Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0331343
Nº Convencional: JTRP00035729
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ARTICULADOS
CORRECÇÃO OFICIOSA
NULIDADE
Nº do Documento: RP200309180331343
Data do Acordão: 09/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Embora a afirmação da insuficiência ou imprecisão da alegação da matéria de facto que justifica o convite de aperfeiçoamento, previsto no artigo 508 n.3 do Código de Processo Civil, suponha sempre determinada valoração e ponderação por parte do juiz, não se está perante uma mera faculdade que este pode ou não cumprir.
II - Se o juiz se apercebe de insuficiências ou imprecisões do articulado susceptíveis de conduzir a uma decisão prejudicial à parte que o apresentou, tem o dever de a prevenir, proferindo despacho a convidar a parte a sanar essas deficiências, sendo ilegítimo que, em vez disso, venha, desde logo, a proferir decisão desfavorável com fundamento em tais insuficiências.
III - Nestas condições, porque a deficiência do articulado compromete o êxito da acção ou da defesa, a omissão do convite ao aperfeiçoamento constitui a nulidade prevista no artigo 201 n.1 do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
............. - Companhia de Seguros, S.A. intentou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra Albino ................

Pediu que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 13.217,62, acrescida de juros de mora legais contados desde a citação até integral pagamento.

Como fundamento, alegou, em síntese, que celebrou com Maria ......... um contrato de seguro do ramo automóvel relativo ao veículo de matrícula ..-..-CJ e que, como o Réu foi culpado num acidente de viação quando conduzia tal veículo e se pôs em fuga, abandonando o local e os respectivos ocupantes, que se encontravam feridos, pagou indemnizações a terceiros no aludido montante, pelo que pretende, agora, exercer o seu direito de regresso, ao abrigo do disposto na al. c) do art. 19º do DL 522/85, de 31 de Dezembro.

O Réu contestou, impugnando a matéria fáctica articulada na petição inicial e afirmando que a Autora não alegou qualquer quota de responsabilidade nos danos sofridos pelos lesados em resultado da conduta que lhe atribui de abandono dos sinistrados, nem alegou que, por causa desse hipotético abandono, é que se verificaram os danos que indemnizou ou o agravamento dos mesmos.
Concluiu pela improcedência da acção.

No saneador, por considerar que o processo continha já os elementos necessários, o Sr. Juiz passou a conhecer do mérito, tendo julgado a acção improcedente.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso a A., de apelação, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:
1. Considerou o Juiz a quo que os factos alegados na P.I e dados como provados nos pontos 5 e 6 da sentença não são suficientes para esclarecer se o abandono do local por parte do réu colocou as vitimas do acidente na situação de não receberem a tempo os primeiros socorros, agravando as lesões sofridas.
2. Em consequência desta análise o Juiz emitiu logo sentença, por considerar que no caso em apreço a seguradora, ora recorrente, não alegou e provou que os prejuízos reclamados resultam do abandono a que houve lugar. Logo, no entender do Juiz, não assiste o direito de regresso à ora recorrente.
3. Considera a recorrente que os factos por si alegados, apesar de sucintos, são de molde a serem provados em audiência de julgamento.
4. A verdade é que a ora recorrente alegou o abandono do local pelo réu e o facto essencial de esse abandono se repercutir obrigatoriamente no estado físico dos feridos, pelo simples facto de ter automaticamente levado a que a ajuda e apoio clinico a eles prestados se ter dado mais tarde. É do senso comum que quanto mais tempo ficarem os sujeitos abandonados num local sem assistência médica pior para o seu estado de saúde.
5. Logo, mesmo aceitando-se a doutrina referente ao direito de regresso do artigo 19º, alínea c) do DL 522/85 a prova da percentagem de danos que resultaram directamente do abandono somente seria efectuada e possível através de perícias médico-legais, mas a verdade é que com a decisão ora recorrida, que absolveu desde logo o réu do pedido, o Exmo Juiz a quo impossibilitou esse tipo de prova.
6. Ficaram assim coarctados todos os possíveis meios de prova da autora, quando é certo que foram alegados factos que consubstanciam o abandono e o hipotético agravamento da situação física dos sinistrados resultante desse abandono.
7. Na eventualidade de se considerar que a ora recorrente não alegou cabalmente que o abandono dos sinistrados contribuiu para o agravamento daqueles danos, a verdade é que sempre deveria o Exmo Juiz a quo ter aplicado o artigo 508º, nº 1, b) e nº 2 e 3 do Código de Processo Civil.
8. Na verdade, "...impõe-se ao juiz convidar os autores a aperfeiçoar a P.I. e não proferir Saneador-Sentença julgando a acção improcedente, com base nessa deficiência." (Ac. da Relação do Porto de 25.6.98: Col Jur. 1998, 3°, e BMJ, 478°, 456); também o AC. Relação de Coimbra, de 5.3.96: BMJ, 455° - 578 e doutrinalmente, entre outros, Prof. M. Teixeira de Sousa, na ROA, 1995, II, págs. 362 e ss).
9. Ora, seguindo a interpretação feita pelo Juiz do que foi alegado ou não na Petição Inicial, o que deveria ter sido feito era observar o plasmado nos artigos 508°, 266 e 266 A do CPC. Ao não seguir esta via, violou o Exmo Juiz a quo este princípio da cooperação e estes artigos processuais civis.
10. Na verdade, o poder dever conferido ao Juiz pelo artigo 508°, nº 3 do CPC resulta na prevenção das partes sobre putativas deficiências ou lacunas na sua alegação, sendo que a omissão desse poder dever constituiu uma verdadeira nulidade, por influir no exame e decisão da causa.
11. Acresce que este poder do Juiz não pode ser meramente discricionário, sob pena de, seguindo-se essa interpretação do artigo 508°, nº 3 do CPC, o referido artigo ser inconstitucional, por violação grosseira do princípio da igualdade e do acesso à justiça, inconstitucionalidades que agora expressamente se alegam e argúem, para todos os efeitos legais.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, devendo o douto despacho/sentença recorrido ser revogada.

O R. contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.
Após os vistos legais, cumpre decidir

II. Os factos

Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) A Autora exerce a indústria de seguros em vários ramos;
b) No exercício dessa sua actividade, a Autora celebrou com Maria .......... um contrato de seguro do ramo automóvel, relativamente ao veículo ligeiro de matrícula ..-..-CJ, titulado pela apólice n° ............., nos termos do qual a referida Maria ........... transferiu para a Autora a responsabilidade civil dos danos emergentes da circulação do CJ;
c) No dia 07/09/98, cerca da 01h30, na Avenida ............, em .........., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos automóveis de matrícula ..-..- CJ - propriedade da Maria ............ e tripulado pelo Réu - e de matrícula ..-..-GU - conduzido pelo seu proprietário António ..............;
d) O CJ e o GU seguiam, ambos, na Avenida ............, no sentido Poente/Nascente.

III. Mérito do recurso

No essencial, a recorrente suscita estas questões:
- foram alegados factos que consubstanciam o abandono e o hipotético agravamento da situação física dos sinistrados daí resultante;
- a não se entender assim, deveria o Sr. Juiz ter dado cumprimento ao disposto no art. 508º nº 3 do CPC, convidando a A. a aperfeiçoar a p.i.;
- a omissão deste poder-dever constitui verdadeira nulidade por influir no exame e decisão da causa;
- interpretando-se o referido artigo no sentido de que o mesmo confere ao juiz um poder discricionário, o mesmo é inconstitucional, por violação grosseira do princípio da igualdade e do acesso à justiça.

1. Deve começar por referir-se que a recorrente não se insurge contra o entendimento acolhido na douta sentença sobre o pressuposto e amplitude do direito de regresso previsto no art. 19º c) do DL 522/85, de 31/12, no caso de abandono de sinistrado.
Subscreve-se inteiramente a respectiva fundamentação, deveras convincente e apoiada em abundante jurisprudência das Relações e do Supremo.
Como aí se refere, o direito de regresso da seguradora com fundamento em o condutor ter abandonado o sinistrado só incide sobre o montante indemnizatório referente aos danos provocados pelo abandono ou ao agravamento desses danos, ou seja, apenas compreende os danos acrescidos e resultantes do abandono e não todos os emergentes do acidente.
Assim, no caso de abandono de sinistrado, é necessário que a seguradora alegue e prove que os prejuízos reclamados resultam do abandono a que houve lugar, não sendo suficiente a mera alegação e prova do abandono.

Sustenta a recorrente que alegou o abandono do local pelo R. e o facto essencial de tal se repercutir obrigatoriamente no estado físico dos feridos, pelo simples facto de ter automaticamente levado a que a ajuda e apoio clínico a estes prestado se ter dado mais tarde.
Não tem razão.

Na p.i., depois de descrever o acidente de viação em que intervieram os veículos CJ e GU, imputando a culpa ao R., condutor daquele, a A. alegou que, imediatamente após o acidente, o R. se pôs em fuga, abandonando o local e os ocupantes do CJ, que se encontravam feridos em consequência do acidente.
Acrescentou que deste acidente resultaram danos materiais no GU, que a A. teve de suportar e danos físicos nos referidos ocupantes.
Despendeu a quantia de € 13.217,62 nas indemnizações aos lesados, incluindo a devida à Companhia de Seguros P................ pela reparação do veículo GU.
Solicitou ao R. o reembolso dessa quantia, mas este não efectuou qualquer pagamento.

Decorre desta factualidade que a A. se limitou a alegar a fuga do R. e o abandono por este dos sinistrados.
Nada concretizou sobre as circunstâncias em que ocorreu esse abandono e se este contribuiu para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelos terceiros vítimas do acidente de viação.
Como parece evidente, o abandono não se repercute necessariamente nesse agravamento, nem implica sequer, por si, que tenha ocasionado qualquer atraso na prestação da assistência de que os sinistrados eventualmente careciam.

Assim e tendo presente o entendimento acima exposto, a acção, com os elementos fornecidos pela A., teria necessariamente de improceder.
2. Defende a recorrente que, a entender assim, deveria então o Sr. Juiz, ao abrigo do disposto no art. 508º nº 3 do CPC, convidar a A. a aperfeiçoar o seu articulado, por forma a que esta pudesse suprir as lacunas detectadas na alegação da matéria de facto.

Dispõe esse art. 508º:
1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do nº 2 do art. 265º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos artigos seguintes.
2. O juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
3. Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
(...)

Prevê-se neste normativo o despacho pré-saneador, que deve ser proferido após a apresentação dos articulados normais, antes de o processo avançar para a audiência preliminar.
Pretende-se com tal decisão, como refere Abrantes Geraldes [Temas da Reforma do Processo Civil, II, 77], impedir que o conhecimento do mérito da causa ou a justa composição do litígio sejam prejudicados por razões de mera forma, relacionadas com a falta de requisitos externos dos articulados, falta de documentos que necessariamente devam instruir a acção ou com a deficiente, insuficiente ou imprecisa articulação da matéria de facto.
Em qualquer uma das suas manifestações, o despacho de convite ao aperfeiçoamento constitui uma concessão do direito adjectivo ao direito material, visando impedir, como simples justificação formal, soluções substancialmente injustas.

Da própria redacção dos nºs. 2 e 3 do preceito decorre que estamos perante despachos de natureza distinta.
No primeiro caso, a expressão legal (o juiz convidará) revela uma verdadeira injunção dirigida ao juiz do processo: o juiz deve proferir decisão que possa determinar o aperfeiçoamento das irregularidades ou falhas detectadas.
Se a decisão não for proferida, esta omissão constitui nulidade processual, se a irregularidade for susceptível de influir no exame ou na decisão da causa – art. 201º nº 1 do CPC.

No segundo caso, a expressão pode ainda, em confronto com a imposição anterior, demonstra que a decisão pode (deve) ou não ser proferida, uma vez que as situações a que se dirige devem ser resolvidas de acordo com o prudente critério do juiz.
Trata-se aqui, como refere Abrantes Geraldes, de um poder-dever ou de um poder funcional, a desencadear pelo juiz sempre que seja confrontado com uma situação que, não sendo remediada, conduza a uma decisão prejudicial à parte causadora das insuficiências ou imprecisões em qualquer dos articulados [Ob. Cit., 80. Referindo-se também à qualificação como poder-dever, cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, 214 e Paulo Pimenta, A Fase do Saneamento do Processo Antes e Após a Vigência do Novo CPC, 194 e segs].
Acrescenta o mesmo Autor que não é legítimo que, perante evidentes falhas nos articulados, que incidam sobre o modo como as partes cumpriram o ónus de alegação da matéria de facto integradora da pretensão ou da defesa, o juiz se remeta a uma posição de inércia para, num momento posterior, retirar de tais falhas a argumentação necessária e proferir decisão em prejuízo da parte responsável pelas mesmas.

Teixeira de Sousa [Estudos Sobre o Novo Processo civil, 68] procede a uma distinção: alguns deveres de cooperação assentam numa previsão “fechada”, que não deixa ao tribunal qualquer margem de apreciação quanto à sua verificação; outros, pelo contrário, decorrem de uma previsão “aberta”, que necessita de ser preenchida pelo tribunal de acordo com a sua ponderação. Se o dever for estabelecido por uma previsão “fechada” – isto é, se a situação em que ele tem de ser observado não deixar ao tribunal qualquer margem de apreciação – a sua omissão constitui nulidade processual, se, como em regra sucederá, essa irregularidade puder influir no exame ou decisão da causa (art. 201º nº 1).
Diferentemente, se o dever resultar de uma previsão “aberta”, deve entender-se que a determinação da situação que o impõe cai no âmbito da discricionariedade do tribunal, pelo que a sua omissão não produz qualquer nulidade. Se, por exemplo, o tribunal considerar que o articulado da parte não necessita de qualquer correcção ou concretização e se, por isso, se abstiver de convidar a parte a aperfeiçoá-lo, essa omissão não é susceptível de originar nulidade. Note-se, no entanto, que esta ponderação não é sinónimo de arbítrio: o tribunal, se entender que necessita de ser esclarecido ou que deve prevenir ou consultar as partes, não tem qualquer opção entre exercer ou não o dever [Cfr. também sobre este último ponto, Abrantes Geraldes, Ob. Cit., 81].

Como afirma Lopes do Rego [Ob. Cit., 135], a discricionariedade judicial (que este Autor entende não se verificar no caso) deve sempre configurar-se como limitada, já que os critérios de conveniência e oportunidade que estão na sua base têm de se articular necessariamente com a realização do fim ou função essencial do processo: a justa composição do litígio com respeito pelos direitos e garantias processuais das partes.
Por outro lado, anota o mesmo Autor, o prudente arbítrio do julgador tem de ser entendido como pressupondo uma apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade.

Será, pois, de concluir que, embora a afirmação da insuficiência ou imprecisão da alegação da matéria de facto que justifica o convite de aperfeiçoamento, suponha sempre determinada valoração e ponderação por parte do juiz (um juízo de prognose quanto aos riscos que comportará a manutenção dos articulados tal como se encontram [Abrantes Geraldes, Ob. Cit., 79]), não se está perante uma mera faculdade que este pode ou não cumprir.
Se o juiz se apercebe de insuficiências ou imprecisões do articulado susceptíveis de conduzir a uma decisão prejudicial à parte que o apresentou, tem o dever de a prevenir, proferindo despacho a convidar a parte a sanar essas deficiências.
Será de todo ilegítimo que, em vez de convite ao aperfeiçoamento, como lho impõe o dever de cooperação (cfr. art. 266º do CPC), o juiz venha, desde logo, a proferir decisão desfavorável com fundamento em tais insuficiências ou imprecisões.
Nestas condições, porque a deficiência do articulado compromete o êxito da acção ou da defesa, a omissão do convite ao aperfeiçoamento constitui a nulidade prevista no art. 201º nº 1 do CPC [O ora relator revê, assim, a posição que assumiu como adjunto no acórdão de 20.6.2002, proferido na apelação nº 932/02-3ª.
No mesmo sentido, os Acórdãos desta Relação de 15.4.99, 9.11.99, 16.10.2000 e de 6.3.2001, em http://www.dgsi.pt; também o Ac. de 25.6.98, CJ XXIII, 3, 223; ainda Paulo Pimenta, Ob. Cit., 206.
A opinião contrária é predominante, apesar de não se ver discutida em particular a situação descrita no texto – de o juiz se aperceber da insuficiência do articulado e de esta vir a constituir o fundamento da decisão, de imediato proferida, em prejuízo da parte responsável por tal insuficiência (fora deste condicionalismo, designadamente quando é posta a final, a questão coloca-se obviamente em termos diferentes).
Destaque para Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º Vol., 355; Montalvão Machado, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo CPC, 2ª ed., 255; Pais de Sousa e Cardona Ferreira, Processo Civil, 38 e, entre outros, os Acs. do STJ de 28.2.2000 e de 11.4.2000, publicados no mesmo sítio da Net e de 11.5.99, BMJ 487-244).
É esta, pensamos, a solução que se ajusta à concepção de processo saída da revisão de 1995, com prevalência do fundo sobre a forma, reconhecendo-se ao juiz um papel mais interventor, incumbindo-lhe procurar activamente – com respeito pela autonomia da vontade das partes, expressa nos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade – que cada processo consiga alcançar o seu fim: compor o litígio segundo as regras de direito material aplicáveis e após indagação, tanto quanto possível exaustiva, sobre a matéria de facto controvertida [Cfr. Lopes do Rego, Ob. Cit., 213].

Importa ainda referir que, como afirma Lebre de Freitas [Ob. Cit.354; sobre o âmbito de aplicação do art. 508º nº 3, cfr. a enumeração feita por Lopes do Rego, Ob. Cit., 341 e Paulo Pimenta, Ob. Cit., 197], o art. 508º nº 3 se reporta, fundamentalmente, aos factos principais da causa, isto é, aos que integram a causa de pedir e àqueles em que se baseiam as excepções, pois só esses são susceptíveis de comprometer o êxito da acção ou da defesa.
O aperfeiçoamento é, pois, o remédio para casos em que os factos alegados pelo autor ou réu são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários para completar a causa de pedir ou a excepção, por não terem sido alegados todos os que permitam a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo ou equívoco.

Resta acrescentar que o aperfeiçoamento tem os limites fixados no art. 508º nº 5: se (no que aqui interessa) houver de ser efectuado pelo autor, não poderá traduzir-se numa alteração ou ampliação da causa de pedir. O autor não pode mudar a fundamentação da acção nem introduzir uma nova fundamentação. Deve conter-se no tipo já individualizado, acrescentando factos à acção, necessários ao preenchimento desse mesmo tipo [Ob. Cit.354; sobre o âmbito de aplicação do art. 508º nº 3, cfr. a enumeração feita por Lopes do Rego, Ob. Cit., 341 e Paulo Pimenta, Ob. Cit., 197].

3. É altura de, face aos princípios expostos, analisar o caso dos autos.

Já acima se disse que, para a procedência da acção, seria necessário que a Autora tivesse alegado que os prejuízos que indemnizou e de que pede o reembolso resultaram do abandono.
A questão que se põe é a de saber se a omissão de alegação dos factos correspondentes constitui insuficiência de alegação da matéria de facto susceptível de ser suprida.

Deve começar por reconhecer-se que a correcção dessa insuficiência se contém nos limites definidos pelo citado art. 508º nº 5.
A causa de pedir é complexa e, entre os elementos que a integram (para além do pagamento das indemnizações por força do contrato de seguro, da responsabilidade pela produção do acidente, com os seus vários elementos), encontra-se o abandono.
Só que, para além do abandono, teriam de ser invocados os danos resultantes do mesmo, por só estes serem reembolsáveis.
Quer dizer: aos factos alegados que fazem parte da causa de pedir (já individualizada) em que assenta a acção, teria a Autora de acrescentar esse outro facto – os danos indemnizados e de que se pede o reembolso resultaram do abandono – que integra a mesma causa de pedir e que é necessário ao seu preenchimento.
Portanto, a correcção não envolve alteração ou ampliação da causa de pedir.
É certo que a análise da p.i. permite concluir que a mesma foi estruturada com base no entendimento de que, no que concerne ao abandono, a alegação deste é suficiente para a subsunção na previsão do art. 19º c) do DL 522/85, de 31/12.
O abandono bastaria para que a Autora obtivesse o reembolso de tudo o que pagou, sendo de notar que aí se inclui, designadamente, a indemnização pela reparação do outro veículo interveniente no acidente e pelas despesas feitas na averiguação do sinistro.
Assim, tendo por base este entendimento, a p.i. não tem, objectivamente, qualquer falha ou insuficiência.
Não é este, porém, o critério relevante. A relação a estabelecer será entre a matéria alegada e a matéria que, de acordo com a causa de pedir a que as partes recorram, devia ter sido alegada [Neste sentido Paula Costa e Silva, Ob. Cit., 232].
Nesta perspectiva existe insuficiência da matéria de facto alegada.

Para sanar essa insuficiência seria, em princípio (para procedência integral do pedido), necessário que fossem alegados factos que permitissem concluir que esses danos indemnizados e de que a Autora pede o reembolso resultaram do abandono.
A correcção nestes termos não parece, no entanto, viável.
Desde logo, porque parte dos danos invocados não foram provocados pelo abandono. Dificilmente se concebe que tal ocorra com os danos materiais no veículo automóvel; também, de modo ainda mais claro, com as despesas de investigação do sinistro.
Por conseguinte, a correcção nos termos referidos viria a concretizar-se numa alegação de factos que constituiria, em parte, pura ficção.

Não vemos, porém, obstáculo a que se proceda à correcção da p.i. que se mostra necessária, dotando-a da matéria de facto que deveria ter sido alegada (tendo em vista o entendimento exposto sobre a amplitude do direito de regresso e inerente reembolso). Tal implicará que possam ser considerados apenas parte dos danos que a Autora indemnizou (aqueles que se admite poderem resultar do abandono); e exigirá, para harmonização do articulado, a redução do pedido (permitido ao autor a todo o tempo – art. 273º nº 2 do CPC).

Reconhece-se que a prova dos factos que terão de ser aditados – respeitantes a danos que remanescem dos provocados directamente pelo acidente e que derivam do abandono – não é fácil. A previsível dificuldade de prova não deve, contudo, servir de critério para, por si, inviabilizar a possibilidade de aperfeiçoamento do articulado.

Procedem assim as conclusões do recurso.

IV. Decisão

Em face do exposto, julga-se a apelação procedente, revogando-se o saneador-sentença recorrido, que é substituído por despacho com convite à Autora para sanar a insuficiência da p.i. nos termos acima referidos.
Custas segundo o critério a definir a final.

Porto, 18 de Setembro de 2003
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo