) que foi subordinado a um conjunto de cláusulas ajustadas e elencadas – doc. de fls. 7 a 17.
3. Aí se firmou, estar a aderente obrigada a submeter à aceitação da A. a totalidade dos seus créditos sobre terceiros, salvo exclusões expressamente clausuladas e a A. estar obrigada a aceitar a cessão dos créditos da aderente sobre os devedores que expressamente declarar (cláusula I); os créditos terão natureza comercial, resultantes de fornecimentos ou da prestação de serviços decorrentes da actividade comercial do aderente (cláusula II).
4. No âmbito do acordo aludido em 2), a N....., Lda cedeu à A., os créditos sobre a Ré, constantes da factura n.º 88 de 23.02.00, no valor de € 16.746,15 – Do. De fls. 18.
5. No âmbito do acordo aludido em 2), a N....., Lda cedeu à A. os créditos sobre a Ré, constantes da factura n.º 89 de 23.02.00, no valor de € 15.684,08 – Doc. de fls. 19.
6. As facturas aludidas em 4) e 5) deveriam ter sido pagas em 23.04.00 – Doc. de fls. 18 e 19.
7. Por carta de 23.02.00, a N....., Lda comunicou à Ré, ter sido celebrado com a A. o acordo aludido em 2), com base no qual cedeu os créditos comerciais à A., que procederá à sua cobrança e que só a A. poderá dar quitação dos valores da facturação dessa empresa; e informando que essas “instruções” se aplicam a todos os créditos emitidos a partir de 23 de Fevereiro de 2000 – doc. de fls. 20.
8. O escrito aludido em 7), foi recebido pela Ré em 02.03.00 – doc. de fls. 21.
9. Por carta datada de 14.07.00, a A. informou a Ré que só à A. podiam efectuar o pagamento da facturação emitida pela N....., Lda, e assim obter a quitação, e que qualquer pagamento feito a terceiro ou directamente à N....., Lda não o desonerava – Doc. de fls. 25.
10. A Ré respondeu ao escrito aludido em 9), enviando uma carta em 31.07.00,, comunicando não ter recebido a notificação da cessão dos créditos por parte da N....., Lda à A. – Doc. de fls. 29.
11. A A. respondeu ao escrito aludido em 10), através de carta de 08.08.00, à qual juntou cópia de escrito aludido em 7) – Doc. de fls. 32.
12. Por fax datado de 16.08.00 a Ré sugeriu uma reunião entre os seus representantes, os da N....., Lda e da A. – doc. de fls.37 – a qual nunca se realizou por indisponibilidade dos representantes da N....., Lda.
13. A Ré pagou à N....., Lda as facturas aludidas em 4) e 5).

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São, em princípio, as conclusões das alegações do recurso do recorrente que delimitam o âmbito e o objecto do recurso – art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC.

Aceitam as partes que entre a A./Apelada e a N....., Lda foi celebrado um contrato de “factoring”, em 22 de Janeiro de 1999, nos termos e cláusulas ajustadas que constam da fotocópia de fls.7 a 17.
A Actividade de factoring introduzido na legislação portuguesa pelo Dec. Lei 56/86, de 18.03, actualmente regulado pelo Dec. Lei 171/95, de 18/07, e pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei 298/92, de 31/12, vem sendo definido como um contrato pela qual uma entidade – cliente ou aderente – cede a outra – cessionário financeiro ou «factor» - os seus créditos sobre um terceiro – o devedor ou «debitor» - mediante uma remuneração.
Trata-se de uma cessão de créditos que, nos termos do art. 583º, n.º 1 do CC se opera sem necessidade do consentimento do devedor, para produzir efeitos em relação a este, que não tem de ser parte no contrato, mas que lhe terá de ser-lhe notificado, mesmo extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.
Está plenamente provado nos autos que a Apelante/Ré foi notificada pela Apelada/Autora, por via postal, datada de 23.02.2000 e recebida pela primeira em 02.03.2000, que a N....., Lda lhe havia cedido os créditos comerciais, nomeadamente sobre ela, que só ela H....., SA poderia cobrar e dar quitação dos respectivos valores.
Contestou a Ré, e agora reafirma neste recurso, que esse contrato de factoring estava sujeito a termo inicial, que seria no referido dia 23.02.2000, quando recebeu a notificação, mas as facturas em causa nos autos, ambas com essa mesma data, foram emitidas no dia imediatamente anterior, pelo que não compreendidas nesse contrato de factoring. Para ela ao dizer “a partir de 23 de Fevereiro” a N....., Lda pretendia excluir esse dia 23, não incluindo as aludidas facturas.
Como na sentença recorrida não concordámos com tal interpretação. Porque se trata de um contrato a “declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” – art. 236º, n. 1 do CC. Ora, um cidadão normal, mas no caso uma entidade comercial, ao receber a notificação da cessão dos créditos da N....., Lda, nos termos em que o foi, não se tornando necessário repetir, bem sabe a que fim se destina tal contrato e as condições em que é celebrado pelo cedente dos créditos, ou seja, quando necessita de realizar capital de imediato, sinal de situação financeira difícil. E sabia a Apelante/Ré que os débitos que tinha para com ela, pelas obras que lhe efectuara, em datas muito anteriores a 23.02.2000, seriam compreendidos nesse factoring. Tanto mais que nas facturas que aceita ter recebido, através de carimbo nelas aplicado continha os dizeres: “Este crédito (factura) foi cedido e deverá ser pago sempre e só à H....., S.A. – Rua....., ....., única entidade que tem direito a cobrar a quantia respectiva e a dar a quitação correspondente” .
Se alguma dúvida lhe surgisse sobre tal declaração incerta nas facturas, mas não admissível face à notificação que recebera da Apelada/Autora, atrás referida, sempre lhe competiria, esclarecer-se junto desta, o que não fez, só apresentando esta justificação depois de proposta esta acção.
Donde temos de concluir que a Apelante/Ré deveria ter procedido ao pagamento de tais créditos à Apelada/Autora em conformidade com o citado contrato.

Também alegou a Apelante/Ré a existência de contratos de fornecimento e entrega celebrados com a N....., Lda anteriormente às cessões dos créditos em litígio, sendo o pagamento do preço de tais contratos efectuados através de letras aceites a 90 dias, com ulteriores reformas, invocando que a Apelada/Autora não teria dado cumprimento ao modo de cobrança estipulado nos referidos contratos.
Porém, não está em causa quanto à respectiva forma de pagamento e se os pagou directamente à N....., Lda, pois que por força do contrato de factoring só os devia pagar à Apelada/Autora. Se o fez a outrem não cumpriu a sua obrigação, nem tais pagamentos têm efeitos liberatórios face à titular dos créditos, a H....., S.A.
Também invocou a Apelante a existência de um direito de regresso da Apelada sobre a N....., Lda quanto ao por ela recebido por via destes créditos. Mas a Apelada/Autora não autorizou a N....., Lda a cobrar esses créditos, mantendo-se credora dos seus montantes ao primitivo devedor, pois a F....., SA é que lhe devia pagar directamente essas quantias.

Com a celebração do contrato de factoring e notificação da Ré da sua existência e conteúdo, ficou na sua qualidade de «debitor» obrigada a proceder, efectivamente, ao pagamento de todas as quantias de que a cedente era credora à cessionária, forma única de tais pagamentos poderem ser considerados liberatórios – neste sentido v. ac. STJ, de 6/10/98, in BMJ 480-435.
Encontrando-se perfeito o contrato de factoring e a notificação ao devedor, nenhuma outra matéria tinha interesse para a decisão da causa, designadamente matéria alegada pela Autora que a Ré tenha impugnado, mesmo quanto à interpelação para pagamento dos créditos em causa, pois que liquido está qual o modo, tempo e meio que a Ré devia efectuar tais pagamentos à cessionária H....., SA.
Nos termos do art. 583 do CC, tendo o réu recebido as facturas com a indicação da entidade a quem as devia pagar, ficou notificada da cessão. Esta notificação é o acto de levar a cessão ao conhecimento do obrigado, o que pode ser feito “por simples declaração negocial nos termos do art. 217 (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anot vol. I, 599) e até se bastando a notificação com o simples “conhecimento da cessão” (art. 583º, n.º 2 do CC).
Temos, pois, de concluir que para a correcta decisão do mérito da causa o Mer.mo Juiz teve todos os elementos necessários para a decidir nesta fase de findo os articulados, e que fez certa interpretação e aplicação das lei aos factos, não podendo a sentença em causa ser objecto de qualquer censura – cfr., entre outros, ac. do STJ, de 01/06/00, CJ, Acs. do STJ, t. II, pág 87, e ac. RC, de 13/05/99, CJ, t. III, pág.65.
Consequentemente improcedem todas as conclusões das doutas alegações do recurso da Apelante.
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Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante atendendo-se ao apoio judiciário com que litigue.

Porto, 29 de Junho de 2004
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves
Manuel António Gonçalves Rapazote Fernandes
António Luís Caldas Antas de Barros