Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0612040
Nº Convencional: JTRP00039334
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CRIME
AMEAÇA
Nº do Documento: RP200606210612040
Data do Acordão: 06/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 449 - FLS. 33.
Área Temática: .
Sumário: Comete o crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º,1 CP, o arguido que, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”, por tal conduta integrar ameaça com mal futuro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos autos de processo comum (singular), que sob o nº …../01.3TAVFR, correram termos pelo ….º Juízo Criminal da Comarca de Santa Maria da Feira, o arguido B…… foi submetido a julgamento, acusado pela prática de um crime de ameaça, p.p. pelo artº 153º, 1, do CP. Efectuado o julgamento, viria a ser proferida sentença que condenou o arguido pela prática do referido crime numa pena de 40 dias de multa à razão diária de 15 euros; na parcial procedência do pedido civil, mais foi o arguido condenado a pagar à assistente/ofendida C……. a quantia de 500 euros.

Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1 – Os factos imputados ao arguido e dados como provados que sustentam a sua condenação por um crime de ameaças p. e p. pelo art. 153 nº 1 do C. P. resumem-se a o arguido em tom sério ter dito que queria uma resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”
2 – Tal imputação é irrelevante para sustentar a condenação do arguido por um crime de ameaças p. e p. pelo art. 153º nº 1 do C. P..
3 – Pois que, o crime de ameaça pressupõe e é indissociável de um mal futuro.
4 - De tal forma que, se a ameaça é iminente, como no caso “sub júdice”, a liberdade de determinação não chega a ser afectada.
5 - Se a ameaça iminente se concretizar, terá sido praticado o crime anunciado. Se não se concretizar, a vitima não fica inibida ou receosa de decidir ou fazer o que quer que seja, porque a possibilidade de sofrer o mal é algo que já não existe, por fazer parte do passado.
6 – E, a expressão “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”, não contém mais do que o anúncio de um mal iminente.
7 – Pelo que, não cometeu o Arguido o crime pelo qual foi condenado na sentença proferida pelo tribunal “a quo”
8 – Assim, deve ser absolvido da prática de um crime de ameaças p. e p. pelo art. 153 nº 1 do C. P.
9 – Como também deve ser absolvido do Pedido de indemnização cível contra si formulado pela Ofendida.
10 – Se tal não se entender o que apenas por mera hipótese de raciocínio se admite, sempre a pena de € 600,00 (seiscentos Euros), correspondente a 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de €15,00 (quinze Euros) que foi aplicada ao ora Recorrente peca por excessiva, sendo desproporcional à gravidade dos factos não tendo levado em conta todas as atenuantes que ao caso se mostram aplicáveis.
11 - Pois que, o Arguido o qual nasceu em 22.05.1951, é primário e os factos ocorreram em Outubro de 2001, mais concretamente no dia 03, tendo já decorrido mais de 4 anos desde a data em que ocorreram, sem que tivesse ocorrido qualquer outra situação deste jaez entre arguido e ofendida ou entre o arguido e quem quer que fosse.
12 - É uma pessoa que se encontra perfeitamente integrada na sociedade, respeitadora, séria e honesta, sendo diminutas, para não dizer inexistentes, as necessidades de prevenção especial,
13 - Pelo que, caso se considere que o Arguido cometeu um crime de ameaças p. e p. pelo art. 153 nº 1 do C. P., o que apenas por hipótese de raciocínio de admite, sempre será de atenuar a medida concreta da pena de multa que lhe foi aplicada, para uma que de forma real satisfaça no caso em concreto, de acordo com a personalidade do Recorrente, e todas as atenuantes que ao caso se mostram aplicáveis, as necessidades de prevenção geral e especial que qualquer pena deve seguir.
14 – Pelo que a decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos art.s 153 nº 1, 40º, 71º e 72º, e do C. P.
Termos em que, deve conceder-se provimento ao recurso e em consequência revogar a decisão recorrida, alterando-a por outra na qual o Arguido seja absolvido.

Respondeu a assistente C……, concluindo pela manutenção do decidido. Também o MP em primeira instância respondeu, concluindo pelo não provimento do recurso.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu parecer concluindo pela rejeição do recurso, por ser manifesta a sua improcedência.

A este parecer respondeu o recorrente, concluindo como anteriormente.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Factos assentes:
O arguido e a assistente C….. foram casados mas separaram-se aproximadamente em 1993, decorrendo o processo de divórcio aproximadamente até 1999, sendo que, em Outubro de 2001, continuavam em conflito sobre a partilha dos bens.
No dia 03 de Outubro de 2001, cerca das 08H30, em frente ao edifício onde residia a C…… e quando esta se preparava para se deslocar para o trabalho, encontrando-se já sentada na sua viatura automóvel, à frente, do lado do passageiro, juntamente com o seu filho D……., o arguido abordou-a inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo e impedindo-a assim de a fechar enquanto dizia, em tom sério, que queria uma resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”.
Em consequência desta conduta do arguido, C……. sentiu medo e viveu durante meses em sobressalto, receando que o arguido se abeirasse dela e a agredisse fisicamente, o que lhe provocou transtornos na sua vida, designadamente no seu desempenho como professora.
O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era idónea a causar medo à C….., pretendendo perturbar o seu sentimento de segurança, bem sabendo que ao actuar da forma descrita agia de modo proibido e punido por lei.
O arguido era bancário e está actualmente reformado, auferindo uma pensão mensal de cerca de 700 euros.
É sócio, juntamente com a sua actual mulher, de uma ervanária que factura cerca de 2.500 euros mensais e que tem apenas uma empregada.
Vive com a esposa, que é osteopata, e dois enteados, já adultos, em casa arrendada.
Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

DECIDINDO:

Todas conclusões formuladas pelo recorrente, sem porem em causa a factualidade assente, vão no sentido da sua absolvição, já que sendo a ameaça em causa iminente e não futura, não está preenchida a previsão típica do crime por que foi condenado; conclui também pela absolvição do pedido civil; para a eventualidade de ser entendimento de que o crime em causa está integrado pela factualidade assente, pede a atenuação da pena.

Começaremos por dizer que, nos termos do disposto no artº 400º, 2, do CPP, «o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada». Analisado o pedido de indemnização civil formulado a fls. 44 e seg.s, logo se constata que o valor peticionado (200.000$00) não atinge a alçada do tribunal recorrido, sendo, assim, insusceptível de impugnação por via de recurso. Por tal razão, vai o recurso civil rejeitado, por ser a decisão irrecorrível, sob essa perspectiva.

Na parte criminal, a questão central do recurso prende-se com a interpretação a dar à norma do artº 153º, 1, CP e à integração da factualidade assente nos seus tipos objectivo e subjectivo.
Dispõe a norma citada que «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de autodeterminação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
Ameaçar corresponde ao acto de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico, injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros. Torna-se necessário que, aos olhos do homem médio, dotado das características individuais do ameaçado, a concretização futura do mal anunciado dependa ou apareça dependente da vontade do agente.
Para o preenchimento do tipo de crime exige-se que a actuação do agente se revista de determinadas características que a tornem adequada a provocar na vítima receio ou inquietação. O preenchimento da factualidade típica basta-se, pois, agora com a criação de uma concreta situação de perigo para o bem jurídico tutelado, independentemente do dano eventualmente produzido.
Tratando-se de um crime de perigo concreto é necessário, para o seu preenchimento, que, através de um juízo ex ante, se reconheça na ameaça proferida efectiva potencialidade intimidatória, isto é, aptidão para intimidar, criar sentimentos de medo ou de inquietação.

Como se diz no ‘Comentário Conimbricense do C.P.’, Tomo I, pag. 343, «o mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência».

O presente crime é de qualificar como delito de carácter circunstancial, já que a valoração jurídico-penal da acção desenvolvida deve analisar-se a partir das expressões proferidas, das acções cometidas, do contexto que elas tiveram lugar, das condições pessoais de ameaçante e ameaçado e demais circunstâncias que sirvam para contextualizar o facto. Por outro lado, a ameaça deve ser séria e credível, sob o ponto de vista quer do emissário, quer do destinatário.

Da factualidade assente retiram-se os seguintes pontos que servem para contextualizar as circunstâncias da ameaça em termos da sua seriedade e bem assim da sua natureza não iminente:

1. O arguido e a assistente haviam sido casados um com o outro mas separaram-se aproximadamente em 1993, decorrendo o processo de divórcio aproximadamente até 1999, sendo que, em Outubro de 2001, continuavam em conflito sobre a partilha dos bens.
2. No dia 3 de Outubro de 2001, em frente ao edifício onde residia a C…… e quando esta se preparava para se deslocar para o trabalho, o arguido abordou-a inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo e impedindo-a assim de a fechar enquanto dizia, em tom sério, que queria uma resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”.
3. Em consequência desta conduta do arguido, C……. sentiu medo e viveu durante meses em sobressalto, receando que o arguido se abeirasse dela e a agredisse fisicamente.

Do ponto 1. resulta a circunstância de, à data dos factos, o arguido e a assistente se encontrarem desavindos acerca da partilha dos bens do seu dissolvido casal, o que denota de modo implícito, a natureza não iminente da ameaça, já que com ela pretendia o arguido resolver esse assunto pendente, o que, é óbvio, não quereria concretizar naquele concreto momento da ameaça.
Do ponto 2. resulta a superioridade física do arguido (em razão do sexo, também) já que usando da força física impediu a liberdade ambulatória da assistente com vista ao proferimento da ameaça; se ele quisesse resolver o assunto na altura, não estaria a ameaçar mas sim a concretizar uma agressão, sendo, desse modo, redundante e desnecessária a ameaça; assim, a ameaça projecta-se para o futuro, sendo de interpretar as palavras do arguido – de acordo com o seu teor literal e com o contexto em que são proferidas – no sentido de que, caso a assistente não resolva o assunto da casa, ela não sabe do que ele é capaz, já que ele se diz capaz de a ‘estoirar’ (o que integra, no mínimo, ameaça com crime contra a integridade física).
Do ponto 3. resulta que a assistente interpretou a ameaça como séria e credível e projectada sobre o futuro, interligada à resolução do assunto da partilha da casa, ao ponto de ficar assustada durante meses, o que não seria justificável se a ameaça tivesse cominado mal iminente, sem qualquer projecção para o futuro. Tal é até compaginável com o «contexto de actuação do arguido, de conflito latente», como muito bem é referido na douta sentença recorrida.

Por tudo isto, bem andou a M.ma Juíza ‘a quo’, ao decidir que a conduta do arguido integrava ameaça com mal futuro.

Subsidiariamente, pede o recorrente que a pena seja ‘atenuada’, cremos que no sentido de ver a sua medida reduzida; invoca para tal efeito a sua personalidade e demais circunstâncias aplicáveis e finalidades das penas.

É indubitável que a conduta do arguido preenche a previsão da norma penal na qual foi integrada.

Dito isto, analisemos as concretas circunstâncias atendidas na sentença recorrida para a determinação do tipo e da medida da pena, já que a estatuição penal é alternativa de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.

Como ao caso cabe pena alternativa, privativa e não privativa da liberdade, «o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (artº 70º do CP). Como daqui se vê, verificados estes pressupostos de prevenção e de repressão do crime, o tribunal está vinculado a dar preferência à pena não detentiva. Isso vale como princípio. No caso concreto o Tribunal deu preferência fundamentada à segunda (pena de multa), uma vez que as exigências de prevenção e de reprovação não são, apesar de prementes, de tal ordem que determinem a aplicação da mais gravosa pena detentiva. Para tal tomou em linha de conta todas as circunstâncias provadas.

A medida concreta da pena - dadas as circunstâncias que contra o arguido militam (dolo intenso, por directo, intensa culpa, acentuada ilicitude, e ainda aquelas que o favorecem (delinquente primário, integrado em termos familiares e laborais), e a moldura que vai até 120 dias de multa - de apenas 40 dias, ao contrário do que pretende o recorrente, se de algum mal padece – mas não padece – é da sua benevolência.

A fixação do montante diário da pena de multa, dentro dos limites legais, “não deve ser doseada por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade” (Ac. R.C. de 13-07-95, C.J. XX, tomo 4, pág. 48).

A pena concreta, encontrada nesse verdadeiro jogo dialéctico de deve e haver entre as circunstâncias que beneficiam e aquelas que militam contra o arguido (nos termos do artº 71º do CP), devem representar para eles um importante sacrifício, que o faça sentir o quão reprovável foi as sua conduta e os perigos que o esperam caso nelas reitere (prevenção especial).

A sua razão diária, atendendo ao que prescreve o artº 47º, 2, pode variar entre 1€ e 498,80€, fixada pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

Assim, atendendo à situação pessoal, familiar e económica do arguido, já referidas, mostra-se adequada a taxa diária encontrada, de 15€, que se situa muito mais próxima do mínimo legal do que, sequer, do seu eixo médio, e representará para ele um sacrifício, com o qual tem de arcar como consequência do seu acto ilícito.

Por tudo isso, não ocorre qualquer violação das normas contidas nos artºs 153º, 1, 40º, 71º e 72º, todos do CP.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em:
I – Negar provimento ao recurso, na parte criminal, confirmando, deste modo, a muito douta sentença recorrida.
II – Rejeitar o recurso, na parte relativa á condenação civil, dada a sua irrecorribilidade.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC’s.

Porto, 21 de Junho de 2006
Manuel Jorge França Moreira
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
José Manuel baião Papão