Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0435292
Nº Convencional: JTRP00037273
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
LESÃO
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RP200410210435292
Data do Acordão: 10/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: .
Sumário: I- Não se justifica requerer providências em relação a lesões já consumadas, a não ser que a lesão consumada fundamente, de sua vez, justo receio de outras lesões futuras e idênticas. Todavia, na aferição do carácter de tais lesões, deverá ter-se sempre presente a distinção a fazer entre estas lesões futuras e aqueles que sejam meros efeitos futuros de lesões já consumadas.
II- O processo cautelar não visa a correcção de situações, mas tão somente prevenir lesão que venha a ser grave e dificilmente reparável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

Na ....ª Vara de Competência Mista e Comarca de Vila Nona de Gaia instaurou A...................................................., SA, veio instaurar contra B............................... e mulher Processo Cautelar Comum, pedindo ao Tribunal a restituição à Requerente da posse da fracção autónoma designada pela letra “W”, melhor identificada no artº 1º do requerimento inicial.

Alega que:
Adquiriu a fracção no âmbito de execução para pagamento de quantia certa intentada contra os ora requeridos, há mais de dois anos.
Os Requeridos se recusam a proceder à sua entrega.
Pretende a Requerente intentar a respectiva acção de restituição da posse. Porém, até ao momento em que seja proferida decisão de mérito na dita acção de restituição que vai propor e até que a respectiva sentença condenatória seja executada, irá a Requerente sofrer graves prejuízos e de muito difícil reparação no direito de propriedade e de posse que detém sobre a dita fracção, prejuízos esses resultantes do facto de a fracção ora em causa ser destinada à venda a terceiros estando já em negociações para essa transmissão. Teme fundadamente a Requerente que o interessado na compra de tal fracção - e qualquer interessado nessa compra - perca, em definitivo, o interesse na celebração do negócio, o que, a acontecer, trará gravíssimos prejuízos para a Requerente. Que tal estado "torna a situação verdadeiramente insustentável, quer no ponto de vista já referido, quer no que tange à deterioração, pelo uso que dela fazem ilicitamente os Requeridos, circunstância que tem por efeito inelutável a sua desvalorização."
Só com a restituição imediata à Requerente da posse da fracção autónoma ora em causa, se poderão evitar os prejuízos que para aquela advirão do facto de ter de aguardar até que seja proferida decisão de mérito na acção de restituição para poder celebrar a referida escritura de transmissão da sua propriedade, finalidade em que aquela fundamentou a sua decisão de aquisição.

Pelas razões constantes do despacho de fls. 9 e verso, foi indeferida liminarmente a requerida providência cautelar.

Inconformado com o assim decidido, veio o requerente interpor recurso, de agravo, apresentando alegações que terminam com a seguintes

“CONCLUSÕES:

A - Provada que seja a factualidade que consta do requerimento inicial da providência e acima sintetizado, verificam-se todos os requisitos para o decretamento da providência, impostos pelo artigo 395º do CPC e 381º e ss. do mesmo diploma legal.
B - A decisão objecto do recurso enferma de contradição insanável quando pretende, por um lado, que a questão da entrega da posse teria a sua solução por meio do mero contacto com o depositário, que entregaria as chaves, e, por outro, pretendendo que o meio próprio para a posse efectiva seria o recurso ao meio executório a que alude o artigo 901º do CPC.
C - Não só inexiste qualquer eficácia com a pretensa entrega das chaves pelo depositário - e quando ele as tem, o que raramente acontece, nem a Lei efectivamente exige que sempre aconteça -, como poderá ser igualmente ineficaz o recurso ao meio executório a que alude o artigo 901º do CPC.
D - A concretização de tal meio resume-se à entrega dos documentos e das chaves do imóvel e à notificação de qualquer detentor para "respeitar e reconhecer o direito do requerente" - artigo 930º do CPC -, sem que daí resulte, ou possa a mais das vezes, resultar qualquer eficácia.
E - Não ocorre qualquer impedimento legal para a instauração da providência em análise.
F - O procedimento executório do artigo 901º do CPC não tem a natureza de procedimento cautelar, nem é de recurso obrigatório pelo seu titular.
G - Parece resultar manifesto que carece de sustentação o que refere a decisão recorrida quanto à manutenção da situação, e à possibilidade do justo receio da sua deterioração ou alteração desde a sua aquisição.
H - Esse receio é manifesto e óbvio, emergente da conduta dos Requeridos, e agravado pelo decurso do tempo.
I - É impensável que a ilícita ocupação pelos Requeridos, apesar do tempo em que ela já decorre, seja, como se pretende na decisão recorrida, completamente neutra, insusceptível de ser a única causa desses danos.
J - Essa conduta dos Requeridos é a única geradora de tais prejuízos e não a pretensa emissão do Agravante.
K - decisão recorrida violou o estatuído nos arts. 395º e 381º e ss. do CPC.
L - Pelo que deve ser ela revogada, decidindo-se admitir o procedimento cautelar requerido e, em consequência, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Nestes termos e nos que V. Exs muito doutamente suprirão,
Deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida decidindo-se admitir o procedimento cautelar requerido e,
em consequência, ordenando-se o prosseguimento dos autos
Assim se fazendo

JUSTIÇA”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.
II.1. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, a questão a resolver consiste em saber se estão, ou não, preenchidos os requisitos ou pressupostos legais para o decretamento da providência cautelar requerida.

II.2. OS FACTOS:

A factualidade a ter em conta é a supra mencionada, que aqui nos dispensamos de repetir.

III. APRECIANDO

Entendeu o Mmº Juiz a quo que o procedimento cautelar requerido devia ser liminarmente indeferido, em suma, porque:
Não se verifica o requisito legal do “justo receio” - “de que a situação tal como ela se encontra neste preciso momento se tenha alterado ou deteriorado desde a data da aquisição da dita fracção”;
A requerente “desde há dois anos que poderia ter lançado mão de meio executivo nos termos do artº 901º do CPC, que é o meio próprio, e que em face da alegação não o fez”;
A ter havido danos na esfera patrimonial da requerente, só à sua omissão se devem;
Quid juris?

Salvo o devido respeito por diferente opinião, cremos que a decisão recorrida é, no essencial, acertada, nenhuma razão assistindo aos agravantes.
Efectivamente, no essencial, vingam os argumentos vertidos no despacho recorrido e que levaram -- e bem - ao indeferimento liminar do procedimento cautelar requerido.
Vejamos melhor.

Instaurou o requerente providência cautelar comum visando lograr a restituição da posse da fracção supra identificada, ocupada pelos requeridos.
No que tange ao procedimento cautelar comum, o artigo 381º, do CPC, dispõe que:
“1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
“2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor”
“3. Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte”.
“A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”.

Da conjugação deste normativo legal com o artº 387º, também do CPC, resulta serem os seguintes os requisitos (de fundo e de forma) necessários ao decretamento desta providência:
- Fundado receio;
- De lesão grave ou dificilmente reparável (ao direito que se pretende fazer valer em acção pendente ou a instaurar),
- Direito esse a aferir em função da probabilidade séria da respectiva existência (artº 387º, nº1, do CPC);
- Desde que o prejuízo resultante de um tal recurso não exceda o dano que, através dele, se pretenda evitar (Cit. artº 387º, nº1).
- E não cabimento da possibilidade de recorrer a qualquer outro tipo de providência nominada.

Parece manifesto que, atento o teor do próprio requerimento inicial do agravante, não deveria proceder o pedido de decretamento da providência.
E porquê?

Para o decretamento do procedimento cautelar comum exige-se - entre outros requisitos - a demonstração do fundado receio de que a demora natural na solução do litígio causará ao requerente uma lesão grave e dificilmente reparável (ao direito que se pretende fazer valer em acção pendente ou a instaurar).
O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável constitui a manifestação do requisito comummente apelidado de «pericullum in mora», que tanto se pode manifestar anteriormente à propositura da acção, como já na sua pendência.
Não é, contudo, qualquer consequência desvantajosa que previsivelmente ocorra antes da uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória. “Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao Tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão”[Cfr. António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimento Cautelar Comum, Vol. IV, pág. 83.]
Como critério aferidor da gravidade da lesão previsível ter-se-á de entrar em linha de conta com a repercussão negativa ou desvantajosa que a mesma determinará na esfera jurídica do interessado lesado [Cfr. António Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 84 e Ac. RL, de 19.2.87, CJ, T. I, pág. 141 e Ac. STJ, de 13.3.86, BMJ, n.º 355º, pág. 356].

Conforme resulta do disposto no n.º 1 do art. 382º do Código de Processo Civil, “os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente, precedendo os respectivos actos qualquer outro serviço judicial não urgente”.
A urgência atribuída à tramitação processual dos procedimentos cautelares tem na sua génese a urgência material que o caso reclama.
Diversamente do que sucede com a lei Alemã que estabelece um curto prazo adjectivo dentro do qual, e sob pena de caducidade, a providência cautelar tem de ser requerida, a lei processual portuguesa não contém norma expressa no sentido apontado naquela legislação.
De todo o modo, atenta a natureza e a função dos procedimentos cautelares em geral, tem a jurisprudência entendido que não será justificado requerer providências em relação a lesões já consumadas, a não ser que a lesão consumada fundamente, de sua vez, justo receio de outras lesões futuras e idênticas. Todavia, na aferição do carácter de tais lesões, deverá ter-se sempre presente a distinção a fazer entre estas lesões futuras e aquelas que sejam meros efeitos futuros de lesões já consumadas[Cfr. neste sentido, Ac. RP, de 17/01/80, CJ, Ano V, T. I, pág. 13, Ac. RE, de 10/12/81, CJ, Ano VI, T. V, pág. 328, Ac. RP, de 19/10/82, CJ, Ano VII, T. IV, pág. 246, Ac. STJ., de 29/11/88, BMJ, n.º 381, pág. 615.]

No caso em apreço - e partindo da configuração da relação material controvertida delineada pelo requerente - parece indiscutível estarmos perante uma lesão de direito já inteiramente consumada.
Na verdade, desde há cerca de dois anos - apegando-nos sempre à versão trazida aos autos pelo requerente -, está o requerente privado do pleno gozo e fruição da sua propriedade e posse sobre a fracção.
Esta prolongada inércia na propositura da providência cautelar é elucidativa da indiferença demonstrada pelo requerente relativamente aos direitos ou interesses jurídicos que, dizendo violados, agora pretende ver (urgentemente) acautelados.
O requerente não alega, aliás, quaisquer factos próximos ou contemporâneos da instauração do presente procedimento cautelar e que sejam susceptíveis de traduzir um acréscimo ou agravamento dos danos ou prejuízos sofridos em consequência da conduta dos requeridos praticada já lá vão anos.

Como alegado vem no requerimento inicial, a aquisição da propriedade da fracção em causa ocorreu na sequência de venda promovida em execução hipotecária promovida contra os requeridos, os quais já desde há muito antes da instauração da mesma execução vêm ocupando a fracção, ocupação que continuaram a fazer após a aludida venda judicial, recusando-se a entregá-la ao requerente, motivo porque entende este que o seu direito de propriedade vem sendo por eles violado.
Daqui que conclua o requerente que, a não ser deferido o requerido, “irá a requerente sofrer graves prejuízos e de muito difícil reparação no direito de propriedade e de posse que detém sobre a dita fracção” (ut artº 15º do requerimento inicia) - posse aquela que diz deter há já mais de 15 anos (artº 3º do mesmo requerimento).

Ora, do exposto logo se deduz que se lesão há pelos requeridos do seu direito de propriedade e posse do requerente, a mesma já se consumou há anos - pelo menos há dois anos, como bem se anota no despacho recorrido, pois seguramente que desde a venda judicial e respectiva adjudicação da propriedade à requerente os requeridos deixaram de ter título válido para a ocupação e/ou posse da fracção. Pelo que desde então ficou (e assim permaneceu) o requerente privado do gozo da propriedade da fracção, continuamente ocupada pelos requeridos.

Daqui que se não alveje que a eventual demora na decisão da acção a propor possa trazer lesão ao direito de propriedade ou à posse da requerente diferente daquela que já ocorreu.
A lesão em causa encontra-se desde há cerca de dois anos consumada - invasão da propriedade e posse --, sendo que desde então se verifica o eventual incómodo e/ou prejuízo que daí possa existir para o requerente em caso de venda (por ocupação da fracção), sendo certo, portanto, que o que ocorre agora mais não é do que a manutenção dessa mesma situação. Ou seja, as consequências da ocupação pelos requeridos não se podem qualificar de “lesões futuras”, mas, simplesmente, como “meros efeitos futuros de lesões já consumadas” (estas consubstanciadas, in casu, pela ocupação em si mesma).

Daqui, portanto, que se não verifique o designado periculum in mora. É que se o requerente se preocupasse com tal perigo, certamente que não teria deixado passar os meses... até anos!, nada fazendo para pôr os requeridos “na rua”, só agora se lembrando que, afinal, a demora na decisão na acção definitiva a instaurar (de restituição de posse, diz a requerente, ut artº 14º do requerimento inicial) lhe pode causar “graves prejuízos e de muito difícil reparação no seu direito de propriedade”.

Não se pode olvidar que sempre podia o requerente (durante todo este longo período de tempo) ter lançado mão do meio adequado a resolver a sua situação/preocupação: o meio executivo contemplado no artº 901º CPC. - onde poderia socorre-se, designadamente, dos meios previstos no artº 840º, ex vi do artº 930º, ambos do CPC.
Percute-se: afinal, onde está a urgência do requerente em acautelar a lesão dos seus direitos?

Não se esqueça que o processo cautelar não visa a correcção de situações, mas tão somente prevenir lesão que venha a ser grave e dificilmente reparável [Cfr. Ac. da Rel. de Évora, de 11.06.1987, Bol. M.J., nº 368º, a pág. 631] (o que se não alveja ser o caso).

O agravo não merece provimento, claudicando as conclusões das alegações do agravante.

CONCLUINDO:
Não se justifica requerer providências em relação a lesões já consumadas, a não ser que a lesão consumada fundamente, de sua vez, justo receio de outras lesões futuras e idênticas. Todavia, na aferição do carácter de tais lesões, deverá ter-se sempre presente a distinção a fazer entre estas lesões futuras e aqueles que sejam meros efeitos futuros de lesões já consumadas.
O processo cautelar não visa a correcção de situações, mas tão somente prevenir lesão que venha a ser grave e dificilmente reparável.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo agravante.

Porto, 21 Outubro de 2004
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Raínho Ataíde das Neves