Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1151/09.1TBCHV.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: INTERESSE EM AGIR
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
UNIÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP201009281151/09.1TBCHV.P1
Data do Acordão: 09/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Legislação Nacional: LEI ORGÂNICA N°2/2006 DE 17 DE ABRIL (QUARTA ALTERAÇÃO À LEI N°37/81, DE 3 DE OUTUBRO) - LEI DA NACIONALIDADE, ART° 3°, N°3.
Sumário: I- O interesse em agir tem de seguir o seguinte princípio geral: para que o sujeito de um direito tenha acção contra outra pessoa é preciso que um facto desta ou a sua inércia lese o direito do primeiro, ou que este direito não possa ser exercido inteiramente sem uma sentença proferida contra a outra parte. Quando se estiver perante este requisito específico o sujeito de direito tem interesse em agir.
II - A Lei Orgânica n°2/2006 de 17 de Abril (Quarta alteração à Lei n°37/81, de 3 de Outubro) - Lei da Nacionalidade, no seu art° 3°, n°3 estabelece que “o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”.
III - Ora o Autor tem interesse directo em propor a presente acção para que lhe seja reconhecida a situação de união de facto há mais de três anos com Ga. a fim de adquirir a nacionalidade portuguesa nos termos da predita lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1151/09.1TBCHV.P1
Tribunal Judicial de Chaves – 2º juízo

Acordam no Tribunal da Relalação do Porto

I - Relatório

B.........., residente na Rua ...., ...., BI. ..., ...., Chaves, intentou contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo que se declare que vive em união de facto, há mais de três anos, com C..........
Alegou, em síntese, que é cidadão búlgaro, residente em Portugal tendo conhecido C..........., de nacionalidade portuguesa, no ano de 2001; desde 20.11.2001 que vive em comunhão de vida, comungando o mesmo leito e mesa com a dita C.......... como se cônjuges fossem; dessa união nasceu um filho, D...........

Válida e regularmente citado, o réu não contestou.

Foi proferido despacho a julgar procedente a excepção dilatória de falta de interesse processual e a absolver o réu da instância.

Inconformado o Autor interpôs recurso, onde conclui.
1. As acções judiciais têm por objectivo efectivar direitos que se encontram indefinidos,ameaçados ou violados, cfr. art°2, n°2 do CPC e 20, n°1 da CRP.
2. O A tem necessidade de interpor a acção de reconhecimento dessa situação (indefinida) de viver em união de facto no tribunal cível, para assim ver reconhecida, por imposição legal esse status.
3. Deste modo tem interesse processual, melhor dizendo, tem necessidade de instaurar ou fazer prosseguir a presente acção, pois só assim surde o seu direito à obtenção da nacionalidade.
4. Logo existe interesse em agir por parte do A.
5. Foi violado o n°3 do art° 32 da Lei Orgânica n2 2/2006 de 17 de Abril, a quarta alteração à Lei n2 37/81, de 3 de Outubro.
Pelo exposto, solicita o Recorrente a revogação da douta sentença proferida para que possa a ser apreciada a decisão de mérito, pois só assim farão V. Ex.ás, como sempre, a mais inteira e melhor.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 685-A,º nºs 1 e 3, do CPC, na redacção do Dec-Lei nº 303/207, de 24/VIII, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se o recorrente tem ou não interesse processual na presente acção.

Conforme despacho de fls. 27, foram considerarados confessados os factos articulados pelo autor e foi dado cumprimento ao disposto no art. 484°, n.° 2, do C. Proc. Civil.

Foram considerados confessados os seguintes factos articulados pelo autor:
1. O Autor é cidadão búlgaro e residente em Portugal.
2. O Autor conheceu a sua actual companheira, em Chaves, a senhora C........... de nacionalidade Portuguesa no ano de 2001.
3. Desde 20 de Novembro de 2001 que o Autor vive em comunhão de vida, comungando o mesmo leito e mesa, com a senhora C........, como se cônjuges fossem.
4. Desde essa data sempre residiram juntos.
5. Desde essa data que passaram a comer e a dormir juntos na mesma casa.
6. Da união entre o Autor e a senhora C.......... nasceu um filho em 6 de Julho de 2005, D............
7. Ao longo destes anos o Autor e a senhora C............tos passeavam e saiam juntos, tal como nos dias de hoje o fazem.
8. Tendo o mesmo círculo de amigos e vizinhos.
9. Compartilhando essa relação afectuosa e marital com a família da senhora C.............
10. Cada um, Autor e a senhora C.......... contribuía e contribui com o que auferem para a aquisição de todos os bens alimentares, móveis e outros bens que existem na habitação.
11. O Autor contribui para as economias do casal com o seu trabalho, inicialmente como madeireiro e, posteriormente, onde hoje ainda trabalha, fazendo carregamentos numa empresa de reciclagem de metais ferrosos e não ferrosos, denominada Flavireciclagem.
12. Portanto os proventos do casal destinam-se ao sustento do agregado familiar, pagando o arrendamento mensal da casa de habitação, auxiliando-se mutuamente no dia-a-dia.
13. Vivendo como se de marido e mulher se tratasse e assim sendo reconhecidos e tratados por todas as pessoas com quem se relacionam.

Factos versus Direito.

A legitimidade processual, pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa (art. 288º, nº 1, al. d), do C.Proc.Civil) - que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido - afere-se pelo interesse directo do autor em demandar e pelo interesse directo do réu em contradizer (art. 26º, nº 1, do mesmo diploma).
Sendo certo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (nº 3 do citado art. 26º).
É reconhecidamente controversa a autonomia do requisito interesse em agir no nosso ordenamento e respectiva natureza.
Manuel de Andrade estribava-se nos artigos 662.º, n.º 3, 449.º, n.º2, alínea c) e 322.º, n.º2 do CPC para se pronunciar no sentido de se tratar «não de um simples pressuposto processual, mas de uma condição da acção, pois a falta do interesse processual significa não ter o demandante razão para solicitar e conseguir a tutela judicial pretendida» (Noções Elementares de Processo Civil, 1979,82);
Castro Mendes entendia que se o interesse da utilidade da acção e o interesse em agir fossem pressupostos processuais (e, muito menos, condições da acção)- a sua eficácia restringir-se-ia ao campo limitado das custas judiciais (Direito Processual Civil, Vol II, 1974:195);
Miguel Teixeira de Sousa considera o interesse em agir uma realidade que se não destaca da figura da legitimidade (A legitimidade singular em processo declarativo, separata BMJ, 1979:41/42 e anotação ao Ac. STJ de 15 de Junho de 1978, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXV, 1 e 2:146);
Anselmo de Castro contraria a posição de Castro Mendes e defende a tese de que «o interesse em agir é um pressuposto processual autónomo» (Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, 1981:121):
Antunes Varela destaca a diferença entre legitimidade e interesse em agir – «o autor pode ser o titular da relação material litigada e ser consequentemente a pessoa que, em princípio, tem interesse na apreciação jurisdicional dessa relação e não ter todavia, em face das circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à acção». «Inversamente, pode suceder que exista necessidade de obter a providência judiciária requerida (porque haja violação do direito e se torne necessária a intervenção do tribunal para a remover, por exemplo) e, todavia a pessoa que a requer não seja o verdadeiro (ou o único) titular da relação litigada» (Manual de Processo Civil, 1985,181) – e a integrar sem hesitações o interesse em agir entre os pressupostos processuais referentes às partes, etc.
Na actual doutrina e jurisprudência prevalece a tese de que o interesse em agir é um pressuposto processual e não uma condição da acção, de conhecimento oficioso, cuja falta veda ao juiz o conhecimento de mérito devendo conduzir à absolvição da instância do(s) demandado(s), se constituído o contraditório.
Retenha-se que as acções de simples apreciação têm por função dar certeza. Mas não perante uma situação de incerteza qualquer.
Exige-se que a incerteza não seja meramente subjectiva, ansiosa, antes deve ser concreta, actual, objectiva, radicando na contestação de outrem, ou na aparência do direito.
No Código de Alexandre de Seabra visou-se facultar as acções apenas quando elas fossem absolutamente necessárias para a defesa do direito e tal necessidade só existia quando esse direito fosse ameaçado ou violado (José Beleza dos Santos, A Simulação no Direito Civil, II: 11).
Dizia: «O legislador tinha de atender aos dois interesses opostos: o de assegurar e defender o direito contra os factos que o perturbam, ameaçam ou violam e o de garantir a tranquilidade dos cidadãos contra litígios, que não fossem absolutamente necessários.
Tendo em atenção estes interesses em conflito, quis o código que o titular do direito esperasse por uma violação ou ameaça para intentar a acção não permitindo antecipá-la, só porque existia uma incerteza jurídica» (op. cit. 12).
Beleza dos Santos rejeitou a posição negativa quanto à admissibilidade de acções de simples apreciação.
Apontou a existência de vários exemplos de acções de simples apreciação previstos fora do código de processo de 76, e defendeu que desde que um direito pudesse ser prejudicado com uma situação de incerteza, de falta de determinação ou de reconhecimento, e desde que, para evitar ou pôr termo a este prejuízo, fosse necessária e bastante uma acção declarativa, deveria entender-se que tal acção seria permitida, quando um texto expresso a não proibisse.
O direito processual destina-se a assegurar a fruição e o exercício dos direitos, a garanti-los, a defendê-los (Código do processo civil, artigo 1.º).
E, sendo a acção de pura declaração, em certos casos um meio indispensável e bastante de defesa, a lei do processo não poderia negá-la, sem comprometer a tutela do direito que se propôs assegurar. O simples facto do sistema processual ter como fim a ampla protecção dos direitos que a lei civil reconhece tem como consequência necessária a admissibilidade destas acções.
O silêncio da lei deve, portanto, interpretar-se no sentido da sua permissão.
Para instaurar uma acção de simples apreciação não bastaria, porém, como se disse, qualquer situação de incerteza, mesmo que meramente subjectiva.
Para Beleza dos Santos esta incerteza tinha de ser objectiva, «determinada por qualquer facto que, tornando incerta uma situação jurídica, provoca a necessidade da sua fixação legal, da sua determinação por uma decisão judiciária.
Não pode qualquer pessoa intentar uma acção declarativa só porque duvida se o réu reconhece ou não o seu direito, só porque quer obter a sua afirmação judiciária.
É preciso que esse direito tenha sido realmente posto em dúvida, tornado incerto, ou que por falta de uma declaração judicial, não seja reconhecido, não possa produzir efeitos jurídicos (Código de Processo Civil, artigo 10.º)
Numa palavra, é necessário que o direito realmente careça da sua definição judicial não bastando que o seu titular a julgue conveniente.
Esta doutrina, apoiada também por Alberto dos Reis, impôs-se. O artigo 4.º do CPC constitui exemplo disso.
Consoante o seu fim as acções classificam-se em declarativas e executivas; aquelas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas.
As acções de simples apreciação têm por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto e não exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, na pressuposição ou previsão da violação de um direito como as acções de condenação e também não autorizar uma mudança na ordem jurídica, como as constitutivas.
O pressuposto normal da actividade jurisdicional é a existência de uma lesão de direitos.
Quando se fala em tutela de direitos está-se a falar da protecção desses direitos contra uma lesão ou ameaça de lesão.
Mas a actividade jurisdicional não se desenvolve apenas neste quadro.
O interesse em agir tem de seguir o seguinte princípio geral: para que o sujeito de um direito tenha acção contra outra pessoa é preciso que um facto desta ou a sua inércia lese o direito do primeiro, ou que este direito não possa ser exercido inteiramente sem uma sentença proferida contra a outra parte. Quando se estiver perante este requisito específico o sujeito de direito tem interesse em agir.
A Lei Orgânica nº 2/2006 de 17 de Abril (Quarta alteração à Lei nº 37/81, de 3 de Outubro) - Lei da Nacionalidade, no seu artº 3º, nº3 estabelece que “o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.
Ora o Autor tem interesse directo em propor a presente acção para que lhe seja reconhecida a situação de união de facto há mais de três anos com C………. a fim de adquirir a nacionalidade portuguesa nos termos da predita lei.
O Autor está perante um direito que, por falta de uma declaração judicial, não lhe pode ser reconhecido.
Portanto, tem interesse em agir na presente acção.
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação e revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus trâmites legais, se outra causa a tal não obstar.

Conclusões.
I - O interesse em agir tem de seguir o seguinte princípio geral: para que o sujeito de um direito tenha acção contra outra pessoa é preciso que um facto desta ou a sua inércia lese o direito do primeiro, ou que este direito não possa ser exercido inteiramente sem uma sentença proferida contra a outra parte. Quando se estiver perante este requisito específico o sujeito de direito tem interesse em agir.
II - A Lei Orgânica nº 2/2006 de 17 de Abril (Quarta alteração à Lei nº 37/81, de 3 de Outubro) - Lei da Nacionalidade, no seu artº 3º, nº3 estabelece que “o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”.
III - Ora o Autor tem interesse directo em propor a presente acção para que lhe seja reconhecida a situação de união de facto há mais de três anos com C……… a fim de adquirir a nacionalidade portuguesa nos termos da predita lei.

Sem custas

Porto, 28 de Setembro de 2010
Ana Lucinda Mendes Cabral
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis