Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0811925
Nº Convencional: JTRP00041317
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP200805070811925
Data do Acordão: 05/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 527 - FLS 21.
Área Temática: .
Sumário: I - A aplicação do segredo de justiça é uma excepção à regra da publicidade, afirmada no n.º 1 do art. 86º do CPP, que representa a compressão de outros interesses, como é o caso dos direitos de defesa do arguido.
II - E porque assim é, em ordem a melhor garantir a protecção desses direitos, a lei exige a concordância do juiz de instrução sobre a aplicação do segredo de justiça, na fase do inquérito.
III - Aliás, no n.º 3 do art. 86º, os interesses da investigação, como fundamento da aplicação do segredo de justiça, estão ao mesmo nível dos direitos dos sujeitos processuais, pelo que não cabe apenas ao Ministério Público decidir o que convém à protecção destes direitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1925/08


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Em inquérito a correr termos na comarca de Santo Tirso, o MP proferiu despacho a sujeitar o processo a segredo de justiça.
Apresentado o processo ao senhor juiz de instrução, este não validou aquela decisão do MP.

Inconformado, o MP interpôs recurso, sustentando, em síntese, na sua motivação:
-Compete ao MP no inquérito determinar se a sujeição do processo a segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção da vítima ou do arguido e não é excessiva ou onerosa.
-Ao juiz de instrução apenas cabe verificar se existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso ou desproporcionado daquela determinação.
-A decisão recorrida extravasa esse controlo, substituindo-se à apreciação do MP, no seu próprio campo, sem tomar em consideração a Directiva da Procuradoria-Geral da República de 09/01/2008, contida no Ofício-Circular nº 5/2008, de 15/01/2008, invocada no despacho não validado.
-A responsabilidade do juiz de instrução tem a ver com o equilíbrio e ponderação entre as exigências de investigação, por um lado, e os direitos de defesa do arguido, por outro.
-Os direitos de defesa do arguido só devem prevalecer sobre os interesses da investigação, se se estiver perante situações de perigo real de lesão grave desses direitos, como acontece no caso de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
-A decisão recorrida encontra-se insuficientemente fundamentada.
-No tipo de situações em causa – crime de maus tratos – a vítima, que frequentemente reside com o agente e é dele dependente, corre graves riscos quando este se apercebe de que foi apresentada queixa contra ele e existe já um processo.
-Devia, pois, a decisão recorrida ter sido no sentido da validação do despacho do MP.

O recurso foi admitido.
O senhor juiz sustentou a sua decisão.
O senhor procurador-geral-adjunto apôs visto.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentação:
Antes de mais deve dizer-se que é inoperante para efeitos de decisão do presente recurso toda a argumentação que o recorrente desenvolve com base na Directiva da Procuradoria-Geral da República veiculada pelo Ofício-Circular nº 5/2008, de 15/01/2008, instrumento que não é fonte de direito e vincula apenas os magistrados do MP, seus únicos destinatários.
O que está em causa é saber se à luz do nº 3 do artº 86º do CPP, a decisão do senhor juiz de instrução deveria ter sido no sentido da validação do despacho do MP que sujeitou o processo a segredo de justiça.
Esse despacho do MP tem o seguinte texto:
«Nos termos do despacho 2/2008 do Sr. Procurador Geral Distrital (ofício circular nº 3/2008) e por forma a proteger a reserva e intimidade dos ofendidos com o tipo de criminalidade aqui em apreço (p. e p. no art. 152º, nº 1, al. a), do CP) sujeito o presente inquérito a segredo de justiça.
(...).
Ao Sr. Juiz de Instrução (art. 86º, nº 3, do CPP».
Na decisão recorrida, para se concluir pela não validação do despacho do MP, depois de se frisar o desconhecimento do conteúdo da circular invocada, diz-se que não se vê «qualquer motivação factual concreta» para aquele despacho, sendo que a protecção da reserva e intimidade dos ofendidos, por a questão se colocar tanto no inquérito como nas ulteriores fases do processo, não justifica o segredo de justiça, até porque isso cercearia a possibilidade de o arguido exercer cabalmente os seus direitos de defesa.
Dos elementos com que foi instruído o recurso resulta que o inquérito tem como objecto a investigação de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artº 152º, nº 1, alínea a), do CP.
Segundo se informa no recurso, a Directiva acima referida impõe aos magistrados do MP que, sempre que esteja em causa crime previsto nas alíneas j) a m) do artº 1º do CPP, determinem, no início do inquérito, a sujeição do processo, nessa fase, a segredo de justiça, nos termos do nº 3 do artº 86º.
Aquele crime, sendo punível com pena de prisão de 1 a 5 anos, cabe no campo de previsão da alínea j) do artº 1º do CPP.
Devendo obediência a essa Directiva, os magistrados do MP em cada inquérito em que se investigue um dos crimes incluídos naquelas alíneas têm de determinar sempre a aplicação do segredo de justiça nessa fase processual.
Mas o juiz de instrução, que só deve obediência à lei (artºs 3º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, 9º, nº 1, do CPP e 4º, nº 1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho), terá de ver, em cada caso, se essa determinação é fundada, à luz do nº 3 do artº 86º.
Estabelece esta norma:
«Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas».
Se bem se percebe a sua alegação, o recorrente defende que só ao MP cabe ajuizar se o segredo de justiça é necessário à investigação, sendo a função do juiz de instrução, nesta matéria, apenas a de ponderar, em cada caso, se as exigências de investigação devem ou não prevalecer sobre os direitos de defesa. Por outras palavras, a sua posição é a de que a necessidade do segredo de justiça para os interesses da investigação, uma vez afirmada pelo MP, tem-se como adquirida.
Não pode ser assim.
É verdade que, cabendo-lhe, nos termos do nº 1 do artº 263º, «a direcção do inquérito», que compreende, de acordo com o nº 1 do artº 262º, o «conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade destes e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação», o MP é quem, em regra, nessa fase, decide o que melhor serve os interesses da investigação.
Mas a aplicação do segredo de justiça é uma excepção à regra da publicidade, afirmada no nº 1 do artº 86º; uma excepção que representa a compressão de outros interesses, como é o caso dos direitos de defesa do arguido.
E porque assim é, em ordem a melhor garantir a protecção desses direitos, a lei exige a concordância do juiz de instrução sobre a aplicação do segredo de justiça, na fase do inquérito. Concordância do juiz de instrução com o despacho do MP que aplica o segredo de justiça é o que traduz a validação desse despacho. E concordância com esse despacho significa concordância com os seus fundamentos. Por isso, se o fundamento do despacho do MP for a necessidade do segredo de justiça para os interesses da investigação, o juiz de instrução, para concordar ou discordar, há-de poder ajuizar dessa necessidade.
Aliás, no nº 3 do artº 86º, os interesses da investigação, como fundamento da aplicação do segredo de justiça, estão ao mesmo nível dos direitos dos sujeitos processuais – «sempre que ... interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem» –, e ninguém sustentará que só o MP cabe decidir o que convém à protecção destes direitos.
Assim, o MP, quando decide a aplicação do segredo de justiça em nome dos interesses da investigação, tem de fundamentar, e não meramente afirmar, que esses interesses justificam a não publicidade do processo. É essa fundamentação que há-de permitir ao juiz de instrução fazer o seu próprio juízo sobre se o segredo de justiça é justificado pelas necessidades da investigação, com vista a validar ou não a determinação do MP.
De todo o modo, no caso, o MP não fundamentou nas necessidades da investigação a decisão de aplicar ao processo o segredo de justiça. Invocou o «despacho 2/2008 do Sr. Procurador Geral Distrital», sem trazer aos autos o respectivo conteúdo, que, assim, se desconhece, e acrescentou: «por forma a proteger a reserva e intimidade dos ofendidos com o tipo de criminalidade aqui em apreço (p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. a), do CP)».
Desconhecendo-se o conteúdo desse despacho, o que fica como fundamento afirmado da aplicação do segredo de justiça é o propósito de «proteger a reserva e intimidade dos ofendidos».
Mas, ao fazer-se apelo à necessidade de «proteger a reserva e intimidade dos ofendidos» com os crimes de maus tratos, nem sequer se afirma uma necessidade deste concreto inquérito, pois um tal fundamento valeria para todos os inquéritos por crimes de maus tratos.
E a aplicação do segredo de justiça, que, repete-se, é um desvio à regra da publicidade, com fundamento na necessidade de proteger os direitos dos sujeitos processuais, só deve ter lugar, à luz do nº 3 do artº 86º, em cada processo que concretamente o justifique. Não há crimes de catálogo para os efeitos previstos nessa norma.
Além disso, a protecção dos direitos dos ofendidos não está prevista como fundamento de aplicação do segredo de justiça, visto que ali se fala de sujeitos processuais, e esta figura não abarca os simples ofendidos, como se vê do Livro I da Parte I do Código de Processo Penal.
Não se mostra, assim, fundada a decisão do MP de aplicar o segredo de justiça ao processo em causa, pelo que o senhor juiz de instrução só podia decidir no sentido da não validação.

Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso.
Sem custas.

Porto, 07/05/2008
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva