Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0455508
Nº Convencional: JTRP00037401
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PRESTAÇÃO
Nº do Documento: RP200411220455508
Data do Acordão: 11/22/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - O FGADM tem uma função de garante da obrigação de prestação de alimentos devidos a menores pelos seus progenitores, se incobráveis por impossibilidade destes.
II - Atenta o "Ratio Legis" do diploma que criou o Fundo de Garantia, não se pode considerar que a prestação posta a seu cargo é autónoma da dos progenitores inadimplentes.
III - O Fundo de Garantia é responsável pelas prestações em atraso, desde Março de 2003, data a partir da qual deixaram de ser pagas pelos progenitores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que constituem o Tribunal da Relação do Porto.

1. RELATÓRIO

O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de ........... propôs Acção Tutelar Comum Com Vista à Entrega de Menores a Terceira Pessoa em representação dos menores B.......... E C..........., pedindo se determine que os mesmos continuem à guarda dos avós paternos e fixando-se um regime de visitas aos progenitores e o contributo mensal destes a titulo de alimentos.
Em conferência, foi proferida sentença homologatória de acordo, nos termos do qual os menores foram dados à guarda e cuidados dos avós, fixando-se uma prestação mensal de alimentos, de € 100 a cargo da progenitora, e de € 50 a cargo do progenitor.
Posteriormente, o Ministério Público em representação dos menores veio requerer, nos termos do disposto no art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 75/98 de 19 de Novembro e art.ºs 1.º e 3.º, do Decreto Lei n.º 164/99 de 13 de Maio, a fixação da prestação de alimentos que o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, em substituição dos progenitores, deve prestar aos menores com fundamento, em síntese, em que os progenitores nunca pagaram qualquer prestação alimentar, encontrando-se em dívida as prestações relativas aos meses de Março até Dezembro de 2003 e não sendo possível obter o pagamento coercivo de tais prestações. Os menores vivem com os seus avós paternos, sendo que os rendimentos desse agregado familiar são constituídos pelos proventos do trabalho do avô, que trabalha por conta própria na montagem de ar condicionado, apresentando uma declaração de I. R. S. relativa ao ano de 2001 com um rendimento bruto anual de € 5.182,20. O agregado familiar vive com dificuldades económicas, impondo-se o pagamento da prestação mensal de alimentos no valor de € 100 para cada um dos menores, com efeitos a partir de Março de 2003, sendo as prestações já vencidas no valor de € 2.000.
Realizadas as diligências instrutórias pertinentes foi proferida sentença, a qual, considerando procedente o pedido, fixou em € 150 a prestação alimentar substitutiva (€ 75 para cada menor), condenou o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a pagar essa quantia acrescida das prestações já vencidas desde Março de 2003.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, notificado dessa sentença dela interpôs recurso, admitido como Agravo, pedindo a exclusão das prestações vencidas desde Março de 20003 do montante a suportar pelo Fundo, pois, no seu entender, a cargo deste fica apenas a prestação fixada, que é uma prestação nova, iniciando-se o seu pagamento no mês seguinte à notificação da respectiva decisão não sendo devido o pagamento das prestações não pagas pelos progenitores. Em abono do seu entendimento cita numerosa jurisprudência dos Tribunais da Relação de Évora, Coimbra, Lisboa e Porto.
O Ministério Público contra alegou, dizendo tratar-se de prestação da mesma natureza da que incidia sobre os progenitores e pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

O Mm.º Juiz manteve a decisão recorrida.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com interesse para decisão do objecto do Agravo são os acima descritos e para eles remetemos, uma vez que a questão a decidir se configura como uma questão de direito.
O agravante põe em causa o acerto da decisão recorrida com um conjunto de argumentos de natureza jurídica pelos quais perpassa a ideia base da preocupação com o aumento da despesa pública que possa advir da interpretação nela contida.
Quanto a estes – preocupações com a despesa pública – por excederem as atribuições deste Tribunal diremos apenas que foram, certamente, considerados pela vontade colectiva a que, no vulgo, se designa por legislador, não podendo ser aceites como mais um elemento interpretativo.

Quanto aos fundamentos de natureza jurídica propriamente ditos, alega o agravante, em síntese, que a Unidade do Sistema Jurídico, a ”Ratio Legis”, o princípio de interpretação contido no art.º 9, n.º 3, do C. Civil e o espírito da lei, apontam no sentido de que se deve fazer uma interpretação restritiva dos diplomas que regem o Fundo de Garantia, no sentido de que visam assegurar a prestação de alimentos devidos a menores, um mês após a notificação do Tribunal e não o pagamento de débitos acumulados anteriormente. Mais refere não ser de aplicar o disposto no art.º 2006.º, do C. Civil, ainda que por analogia, pois a prestação de alimentos a cargo do Estado é uma prestação nova, de diferente natureza da prestação do devedor. E, em abono do deu entendimento cita numerosa jurisprudência, cujo vector comum se traduz no entendimento de que a prestação a cargo do Estado é uma obrigação autónoma e independente e não uma transferência pura e simples da obrigação do devedor de alimentos.

Vejamos.

Tendo em atenção um quadro normativo internacional, próprio do ordenamento jurídico em que o Estado Português se insere, de que se destacam:
- as Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, R(89)1 de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestação de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais;
- A Convenção Sobre os Direitos da Criança adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade;

a Assembleia da República aprovou a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, criando um novo instituto que pode designar-se, de acordo com a epígrafe do art.º 1.º, como "Garantia de Alimentos Devidos a Menores". Esse novo instituto veio a ser regulamentado pelo Decreto Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, o qual também tomou as providências orçamentais necessárias à sua execução. Esta legislação ordinária, para além de se inserir no quadro normativo supra nacional referido, vem dar cumprimento ao comando estabelecido no art.º 69.º, da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe, como passamos a citar por se nos afigurar essencial ao enquadramento da questão sub Judice, “1. As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. 2. O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.”.
Embora, em termos de classificação jurídica de normas constitucionais, lhe possamos atribuir uma dimensão programática, o certo é que o art.º 69.º, da C. R. P. apresenta um conteúdo tão concreto que dele podemos derivar, desde logo, para além do dever de legislar nesse sentido, imposto ao legislador ordinário, direitos individuais exequíveis, que a este se impõem. Como refere o ilustre constitucionalista, Prof. Gomes Canotilho, e de resto resulta da essência da interpretação jurídica, o respeito pelas normas constitucionais mais do que a conservação das suas normas pela lei ordinária, impõe o recurso à norma constitucional para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, pág. 1310). Exemplificando, nesta matéria, temos como certo que na ausência da legislação ordinária citada (Lei n.º 75/98 e Decreto Lei n.º 164/99), não deixaria de proceder a acção em que um menor demandasse o Estado Português pedindo a sua condenação a prestar-lhe, ele mesmo, os alimentos que o poder judicial não tinha conseguido obter dos seus progenitores, com fundamento não apenas na omissão legislativa mas também no direito que directamente lhe advém desse preceito constitucional. Isso mesmo se reconhece no preâmbulo do Decreto Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, no qual se escreve “Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (art.º 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
Ora, um comando constitucional tão concreto pode levar a que, por circunstâncias várias, entre elas a divergência quanto à extensão das políticas sociais ou dificuldades orçamentais, o legislador ordinário ou o interprete, mesmo excluindo os actos in fraudem legis, sejam levados a restringir o seu alcance prático. Tal não acontece com as leis ordinárias citadas e importa que também não aconteça com a interpretação das suas normas, a efectuar em face daquelas.
O art.º 9.º do C. Civil estabelece princípios gerais de interpretação que, podendo considerar-se uma aquisição pacífica da hermenêutica jurídica, não têm aplicação no âmbito estrito daquele Código.

São eles:
- A letra da lei, com a amplitude resultante do n.º 2 desse art.º 9.º;
- O pensamento legislativo (mens legis);
- A unidade do sistema Jurídico (conjunto de normas e princípios da ordem jurídica);
- As circunstâncias em que foi elaborada;
- As condições específicas do tempo em que é aplicada;

Sobre estes princípios acresce o que podemos considerar uma regra de bom senso interpretativo, a saber, “...o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (art.º 9.º, n.º 3, do C. Civil).
No uso de tais princípios interpretativos podemos, desde já, extrair duas conclusões de conteúdo negativo. A primeira para afastar o entendimento que retira do disposto no art.º 4.º, n.º 5, do Dec. Lei cit. argumento literal a favor da exclusão das prestações de alimentos anteriores. Ao dispor que “O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação do tribunal”, a lei pretende dizer apenas isso mesmo (prazo do pagamento), não permitindo o texto, minimamente, entender que a lei aí estabelece um critério para o juiz definir qual o momento a partir do qual nasce a prestação a cargo do Fundo (art.º 9.º, n.º 2, do C. Civil). A segunda para afastarmos a necessidade de qualquer interpretação restritiva do disposto nas leis ordinárias citadas uma vez que, nelas, o legislador não ultrapassou o principio que, quanto à protecção das crianças, resulta do comando constitucional (art.º 69.º C. R. P.).

Cumpre–nos, agora, no uso dos princípios supra referidos, perseguir o sentido legal quanto à vexata questio dos autos. Ao instituir o regime de garantia de alimentos devidos a menores, em cumprimento do disposto no art.º 69.º, da C. R. P., a lei ordinária propôs-se satisfazer o direito destes aos alimentos que lhes são negados pelos progenitores a eles obrigados, o que é substancialmente diverso de um qualquer subsídio (alimentício, de formação, de sobrevivência ou semelhante). E muito menos é mais uma prestação social, resultante da magnanimidade do príncipe. O Estado reconhece o seu dever de garantir alimentos ao menor perante a ineficácia do poder judicial em os obter dos progenitores a tal obrigados (é sabido que, desde à muito, os Tribunais têm na matéria uma eficácia semelhante à do sistema fiscal, só conseguindo efectivar o direito a alimentos de menores sobre os trabalhadores por conta de outrem e, entre estes, sobre os servidores do próprio Estado). É esta a ratio iuris que preside ao propósito da lei (mens legis). E, perante ela, no dizer preclaro de Francesco Ferrara, “É preciso que a norma seja entendida no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer obter. Pois que a lei se comporta para com a ratio iuris, como o meio para um fim: quem quer o fim quer também os meios” (Interpretação e Aplicação das Leis, Arménio Amado, 1978, pág.141).
Que o menor tem necessidade de alimentos resulta ipso facto da natureza intrínseca da obrigação de alimentos (art.ºs 2003.º e 2004.º, do C. Civil) e da decisão judicial que os fixou a cargo dos progenitores. A urgência dessa necessidade pode até ditar o estabelecimento de uma prestação provisória a cargo do Fundo (art.º 3.º, n.º1, da Lei n.º 75/98). Qual, então o fundamento para defender o nascimento da prestação a cargo do Fundo, com a consequente obrigação de pagamento, apenas no mês seguinte à notificação ao organismo da Segurança Social? Não havendo argumento literal razoável, como já vimos que não há, também não existe ratio iuris que a tal nos conduza. Resta-nos uma motivação não judicial, de natureza psicológica, que existe sempre que se trata de alimentos em dívida. Os alimentos cuja dívida se acumulou, em termos psicológicos, passam a ser isso mesmo, uma dívida acumulada, um possível enriquecimento do alimentando e não a satisfação de uma necessidade do alimentando. Esse preconceito relativo aos alimentos acumulados esquece realidades sociais indiscutíveis, que se prendem com as formas de sobrevivência do ser humano, ao nível da economia doméstica. É sempre possível deixar de comprar roupas de criança recorrendo à caridade alheia, é sempre possível reduzir a alimentação a um mínimo de subsistência, é sempre possível recorrer ao endividamento em dinheiro ou em géneros, mas tudo como recurso transitório que não pode reproduzir-se eternamente. E não foi este o querer do nosso legislador constitucional para o qual o Instituto da Garantia de Alimentos Devidos a Menores não é uma forma de caridade pública, exercida pelo príncipe com o dinheiro dos contribuintes, mas uma forma de estabelecimento de um direito. As prestações de alimentos em dívida são, assim, tão necessárias ao alimentando como as que se venham a vencer após a decisão judicial que fixou a prestação substitutiva a cargo do Fundo.
O conjunto de normas e princípios da ordem jurídica (a unidade do sistema jurídico) poderiam levar-nos a outro entendimento. Nesse âmbito se movem algumas decisões judiciais para as quais a prestação a cargo do Fundo é uma prestação autónoma e nova, em face da obrigação de alimentos a cargo dos progenitores e não cumprida. Ora, a respeito dessa conceptualização, usando o brocardo latino, quod est demonstrandum. A prestação de alimentos a cargo do Fundo supõe uma prestação de alimentos a cargo dos progenitores e não paga, voluntária ou coercivamente (art.º 1.º Lei n.º 75/98), só subsiste enquanto aquela e o seu não cumprimento subsistirem (art.º 3.º, n.º 4, Lei n.º 75/98. e art.º 3.º, n.º1, Dec. Lei n.º 164/99), o seu pagamento confere ao Fundo o direito de reembolso perante o obrigado a alimentos ( art.º 6.º, n.º 3, Lei cit. e art.º 5.º do Dec. Lei n.º 164/99) e o quantum da mesma é fixado por decisão judicial com um limite máximo de 4 UC por devedor (art.º 2.º da Lei n.º 75/98 e art.º 3.º, n.º 3 do Dec. Lei n.º 164/99). Acresce que, como resulta do escopo do Instituto, a função desta prestação é sempre uma função de garantia relativamente à obrigação de alimentos a cargo dos progenitores. Não vislumbramos, pois, que o conjunto de normas e princípios da ordem jurídica nos permitam defender a tal autonomia desta obrigação (a cargo do Fundo) em face daquela.
Também as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, aliás próximas, como resulta do acima expendido quanto à mens legis, não permitem a defesa da tese da prestação autónoma. E no mesmo sentido aponta a regra de bom senso interpretativo contida no art.º 9.º, n.º 3, do C. Civil.
Bem andou, pois, a decisão recorrida ao fixar a prestação a cargo do Fundo desde Março de 2003, data a partir da qual era devidas as prestações não pagas pelos progenitores, seguindo, aliás o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 31/01/2002.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Porto, 22 de Novembro de 2004
Orlando dos Santos Nascimento
José António Sousa Lameira
José Rafael dos Santos Arranja