Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0323726
Nº Convencional: JTRP00036228
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP200310070323726
Data do Acordão: 10/07/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 7 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Muito embora o cheque dado à execução se mostre apresentado a pagamento muito para além do prazo de 8 dias a contar da data da sua emissão, enquanto documento particular assinado pelo devedor vale como título executivo, uma vez que o exequente alegou no requerimento executivo a respectiva relação causal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

Artur .......... instaurou, no Tribunal Cível do ........., onde foi distribuída à respectiva .. Vara, a presente execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra:
- António ..........., com vista ao pagamento coercivo da quantia de Euros 137.169,43, acrescida de juros vencidos, que liquida em Euros 11.969,44, e dos vincendos até efectivo pagamento, mais as despesas da devolução do cheque, no montante de Euros 8,22.
Alegou, para tanto, em resumo, que o executado subscreveu, datou e assinou um cheque sacado sobre o Banco .........., no montante de Esc. 27.500.000$00; tal cheque era a comprovação de reconhecimento pelo executado de uma dívida daquele montante; apesar de instado para pagar o valor em dívida, o executado não o fez, pelo que, em 12/11/01, o exequente apresentou o cheque referido a pagamento, o qual foi devolvido por “falta de vontade negocial”.
Conclusos os autos, foi neles vertido despacho a convidar o exequente a aperfeiçoar o seu requerimento executivo de forma a tornar clara a relação subjacente à emissão do cheque, isto tendo em vista as várias correntes jurisprudenciais que se têm formado acerca da questão de um cheque poder servir de título executivo.
O exequente apresentou novo requerimento executivo, dando satisfação ao convite formulado naquele despacho.
Seguidamente, veio a proferir-se despacho que, concluindo não ter o cheque dado à execução o valor de título executivo, rejeitou liminarmente o requerimento executivo.
Irresignado com o assim decidido, interpôs o exequente recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de agravo e efeito suspensivo.
Alegou, oportunamente, o agravante, o qual finalizou a sua alegação com inúmeras conclusões, nas quais pugna pela revogação do despacho recorrido, porquanto o cheque dado à execução é título executivo bastante.
Não foi apresentada contra-alegação.
O M.º Juiz do Tribunal “a quo” sustentou a decisão recorrida, mantendo-a integralmente.

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As conclusões dos recorrentes delimitam o âmbito do recurso, conforme se extrai do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal é apenas a de saber se o cheque dado à execução deve ser considerado como título executivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.

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OS FACTOS E O DIREITO

Os factos a ter em consideração para a decisão do recurso são apenas os que emergem do relatório supra.
Como escrevemos no Recurso n.º 401/02, o processo executivo baseia-se num título executivo, o qual constitui a base da execução, por ele se determinando “o fim e os limites da acção executiva (art.º 45.º do C. P. C.).
O título executivo é o documento «do qual consta a exequibilidade de uma pretensão» e, consequentemente, a possibilidade de realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva.
Ele cumpre uma função constitutiva, atribuindo a exequibilidade a uma pretensão e «possibilitando que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal».
A exequibilidade extrínseca da pretensão é conferida pela incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por via legal «a faculdade da realização coactiva da prestação não cumprida».
De realçar que as «pretensões abstractas» mantêm no processo executivo «essa característica de abstracção».
«Assim, emergindo a pretensão exequenda de um cheque, a pretensão cambiária é abstracta, isto é, é accionável independentemente da alegação e demonstração da causa da sua subscrição pelos sujeitos cambiários» (Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, págs. 13, 14, 29, 63 e 64, e Ac. do S.T.J. de 29/2/00, B.M.J. n.º 494.º, 333).
O cheque é um título de crédito que enuncia uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta de dinheiros depositados (art.ºs 1.º e 2.º da Lei Uniforme sobre Cheques).
É um título cambiário «à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada» de pagar a quantia nele inscrita, «dirigida a um banqueiro no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis» (Ferrer Correia e Agostinho Caeiro, Revista de Direito e Economia, 1978, n.º 4, 47).
Se o cheque, apresentado a pagamento no prazo de oito dias a contar da data da sua emissão, não for pago e se a respectiva recusa for verificada por um acto formal de protesto ou outro equivalente, o portador pode exercer os seus direitos de acção contra o sacador e o avalista deste (art.ºs 29.º, 30.º e 40.º da referida Lei).
Daqui resulta que o cheque é título executivo quando, nomeadamente, o seu pagamento haja sido recusado dentro do prazo de oito dias subsequentes à data da respectiva emissão.
Entendimento que a jurisprudência, quase unânime, sempre sufragou antes da vigência da reforma processual de 1995 e que é de continuar a acolher (v. cit. acórdão de 29/2/00 e também o Ac. do S.T.J. de 28/06/99, Recurso n.º 99A1127).
Mas aquela reforma processual veio, para além do mais, dizer (art.º 46.º, al. c), do C. de Proc. Civil) que à execução podem servir de base “os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
Segundo se pode ler no Relatório do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12, “este regime – que se adita ao processo de injunção já em vigor – irá contribuir significativamente para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial”.
O que se discute, após a reforma processual civil introduzida por aquele diploma, é se, prescrita a obrigação cambiária constante do cheque, nos termos do art.º 52.º da Lei Uniforme Sobre Cheques, este ainda continua a valer como título executivo, enquanto documento particular enquadrável na referida al. c) do art.º 46.º.
A questão não tem sido pacífica, como nos dá conta o douto acórdão do S.T.J. de 29/1/02 (C.J., S.T.J., Ano 10.º, 1.º, 64). Em sentido favorável, pode ver-se Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, 1.º, 166); Anselmo de Castro (Manual da Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 33); Palma Carlos (C.P.C. Anotado, 1.º, 189); Pinto Furtado (Títulos de Crédito, 82 e 285).
Lebre de Freitas (A Acção Executiva, 2.ª ed., 53 e segs.) defende a seguinte posição: “Quando o título de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportam à relação jurídica subjacente.
Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular, nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerge ou não de um negócio jurídico formal.
No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (art.ºs 221.º n.º 1 e 223.º n.º 1 do CC).
No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art.º 458.º, n.º 1, do CC), leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado”.
Como se escreveu no citado acórdão do S.T.J. de 29/1/02, a causa da obrigação deve ser invocada no requerimento inicial, como causa de pedir da acção executiva.
E, como a execução tem sempre por base um título executivo e este tem de acompanhar a petição inicial, bastará em regra, quanto à causa de pedir, remeter para o título.
Todavia, já não poderá ser assim, quando se tratar de obrigação causal e o título não lhe fizer referência.
Debruçando-se sobre esta temática, escreve ainda Lebre de Freitas (ob. cit., 133/134): “Esta falta de referência ocorrerá quando o título executivo contiver uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento de uma dívida, sem indicação da respectiva causa (art.º 458.º do CC), maxime, por se tratar de letra, livrança ou cheque relativamente ao qual tenham decorrido já os prazos de prescrição da obrigação cartular.
Neste último caso, se a prescrição já tiver sido invocada pelo devedor, bem como se o não tiver, para prevenir a hipótese da sua invocação em embargos de executado, o exequente deverá, em obediência ao art.º 467.º, n.º 1, al. c), do CPC, alegar a causa da obrigação, competindo ao tribunal ajuizar da sua viabilidade, nos termos que foram indicados a propósito do título executivo.
Por outro lado, a invocação da causa da obrigação no requerimento inicial é condição necessária para que a mesma possa ser impugnada pelo executado, nos termos do art.º 815.º, n.º 1, do CPC.
Mas se o exequente, devendo fazê-lo, não invocar, no requerimento inicial, ainda que a título subsidiário, a causa da obrigação, não poderá fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art.º 272.º do CPC), por tal implicar uma alteração da causa de pedir”.
Pode, pois, concluir-se que, muito embora se mostre apresentado a pagamento muito para além do prazo de oito dias a contar da data da sua emissão, o cheque dado à execução (fls. 4), enquanto documento particular, assinado pelo devedor, vale como título executivo, nos termos do referido art.º 46.º, al. c), uma vez que o exequente alegou, no requerimento executivo, a respectiva relação causal (no mesmo sentido, v. Ac. da R. de Lisboa de 27/6/02, C.J., Ano 27.º, 3.º, 121).
Mas, ainda que a não tivesse alegado, pensamos que o cheque não perderia a qualidade de título executivo, à luz do mencionado art.º 46.º, al. c), já que, perdido o direito à acção cambiária, sempre o cheque pode ser considerado título executivo como um simples quirógrafo, já que reveste a natureza de documento particular assinado pelo executado/devedor.
Procedem, assim, no essencial, as conclusões do agravante, pelo que o despacho recorrido não pode manter-se.

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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se conceder provimento ao agravo e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, a fim de a execução prosseguir os seus ulteriores termos.
Sem custas (art.º 2.º, n.º 1, al. o), do C.C.J.).

Porto, 7 de Outubro de 2003
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões