Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0535644
Nº Convencional: JTRP00038583
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA JUDICIAL
TERCEIROS
POSSE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RP200512070535644
Data do Acordão: 12/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I- O comprador na venda judicial é considerado terceiro nos termos do artº 5º do Cód. Registo Predial, relativamente ao que anteriormente adquiriu o imóvel por escritura pública de compra e venda (não registada antes do registo daquela aquisição judicial);
II- É que, na venda executiva -- não obstante se tratar de uma venda realizada coercivamente, por via judicial, no interesse dos credores do executado--, bem assim na venda anterior em que o executado vendeu o mesmo bem por escritura pública de compra e venda, o transmitente é o mesmo (o próprio executado), sendo, por isso, ambos os compradores, terceiros para efeitos do artº 5º do Cód. Reg. Predial.
III- Tendo um terceiro adquirido uma fracção autónoma e procedido ao respectivo registo, o anterior adquirente da mesma fracção, mas que não registou a aquisição, não pode juntar à sua posse a dos antepossuidores para efeitos de usucapião (acessão na posse), sob pena de o instituto do registo deixar de ter interesse para os particulares, pois nenhuma protecção ou segurança lhes conferiria.
IV- Assim, a alínea a) do nº 2 do artº 5º do CRP deve ser entendida como se referindo apenas e só à posse efectivamente exercida pelo terceiro a partir da aquisição não registada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No ..º Juízo, ..ª Secção dos Juízo Cíveis do Porto, B........., casado, e mulher C.........., ambos comerciantes e residentes na Rua ...., n.º ... - .... ...., na ....., Matosinhos, intentaram acção declarativa de condenação, na forma ordinária, contra D......., S.A., sociedade anónima com sede na Rua ...., n.º ... - ..º ...., no Porto.

Pedem:
A condenação da ré no reconhecimento, do seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma referida em 1º da petição inicial e da invalidade da venda judicial da mesma fracção efectuada a seu favor (da R.), com as legais consequências no Registo Predial.

Alegam:
A aquisição daquele direito por usucapião, aquisição não registada no registo predial antes de a R. ter logrado registar a aquisição da mesma efectuada em sede de venda judicial.
Concluem ser nula a venda judicial, por constituir uma venda de coisa alheia.

Regularmente citada, a R. contestou, a fls. 31 e seguintes, em síntese, alegando ser ela a proprietária da fracção em causa, impugnando os factos articulados pelos AA. por os desconhecer, e pedindo, em sede de pedido reconvencional, o reconhecimento do seu alegado direito.
Conclui pela total improcedência da acção e pela procedência do pedido reconvencional.

Os AA. replicaram, a fls. 66 e seguintes, contestando o pedido reconvencional, e, em síntese, mantendo o alegado na p. i.

Foi proferido o despacho saneador, e foram seleccionadas a matéria de facto assente e a base instrutória, que foram objecto das reclamações de fls. 94 e 115, ambas totalmente deferidas.
Procedeu-se ao julgamento, que decorreu pela forma constante da acta, com observância do formalismo legal, tendo sido proferido o despacho que dirimiu a matéria de facto controvertida (fls. 118).

Por fim, foi proferida a seguinte
Decisão
Pelo exposto, julgo a acção procedente, por provada, e a reconvenção improcedente, por não provada, e consequentemente:
1 - Declaro os AA. B....... e mulher C......... únicos e exclusivos proprietários da fracção autónoma designada pelas letras "BH", correspondente a um lugar de garagem na cave, com entrada pelo n.º ..., do prédio sito na Rua ...., n.ºs ... e ..., da freguesia da ....., concelho do Porto, descrito na 2a Conservatória do Registo Predial desta cidade sob o n.º 00027, e condeno a R. D........., S.A. a reconhecer aquela qualidade.
2 - Declaro nula, nos termos do art.º 892º do Código Civil, a venda judicial da referida fracção efectuada na execução ordinária n.º 4102/93, que correu termos pela ...ª Secção da ...ª Vara Civel do Porto, com as legais consequências a nível de registo predial, ordenando-se o cancelamento do registo efectuado com base naquela transmissão.
3 - Absolvo os AA. do pedido formulado pela R..”

Inconformada com o sentenciado, veio a Ré interpor recurso, apresentando alegações que termina com as seguintes

“CONCLUSÕES:
a) O problema em discussão nos autos é o do conflito entre adquirentes do mesmo transmitente;
b) Os Apelados adquiriram, através de escritura pública, mas não registaram o facto aquisitivo;
c) A apelante adquiriu o imóvel através da venda judicial, sendo que essa aquisição foi efectuada, por aplicação do artº 824º nº 2 do Código Civil, livre de quaisquer direitos reais com registo posterior ao da penhora efectuada na execução;
d) Consequentemente, o eventual direito de propriedade dos Apelados, porque não registado antes da penhora, caducou por via da venda judicial ( cf o aludido artº 824º nº 2 do Código Civil );
e) Acrescendo, ainda, que a Recorrente registou o seu facto aquisitivo, sendo considerada terceira para efeitos de registo (artº 5º nº 4 do Código de Registo Predial );
f) Os Apelados, porque não registaram atempadamente a sua aquisição, não podem, por aplicação dos artºs 5º nºs 1 e 4, 6º e 7º do Código de Registo Predial, opor o facto aquisitivo à Recorrente, sendo que esta, por via dos mesmos preceitos, pode opor a sua posição jurídica aos Recorridos;
g) Por via de todos os mencionados preceitos a posição jurídica da Recorrente adquirente deve prevalecer sobre a dos Apelados;
h) A sentença ao preceituar que os Apelados adquiriram a propriedade derivadamente não pode vir, ao mesmo tempo, afirmar que também adquiriram originariamente através da usucapião, sob pena de insanável contradição, havendo por isso urna contradição entre os fundamentos e a decisão, o que leva à nulidade da sentença Cf. Artº 668º,nº 1, c) do Código de Processo Civil )
Sem prescindir, sempre se dirá que no presente caso nunca haveria aquisição por usucapião uma vez que não decorreu o prazo necessário para tal, que no mínimo seria de quinze anos.
j) A contagem do prazo foi interrompida pela entrega judicial do imóvel à Recorrente (cf. Artºs 1292º e 323º do Código Civil):
k) Acrescendo, os Apelados invocaram a usucapião, através da presente acção, ainda não tinham decorrido os quinze anos, sendo que tal situação foi contestada também ainda antes do decurso do prazo. Tais procedimentos levariam, também, por via dos aludidos artºs 1292º e 323º do Código Civil, à interrupção do prazo.
l) No caso vertente, também não poderia haver acessão na posse "sob pena de a regra da inoponibilidade por falta de registo não ter na pratica qualquer eficácia .
m) A norma do nº4 do artº 5.º do Código de Registo Predial, com a interpretação efectuada pela sentença recorrida, é inconstitucional, o que desde já se invoca, porque violadora do princípio da igualdade, previsto no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa

NORMAS VIOLADAS:
Art.sº 323º, 824 nº 2, 1256º, 1292º e 1296º do Código Civil; Arts.º 5, 6 e 7 do Código de Registo Predial; artº 668º, nº1, alíneas c) do Código de Processo Civil; e art.º 13º da Constituição da República Portuguesa

TERMOS EM QUE DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, SUBSTITUINDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA POR OUTRA QUE ABSOLVA AS APELANTES DOS PEDIDOS FORMULADOS PELOS APELADOS E SER JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO RECONVENCIONAL OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, SER DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS”.

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando-se pela manutenção do sentenciado.

Foram colhidos os vistos.

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a resolver são as seguintes:
- Nulidade da sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão (artº 668º, nº1, al. c) do CPC);
- Se o comprador na venda judicial é considerado terceiro nos termos do artº 5º do Cód. Registo predial;
- Se pode o adquirente que não registou juntar à sua posse a dos antepossuidores para efeitos de usucapião (acessão na posse).
- Se estão preenchidos os requisitos para a aquisição do direito de propriedade por usucapião por banda dos autores/apelados;
- Se é inconstitucional a interpretação do nº 4 do artº 5º do CRP no sentido de que o adquirente através de venda judicial não é terceiro para efeitos de registo.

II. 2. FACTOS PROVADOS:
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
1 Através da inscrição G-2 Ap. 39/100892, encontra-se registada na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto, como provisória por dúvidas, a aquisição a favor de E......., C.C. F......., na comunhão de adquiridos, a fracção autónoma designada pelas letras BH, correspondente a um lugar de garagem na cave, com entrada pelo n.º .... da Rua ....., do prédio em regime de propriedade horizontal sito na referida Rua ...., n.ºs .... e ...., freguesia da ....., Porto, descrito sob o n.º 00027 e inscrita na matriz predial respectiva sob o art.º 2413-BH.
2 - Através da inscrição G-2 Ap. 17/200891 - Av. 1 foi a aquisição referida em 1 convertida em definitiva.
3 - Na execução movida por "G......., S.A." contra E......., C.C. F........, na comunhão de adquiridos, e que com o n.º 4012/1993 correu termos na ..ª Secção da ...ª Vara deste Tribunal, foi penhorada em 21/02/95 a fracção supra referida, penhora que se encontra registada através da inscrição F-2 Ap. 127, 250399.
4 - Nessa execução, que prosseguiu a impulso do Ministério Público, para pagamento das custas, foi designado para o dia 28/11/02 a venda da fracção mediante propostas por carta fechada, tendo sido aceite a proposta da R. que ofereceu pelo bem penhorado a quantia de 8.000 Euros.
5 - Por despacho proferido nessa execução, em 19/12/02, foi adjudicada à R. a fracção e ordenado o cancelamento do registo da inscrição F2- Ap. 127/250399.
6 - Através das inscrições G-3 Ap. 66/27012003 e F -2 Of. Ap.66/27012003 respectivamente, encontra-se registada a favor da R. a aquisição da fracção e cancelada a inscrição F- 2.
7 - Mediante requerimento dos AA. de 11/03/03 foi registada como provisória por dúvidas a favor deles, e através da inscrição G-4 Ap. 01/11032003, a aquisição da mesma fracção, em virtude de a mesma se encontrar registada a favor da R..
8 - Por escritura pública de 9/05/94, outorgada no 2º Cartório Notarial de Matosinhos, E........ e mulher F......... declararam vender e o A. declarou comprar, pelo preço de Esc.1.500.000$00(7.481,97 Euros), a fracção BH, pagando o preço aos vendedores neste acto. Averbaram a aquisição na Repartição de Finanças competente e na caderneta predial.
9 - Em 1994, os AA. pretenderam adquirir um lugar de garagem do prédio em que se situa a fracção BH para aí aparcarem diariamente as suas viaturas.
10 - A R. requereu a entrega da fracção em causa, a qual lhe foi entregue em 10/02/2003.
11 - Os AA. exercem a actividade de comerciantes, explorando duas lojas comerciais designadas "H......." e "I........", sitas na Rua ....., n.º .... (Galeria .......), no Porto.
12 - A partir de 9 de Maio de 1994, os AA. logo passaram a utilizar e a fruir a fracção, ininterruptamente e até ao presente, nela estacionando a sua viatura automóvel. Fazem-no como se ela fosse sua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
13 - Por si e antepossuidores, desde há mais de trinta anos, e ininterruptamente, os AA. encontram-se na posse da fracção servindo-se pessoalmente dela, na convicção de serem proprietários, e fazem-no sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, e sem violência.

III. O DIREITO:

Vejamos, então, as questões suscitadas.

Quanto à nulidade da sentença:

Alega a apelante existir contradição entre os fundamentos e a decisão, o que, a ser verdade, preencheria a aludida nulidade, nos termos do artº 668º, nº1, al. c) do CPC.
Não concordamos.

Uma sentença (decisão judicial) é nula quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que essa sentença expressa, sendo que a inexactidão dos fundamentos de uma decisão configura erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão (A. dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, 5º, 141, A. Varela e Outros, Manual Proc. Civil, 1ª ed., 671, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, III, p. 246, e Acs. do STJ, BMJ, 281/241, 380/444, 381/592, 432/342, e CJ, 1994,II,263, 995,II,57).
Deve, pois, distinguir-se a nulidade da sentença do erro de julgamento.
Ora, o que o recorrente põe em causa, é, simplesmente, a subsunção jurídica dos factos apurados.
Porém, in casu, a decisão final recorrida mostra-se coerente com os seus fundamentos, sendo o corolário da fundamentação de facto e de direito constantes da mesma. A decisão, certa ou errada, está de acordo com os respectivos fundamentos.
Repete-se: o que nos parece é apenas e só que a apelante discorda da interpretação ou subsunção jurídica feita na sentença recorrida. Só que isso - com o devido respeito - nada tem a ver com a referenciada nulidade da sentença recorrida.

Refere o saudoso Prof. ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil anotado, 5º - 141, que uma sentença é nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, isto é, quando os fundamentos invocados devessem, à luz da lógica, conduzir a uma decisão diversa – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 93.02.04 in Pº 082824, N.º Convencional JSTJ00018136, Acórdão da Relação do Porto de 03.04.1995 in Pº 9551093 N.º Convencional JTRP00014394, Acórdão da Relação de Coimbra de 1993.10.06 in BMJ 430º p.ª 531º, Acórdão da Relação do Porto de 13.06.1991 in Pº 9050848, N.º Convencional JTRP00002085.
Ora, à luz da interpretação (jurídica) feita pela Mmª Juiz a quo, não vemos que aquela lógica devese conduzir a solução da tomada.

Preocupa-se a apelante com o facto de os autores terem alegado a aquisição da propriedade por via derivada (compra e venda) e por via originária (usucapião).
Não vemos que tal não seja possível e/ou que tal configure qualquer contradição.
Entende-se dominantemente que a causa de pedir nas acções reais, v.g. as de reivindicação, é o título invocado como aquisitivo da propriedade que o autor pretende ver reconhecido e titulado - cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, ed. de 1979, pág. 322 e Ac. da Rel. do Porto de 30 de Janeiro de 1979, in B.M.J. n.º 284, pág. 286.
Todavia, tem-se exigido a alegação e prova de uma forma originária de aquisição.
Assim, a respeito da acção de reivindicação, escreveu o Prof. Menezes Cordeiro que “a reivindicação é uma acção difícil: a indicação da causa de pedir só estará completa se o reivindicante indicar uma aquisição originária, ou melhor, aclarar como se constituiu o seu direito real”- Direitos Reais, ed. da Imprensa Nacional, 1979, vol. II, pág. 847.
E, efectivamente, abundante jurisprudência exige sempre a alegação e prova da aquisição originária, ordinariamente a usucapião. Isso, sem prejuízo da possibilidade de alegação (simultânea) da aquisição derivada - in casu da outorga da escritura pública de compra e venda do imóvel.
É certo que, se, por hipótese, o prédio estivesse registado em nome do autor, parece que nos deveríamos contentar com a alegação e prova da presunção legal da propriedade derivada da inscrição no registo - embora, obviamente, assumindo os perigos decorrentes da possibilidade de a presunção ser ilidida - cfr., v.g., Acs. do S.T.J. de 14-10-1976, (B.M.J. n.º260, pág. 97), de 13-1983 (B.M.J. n.º 327, pág. 246, com anotação concordante do Prof. Antunes Varela na Rev. de Leg. e Jur., ano 120º, pág. 214.
É também é certo que os autores se podiam quedar pela alegação da aquisição originária.
No entanto, - desde logo prevendo a possibilidade de uma interpretação do conceito de terceiros para efeitos de registo que lhes não interessa - nada obstava a que no petitório inicial fizessem menção, como fizeram, da existência da escritura pública de compra e venda da fracção.
Ou seja, é precisamente tendo em conta o tão controverso conceito de terceiros para efeitos de registo, actualmente consignado no nº 4 do artº 5º do CRP, que sempre assistia obvio interesse aos autores na invocação da outorga da escritura pública de compra a venda, para mostrar que tinham adquirido “de boa fé do “mesmo transmitente” um direito sobre “a mesma coisa” em litígio. O que em nada contendia com a alegação dos elementos atinentes à usucapião.

Improcede, assim, a primeira questão.

Quanto à questão de saber se o comprador na venda judicial é considerado terceiro nos termos do artº 5º do Cód. Registo predial - relativamente ao que anteriormente adquiriu o imóvel por escritura de compra e venda (não registada antes do registo da compra na aludida venda judicial):

Este é, sem dúvida, o cerne da apelação - dependendo, por isso, o seu desfecho da resposta que esta questão merecer.

Como é sabido, a jurisprudência e doutrina têm-se dividido entre a adopção de um conceito amplo de registo - aquele que considera terceiro aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que não figura no registo e que com ele seja incompatível [Neste entendimento, a compra na venda judicial de um imóvel prevalece sobre qualquer venda anterior do mesmo bem mas que não tenha sido registada ou, tendo-o, o registo seja posterior ao registo da respectiva penhora.] -- e um conceito restrito [Em que não considera terceiro, por exemplo, o referido adquirente do imóvel na venda judicial, em processo executivo, pois entende que a aquisição não deriva do mesmo transmitente que anteriormente vendeu o bem, embora sem registo. Isto é, para estes, terceiros são apenas os supostos adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum, por isso, não considerando terceiro o exequente que nomeou o bem à penhora, ou o que nessa execução o veio a comprar, sendo-lhe oponível a aquisição anterior do mesmo bem, mesmo que não registada (Cfr. definição de Manuel ed. Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 19).].
A questão foi tão debatida maxime na jurisprudência, vindo a dar origem aos acórdãos do STJ para fixação de Jurisprudência nºs 15/97, de 20.05.1997 [Publicado no DR, I Série A, nº 152, de 4.7.199-- que considerou “terceiros para efeitos de registo predial, todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente”] e 3/99, de 18.05 [Publicado no DR I Série, de 10.07.99 - que considerou “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, os adquirentes de boa fé, de um mesmo direito transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa”].

Após os aludidos acórdãos uniformizadores, entra em vigor a redacção do artº 5º do CRP, decorrente do Dec.-Lei nº 533/99, de 11.12, que no seu nº 4 veio dispor:
“Terceiros, para efeitos de Registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Daqui se vê que o Ac. de uniformização de jurisprudência nº 3/99 veio a tornar-se caduco perante a nova redacção do nº 4 do artº 5º do CRP - redacção esta que parece ter adoptado claramente o conceito de terceiro sustentado por aquele Ac. Uniformizador nº 3/99.
Assim sendo, embora a posição vencedora do Ac. Un. nº 15/97 tenha ficado vencida pelo Ac. Un. 3/99, o certo é que agora legem habemus, impondo-se, por isso, e só, ver qual o entendimento que resulta da lei actual para a solução do caso sub judice.

Será que se pode dizer que o primeiro adquirente - que não registou a aquisição - e o comprador na venda judicial (em processo de execução) se podem considerar adquirentes “de um autor comum”?
Isto é, será que a aquisição por diferentes pessoas de direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio por actos negociais sucessivos (v.g. escritura pública de compra e venda) do titular inscrito (conceito restrito) não difere da situação em que a mesma aquisição ocorreu em consequência de acto unilateral de terceiro, intermediado, ou não, pela autoridade pública e segundo os termos da lei – o que ocorre v.g., nos actos que assentam em decisão judicial, como a hipoteca judicial, ou actos judiciais, como o arresto, a penhora, a venda judicial --(conceito lato)?

Numa primeira impressão, parece que - na sequência do Ac. Uniformizador nº 3/99-- a redacção do nº 4 do artº 5º do CRP o legislador terá optado pelo conceito restrito de terceiro.
De facto, a letra da lei praticamente que transcreve as palavras do Prof. Manuel de Andrade, que defendia esse conceito restrito [Ver Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, págs. 20, onde se escreve que “terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiriram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio”].

Antes de mais, há impõe-se salientar que a al. a) do nº 2 do artº 5º do CRP, prescreve que o disposto no nº 1 [Que dispõe que “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo] se não aplica à “aquisição fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do nº 1 do artº 2º”. Donde poderíamos ser levados a concluir que não só quem não registou poderia juntar a sua posse à dos antecessores, como que a posse se sobreporia à aquisição registral.
Tal entendimento não pode aceitar-se, porém. É que a aceitar-se esse entendimento, então tal tornaria em parte inútil o instituto do registo, na medida em que o que adquiriu mas não registou podia remediar a situação invocando, simplesmente, a sua posse e a do transmitente e, mesmo, a dos antecessores deste !
Daqui que nos pareça mais acertado o entendimento de que a referida alínea a) do nº 2 do artº 5º do CRP deve ser entendida como se referindo apenas e só à posse efectivamente exercida pelo terceiro a partir da aquisição não registada (ou, então, à posse … de um estranho).

Defendendo o conceito restrito de terceiros, surgiram, é certo, alguns acórdãos do S.T.J., como é o caso do Ac. de 4.4.2002, Col. Jur./STJ, Ano X, tomo I, 154 - este recorrendo ao conflito de presunções: a de propriedade de que beneficia o possuidor (artº 1268º, nº1 CC) e a de propriedade de que beneficia o titular inscrito (artº 7º CRP) [No caso presente, a recorrer-se a estas presunções júris tantum, ganhariam os autores, pois o início da sua posse é anterior ao registo da Ré] - e o Ac. de 19.02.2004 [Este trazendo á colação o artº 291º do CC. Só que este artigo parece não valer para os casos previstos no artº 5º do CRP, pois os terceiros ali previstos são aqueles que adquirem de quem não tinha legitimidade para alienar, por motivo de vício substantivo do seu direito. É o caso de A adquirir de B um direito, que este adquirira de C, por acto inválido].

Cremos, porém, que o legislador não pretendeu adoptar um conceito de terceiros demasiado redutor. Daí que se possa dizer que adquirem “de um autor comum”, tanto o que adquiriu o bem por acto negocial com intervenção voluntária do titular inscrito - v.g. escritura pública de compra e venda (como aconteceu com os aqui autores)--, como o que o adquiriu por acto não negocial (penhora, arresto, venda judicial).
Assim tem sido entendido pelo STJ, como se vê, v.g., nos Acs. de 4.4.2002 (Col. Jur./STJ, ano X, tomo I, 15) e de 14.01.2003 (Col. Jur./STJ, Ano XI, tomo I, 19 [Este último acórdão sustenta também não reconhecer ao adquirente preterido pelo registo do terceiro o direito de juntar à sua posse a dos antecessores, para efeitos de usucapião]).
Como referem Antunes Varela e Henrique Mesquita, in Revista de Leg. e Jur., ano 127º, pág. 20, terceiros “são não só aqueles que adquiriram do mesmo alienante direitos incompatíveis, mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não tenha intervindo nos actos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca, venda judicial etc…) de que tais direitos resultam” - sublinhado nosso.
Era o que, aliás, já sustentava Vaz Serra, na mesma Revista, ano 103º, pág. 165, ao escrever: “pode dizer-se que, se um prédio for comprado a determinado vendedor e for penhorado em execução contra este vendedor, o comprador e o penhorante são terceiros: o penhorante é terceiro em relação à aquisição feita pelo comprador, e este é terceiro em relação à penhora, pois os direitos do comprador e do penhorante são incompatíveis entre si e derivam do mesmo autor”.
Se o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tão digno de tutela é aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, troca, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter o registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (in casu a ré, que, adquirindo a fracção na execução, após o registo da penhora, registou essa aquisição).
No caso presente a compra feita pelos autores não foi registada, nem antes, nem depois do registo da penhora da fracção. Pelo que, procedendo a ré ao registo da sua aquisição, a compra feita pelos autores é ineficaz em relação à penhora registada e subsequente aquisição por banda da ré, na execução, mediante proposta em carta fechada.
E pouco importa falar aqui de boa ou má fé por banda da ré, que registou. Pois a redacção do nº 4 do artº 5º do CRP nem, sequer, fala da boa fé dos adquirentes - ao contrário do que se previa no Ac. Uniformizador nº 3/99 [Embora nos pareça que deve continuar-se a defender o requisito da boa fé do adquirente em segundo lugar que registou em primeiro. Até por imposição daquilo que alguns denominam como a reserva moral do sistema jurídico]

Portanto, se é certo que se poderia pensar que, falando a lei em aquisição de um “autor comum” (cit. Nº 4 do artº 5º CRP), as aquisições dos autores e da ré (esta em venda judicial) não seriam aquisições desse mesmo autor, tal, porém, só aparentemente é assim.

A este propósito, permitimo-nos fazer a seguinte transcrição do Ac. do STJ de 7.7.99, Col.Jur./STJ, Ano VII, Tomo II, a págs. 166/167:
“Tem sido largamente controvertida a natureza da venda executiva.
Mas pode ter-se hoje como assente a ideia segundo a qual assume nela um papel determinante a intervenção do Estado, que, sem e, eventualmente, contra a vontade do executado, apreende e, substituindo-se a este, faz vender o bem penhorado para com o respectivo produto assegurar, na medida do possível, o cumprimento coercivo das obrigações daquele- cfr. Alberto dos Reis, Da Venda no Processo de Execução, Revista da Ordem dos Advogados, Ano I, nº 4, pág. 431, Vaz Serra, Realização Coactiva da prestação, BMT nº73, págs. 306-307, Artur Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., pág. 256, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed. pág. 283, nota 44 e Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, pág. 255 - fazendo-o no exercício de um poder de autoridade que lhe é próprio.
Já este STJ, no seu acórdão de 17/11/77, in BMJ nº 271,pág. 166, entendeu que na venda executiva o executado é substituído no acto da venda pelo juiz enquanto órgão do Estado.
Aquelas opiniões doutrinárias convergem ainda em que há por parte do adquirente na venda executiva uma aquisição derivada, cujos pólos são o executado e ele próprio; a intervenção do Estado, feita na posição de substituto do executado, é de pura instrumentalidade no exercício de um poder de direito público, mas sem que alguma vez o bem vendido entre na sua titularidade.
O que explica o disposto no art. 24º nº 1, que espelha com rigor a realidade jurídica inerente a esta venda e do qual flui que neste caso o comprador é um "terceiro" para efeitos de registo predial, ainda dentro da concepção consagrada no último acórdão uniformizador- cfr. Antunes objectivo da posse -o corpus-, que deve ser acompanha Varela e Henrique Mesquita, RU, ano 127º, pág. 19, nota 2.
[…….]
A partir destes princípios somos levados a concluir que na venda executiva o executado é o transmitente, não obstante todas as peculiaridades dos mecanismos legais e a circunstância de se tratar de uma venda que lhe é imposta- cfr. neste sentido, os acórdãos deste STJ de 16/11/88, BMJ nº 381, pág. 651, e de 28/11/95, revista nº 87.467, já citado.
Por isso a venda por via da qual a ora recorrida comprou em execução movida contra o executado […] o prédio aqui disputado e a venda feita pelo […..] ao […] têm o mesmo transmitente, do que se extrai ainda a conclusão de que este e ora recorrida são terceiros para efeitos do artº 5º do Cód. Reg. Predial, tal como os define a nova jurisprudência do uniformizadora na revista nº 1.050/98.
E por isso esta segunda venda – apesar de ser, cronologicamente, a mas antiga - não é oponível à recorrida por não ter sido inscrita no registo predial.
Poderá parecer estranho, numa observação desprevenida, que, em casos como este, a compra e venda anterior não inscrita no registo seja oponível ao exequente que penhorar o prédio e já o não seja contra quem o adquiriu em venda executiva realizada na sequência dessa penhora.
Mas ambas as situações são bem diferentes entre si. Numa penhora, ou arresto, ou hipoteca judicial, estamos apenas perante garantias de um direito de crédito, sendo que a existência deste não fica prejudicada com a referida oponibilidade, pois se mantém íntegro na sua substância, podendo, por isso, vir ainda a ser satisfeito com recurso a outros bens do devedor. E os poderes do proprietário sobre a coisa penhorada não são transmitidos.
Mas, havendo venda executiva, dá-se a transmissão do prédio para um adquirente que confiou na aparência evidenciada pelo registo predial, caracterizado pela sua função publicistica.
A protecção do terceiro adquirente não pode ser limitada aos casos em que o mesmo proprietário celebra dois negócios jurídicos sucessivos e compatíveis a respeito do mesmo prédio; ela tem a sua justificação na publicidade de actos aquisitivos de direitos reais que, pela sua inscrição registral, se presume serem válidos e eficazes e na confiança que ao público tem que inspirar essa sua inscrição.
E as convicções daí extraídas pelos particulares são da mesma natureza, quer estejam a negociar com o titular inscrito, quer ocorram à venda forçada em execução.
A prevalência da venda executiva em casos como este já foi reconhecida por este STJ pelos seus acórdãos de 25/02/93, revista nº 82.207, e de 28/11/95, revista nº 87.467” - sublinhados nossos.

No mesmo sentido, salientamos, entre outros, o Ac. do STJ de 14.01.2003, in Col Jur./STJ, Ano XXVIII, Tomo I, págs. 20/21, de que nos permitimos transcrever, também, a seguinte passagem:
“Tem sido largamente controvertida a natureza da venda executiva. A este propósito poderá ver-se o Acórdão a Supremo Tribunal de Justiça publicado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Ano 2002 Tomo 1, Pág. 154, concluindo-se no mesmo, pela pena a ilustre Senhor Conselheiro Gusmão de Medeiros que: As diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais confluem na ideia de que a intervenção do Estado sem, e eventual mente contra, a vontade do próprio executado, e substitui-se a este, faz vender o bem penhorado para assegurar cumprimento coercivo do crédito do exequente (e demais créditos reclamados), de sorte que, nessa venda (que configura uma aquisição derivada) surge como vendedor o próprio executado".
Poderemos, assim, concluir que estamos perante duas vendas em que o transmitente é comum.
Destarte, havendo venda executiva - com correlativa transferência da propriedade nos termos do artigo 824º a CC - confrontam-se dois direitos (de propriedade) reais da mesma natureza e com o mesmo conteúdo, sendo que a compra pelo adquirente na execução, se de boa fé registada antes da do anterior comprador, prevalece sobre esta, em conformidade com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº3/99 de 18.5.99, que de resto viria a ter consagração legal por via do Dec-Lei nº 533/99, de 11.12 que aditou ao artigo 5º do Código de Registo Predial um novo número, o n°4, que dispõe: "Terceiros, para efeito de registo, são aqueles que tenham adquirido de um aula comum direitos incompatíveis entre si".
Efectivamente, em situações como a dos presentes autos, não se trata apenas de privilegiar o credor munido da garantia real com funções acessórias em relação ao seu direito de crédito. Ao invés, a concorrência de uma segunda alienação impõe que a ordem jurídica atenda ao direito formalmente adquirido no âmbito de uma venda judicial, designadamente quando o adquirente estava de boa fé e fez inscrever no registo predial o seu direito.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 19.6.2001, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano2001, TomoIII, Pg.36, "A fundamentação do Ac. do STJ nº 3/99 vai neste sentido. Nele se refere expressis verbis que "efectuada a compra, por via de arrematação em hasta pública, ou por qualquer outro modo de venda judicial este modo de alienação, na perspectiva em causa, tem, pelo menos, a mesma eficácia daqueloutra. Também aqui a prioridade do registo ultrapassa aquela incompatibilidade”.
Em suma, importará concluir que a protecção de terceiros não fica limitada aos casos em que é o proprietário a celebrar dois negócios incompatíveis, sendo extensiva a situações, como a reflectida nestes autos, em que a segunda venda, registada, tem natureza judicial.
“Aqueles que, confiados nas regras do registo, adquirem um direito por via da acção executiva movida contra o titular inscrito, depois de a penhora ter sido registada, são merecedores do mesmo grau de protecção que deve ser conferido aos quês negoceiam directamente com aquele titular, confiantes em que o direito substantivo ainda permanece na esfera do transmitente, tal como resulta do registo predial [Cfr. o citado acórdão da Relação de Coimbra publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano 2001,Tomo III, Pág. 36]
[………………………..].”
“Se os anteriores adquirentes..., não registaram o seu direito não podem invocar perante terceiros o facto de terem adquirido a posse dos anteriores titulares, sob pena de total ineficácia das regras do registo predial.
O mesmo juízo deve ser feito quanto ao argumento de que a acessão de posses permitiria a invocação da aquisição originária por via da usucapião.
Admitindo, porventura, que o vendedor do prédio já tivesse a qualidade de possuidor e que a posse tivesse sido transmitida aos AA. e com estes tivesse continuado, isso determinaria a prevalência da posição dos recorrentes sobre a dos RR.
Assume-se a identificada doutrina definida por Henrique Mesquita e Antunes Varela quando defendem que "se o primeiro adquirente que não registou o negócio aquisitivo pudesse, para efeitos de usucapião (cuja eficácia erga omnes não depende do registo), invocar contra o segundo adquirente, que teve o cuidado de requerer a inscrição, a posse do transmitente e a dos antecessores deste – até onde fosse necessário para completar, pela via da acessão ou adição de outras posses, o prazo de usucapião – o instituto do registo deixaria de ter qualquer interesse para os particulares, pois nenhuma protecção ou segurança lhes conferiria "(na RLJ, ano 1270, pág. 26)."

Concordamos plenamente com a posição sufragada, designadamente, nos arestos supra parcialmente transcritos.
E assim, temos que, por força do registo, há que fazer prevalecer o direito da ré sobre os autores que, embora adquirindo validamente a fracção, não procederam ao registo dessa aquisição.

É, no fundo, a tão velha e discutida função (essencial) do registo.
Assim, dispõe o artigo 1º do C.R.P. que "o registo destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário".
Em sentido amplo, com a publicidade pretende-se tornar notado, difundir no público o conhecimento de um determinado facto ou relação. Numa acepção mais restrita, a publicidade consiste na exteriorização ou divulgação de uma situação jurídica, com vista à sua cognoscibilidade geral.
Em sentido técnico, porém-- que é aquele que ora nos ocupa--, a publicidade é um sistema destinado a proporcionar à sociedade o conhecimento de determinadas situações jurídicas para protecção dos direitos em geral e segurança do tráfico. É este o significado da publicidade do registo.
No nosso sistema, é certo, o princípio geral é o de que o registo tem efeitos meramente declarativos, sendo condição de oponibilidade a terceiros dos actos a ele sujeitos, embora o acto seja plenamente válido e eficaz inter partes.
No entanto, como já há muito ensinava Francisco Ferrara Júnior, L' ipoteca mobiliare, Roma, Società Editrice del Foro Italiano, 1932, pág. 1, a publicidade no direito tem o escopo de tornar conhecidas certas situações jurídicas que têm importância para terceiros, enquanto estes, ignorando-as, poderão sofrer alguma consequência. E, nas palavras do mesmo autor, "A publicidade na vida jurídica tem o escopo de defesa, de garantia (...). Pode dizer-se que o desenvolvimento de um ordenamento jurídico está a par com o desenvolvimento da publicidade e tanto mais um sistema positivo é perfeito quanto mais é desenvolvida a publicidade, de modo que os cidadãos tenham um meio legal e certo de conhecimento de todas as relações que entrem na esfera de interesses e não sejam possíveis surpresas ou armadilhas, vínculos ocultos ou alienacões ignoradas. A vida jurídica deve assegurar a tranquilidade jurídica" - sublinhado nosso.
É, também, neste entendimento que se envereda pela defesa dos interesses da ré - que registou, certamente desconhecendo a celebração da escritura a favor dos autores, pois não vem alegado tal conhecimento e do registo nada constava - em detrimento dos interesse dos autores - que não se preocuparam em registar, apesar da escritura que celebraram datar de 1994 e só quase dez anos depois ter sido feito o registo a favor da ré.

Como sustentámos supra, Autores e ré adquiriram a fracção de uma “autor comum”, para efeitos do funcionamento do artº 5º do CRP. Tal “autor comum” é, naturalmente, o executado.
É que na venda executiva o Estado vende, mas em lugar do executado, agindo por ele. “O tribunal, como órgão de execução, vende no lugar do executado os bens penhorados. Porque o executado é faltoso, o seu consentimento para a venda é substituído pelo do Estado, que vende os bens como poderia tê-los vendido o executado, para pagar aos seus credores” (Vaz Serra, Realização Coactiva da Prestação (Execução), BMJ 73, pp. 304/305).
Também Antunes Varela e Henrique Mesquita, em anotação ao Ac. STJ de 3.6.92, RLJ, Ano 127, a pág. 19, nº2, sustentam que “o vendedor é o próprio executado, embora se trate de uma venda realizada coercivamente, no interesse dos seus credores, por via judicial”.
Assim sendo, portanto, sendo a ré terceiro para efeitos de registo, uma vez que só ela procedeu ao registo da aquisição da fracção, tem a protecção que o citado CRP lhe confere.

Não cremos que a questão deva ser decidida com recurso às presunções: a decorrente do registo (artº 7º CRP) e a decorrente do artº 1254º (decorrente da posse titulada - presumindo-se que há posse desde a data do título).
Na verdade, se recorrêssemos a estas presunções - como fez o Ac. do STJ de 4.4.2002, supra referido--, teríamos a prevalência da posse dos autores, por anterior ao registo da ré (ut artº 1268º CC).
Mas não nos parece que este seja o caminho correcto, salvo o devido respeito por diferente opinião.
Efectivamente, como se sustentou nos votos de vencido produzidos no citado Ac. STJ de 4.4.2002, a prevalecer a presunção baseada na posse dos autores, por ser anterior ao registo, nunca teria aplicação o artº 5º do CRP. É que, normalmente quem compra e não tem o cuidado de registar adquire desde logo a posse - é o “constituto possessório”, artº 1264º do CC (Henrique Mesquita, RLJ 132º, p. 132). E sendo assim, não se vislumbra utilidade do artº 5º CRP.
Cremos, assim, que a razão está do lado dos Exmºs Srs. Conselheiros Nascimento Costa e Quirino Duarte Soares que ali votaram vencidos, ao sustentarem que o artº 1268º, nº1, do CC “contém um princípio geral que cede sempre que se entre na esfera de aplicação do artº 5ºdo CRP, preceito especial”.

O exposto não impede, porém, que os autores invoquem a usucapião, desde que se verifiquem os respectivos requisitos, designadamente o prazo da posse.
Ou seja, os autores podiam, sem dúvida, fazer prevalecer o seu direito de propriedade, não com recurso à simples presunção de posse decorrente do citado artº 1268º, nº1 CC, mas, sim, recorrendo à usucapião [Oliveira Ascensão, Publicidade, 1989, p. 82, e Direitos Reais, 1971, p. 143].
Só que, então, entramos na análise da questão seguinte.

Quanto à questão de saber se pode o adquirente que não registou juntar à sua posse a dos antepossuidores para efeitos de usucapião (acessão na posse):

Como dissemos, os autores, ao outorgarem a escritura de compra e venda da fracção adquiriram desde logo a posse (artº 1264º CC).
Mas será que podem juntar à sua a posse dos antepossuidores?
Respondemos negativamente a esta questão.

Efectivamente, estamos com os Professores Henrique Mesquita e Antunes Varela, ao sustentarem que "se o primeiro adquirente que não registou o negócio aquisitivo pudesse, para efeitos de usucapião (cuja eficácia erga omnes não depende do registo), invocar contra o segundo adquirente, que teve o cuidado de requerer a inscrição, a posse do transmitente e a dos antecessores deste – até onde fosse necessário para completar, pela via da acessão ou adição de outras posses, o prazo de usucapião – o instituto do registo deixaria de ter qualquer interesse para os particulares, pois nenhuma protecção ou segurança lhes conferiria "(na RLJ, ano 1270, pág. 26)."
Neste sentido, pode ver-se, entre outros, os Acs. do STJ de 7.7.99, Col./STJ, 1999, tomo 2, pág. 164 e de 14,01.2003 (Recurso nº 1499/01-6-Comarca de Aveiro).
Parece que assim deve ser entendido, salvo o devido respeito por diferente opinião. É que se assim não fosse as regras atinentes ao registo predial deixariam de ter interesse, já que bastava que qualquer interessado viesse invocar a aquisição pela usucapião fundada na acessão de posses para esvaziar de valor o registo [Não desconhecemos que há quem entenda de modo diferente, como é o caso do Ac. do STJ de 3.06.1992, in Bol.M.J. nº 418º, pág. 773.
Ali se escreveu, designadamente, que “o registo, salvo o caso de hipoteca, não tem efeito constitutivo, e a presunção derivada do registo cede mesmo relativamente a terceiros, pela aquisição fundada na usucapião”].

Como dissemos, porém, o exposto não impede que os autores invoquem a usucapião, desde que se verifiquem os respectivos requisitos, designadamente o prazo da posse. O que não pode é haver lugar, para efeitos dessa mesma usucapião, à invocação, contra a ré-- segunda adquirente, que teve o cuidado de requerer a inscrição--, da posse do transmitente, bem como da dos antecessores deste.

Quanto à questão de saber se se verificaram os requisitos da usucapião:
Respondemos negativamente a esta questão.

Antes de mais, é bom que se diga que, sendo, embora, necessária a invocação expressa da usucapião para que possa ser apreciada e reconhecida (artº 1292º e 303º CC), constata-se que no seu petitório os autores não pediram o reconhecimento do direito de propriedade por o terem adquirido por via da usucapião. Antes se limitaram a pedir que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a fracção “por a terem legitimamente adquirido aos anteriores legítimos proprietários e possuidores, por escritura pública de compra e venda datada de 09.05.1994” (cfr. fls. 14).
Isto é, afinal, pediram o reconhecimento do direito de propriedade, apenas por via da aquisição derivada e não da aquisição originária.

Porém, mesmo que os autores tivessem sustentado o seu pedido de reconhecimento de propriedade na usucapião, ainda assim se não tinha como verificado o requisito do prazo para tal forma de aquisição da propriedade. É que, tratando-se de posse titulada, em que o título não foi registado, o prazo de posse exigido por lei é de 15 anos, havendo boa fé (cfr. artº 1296º CC).
Ora, atenta a resposta negativa dada à questão anterior (acessão na posse) é bom de ver que, considerando a data da outorga da escritura pública de compra e venda da fracção (9.5.94 - data em que os autores iniciaram a sua posse), apenas em 9.5.2009 seria atingido aquele prazo.

Uma outra nota ou referência se impõe.
Veja-se que das respostas aos quesitos 4º e 5º resultou provado que “A partir de 9 de Maio de 1994, os AA. logo passaram a utilizar e a fruir a fracção, ininterruptamente e até ao presente, nela estacionando a sua viatura automóvel. Fazem-no como se ela fosse sua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.” - sublinhado nosso
Ora, se está provado que os só desde 9.5.94 é que os autores “passaram a utilizar a fracção”, ali passando a exercer, assim, os respectivos actos de posse - “nela estacionando a sua viatura automóvel”--, não se entende como se podia dizer (respostas aos quesitos 7º e 8º) que “Por si e antepossuidores, desde há mais de trinta anos, e ininterruptamente, os AA. encontram-se na posse da fracção servindo-se pessoalmente dela, …”.
Na verdade, apenas nas respostas aos quesitos 5º e 5º se descrimina ou especifica os actos de posse que os autores exerceram sobre a fracção: “nela estacionando a sua viatura automóvel”. Outros actos possessórios não vêm concretamente referidos nos factos provados, maxime nas respostas aos quesitos 7º e 8º-- onde praticamente mais não se fez do que usar, de forma vaga e conclusiva, as palavras da lei (arts. 1258º ss). Apenas nas respostas aos aludidos quesitos 4º e 5º se faz referência aos actos de posse (integrantes do corpus) que sobre a fracção, naturalmente, se poderiam exercer, que se reduzem, afinal, no estacionamento da viatura, pois não vem alegada que tivesse outra utilidade. Estava em causa, apenas e só, “um lugar de garagem, na cave” (cfr. al. A) da matéria de facto assente), esta, portanto, a utilidade que a fracção em causa era susceptível de proporcionar a quem a adquirisse.
Ora, tais actos de posse - o tal estacionamento nesse “lugar de garagem, na cave”-- só ocorreram a partir de 9 de Maio de 1994 (data da outorga da escritura pública de compra e venda da fracção- al. H) da matéria assente).

Inverificados estão, portanto, todos os requisitos necessários à aquisição do direito de propriedade sobre a fracção por banda dos autores com base na usucapião.

Quanto à eventual inconstitucionalidade da interpretação do nº 4 do artº 5º do CRP no sentido de que o adquirente através de venda judicial não é terceiro para efeitos de registo:

Sem embargo de se não vislumbrar, em qualquer caso, qualquer inconstitucionalidade, sempre se diga que se trata de questão que, obviamente, ficou prejudicada face ao entendimento supra sufragado de que o adquirente na venda judicial é terceiro para efeitos de registo, como tal devendo ser protegido.

Assim procedem as conclusões da apelação.

Face às respostas supra à questões suscitadas, é claro que o direito de propriedade alegado pelos autores não deveria ser reconhecido, impondo-se a improcedência da acção e a procedência do pedido reconvencional, com a consequente condenação dos autores/reconvindos a reconhecer a ré/reconvinte como única e legítima proprietária e possuidora da fracção autónoma descrita no artº 1º da petição inicial.

CONCLUINDO:
O comprador na venda judicial é considerado terceiro nos termos do artº 5º do Cód. Registo Predial, relativamente ao que anteriormente adquiriu o imóvel por escritura pública de compra e venda (não registada antes do registo daquela aquisição judicial);
É que, na venda executiva -- não obstante se tratar de uma venda realizada coercivamente, por via judicial, no interesse dos credores do executado--, bem assim na venda anterior em que o executado vendeu o mesmo bem por escritura pública de compra e venda, o transmitente é o mesmo (o próprio executado), sendo, por isso, ambos os compradores, terceiros para efeitos do artº 5º do Cód. Reg. Predial.
Tendo um terceiro adquirido uma fracção autónoma e procedido ao respectivo registo, o anterior adquirente da mesma fracção, mas que não registou a aquisição, não pode juntar à sua posse a dos antepossuidores para efeitos de usucapião (acessão na posse), sob pena de o instituto do registo deixar de ter interesse para os particulares, pois nenhuma protecção ou segurança lhes conferiria.
Assim, a alínea a) do nº 2 do artº 5º do CRP deve ser entendida como se referindo apenas e só à posse efectivamente exercida pelo terceiro a partir da aquisição não registada.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e julgando:
- A acção improcedente, com a consequente absolvição da ré/apelante dos pedidos formulados pelos autores/apelados;
- A reconvenção procedente, com a consequente condenação dos autores/reconvindos a reconhecer a ré/reconvinte como única e legítima proprietária e possuidora da fracção autónoma descrita no artº 1º da petição inicial.

Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos autores/apelados.

Porto, 07 de Dezembro de 2005
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves