Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2085/10.2TXPRT-J.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RICARDO COSTA E SILVA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRESSUPOSTOS
ENCURTAMENTO DA PENA DE PRISÃO
Nº do Documento: RP201206202085/10.2TXPRT-J.P1
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Segundo o disposto no n.° 5 do art.° 61.°, do CP a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
II – Tal norma deve ser interpretada no sentido de só permitir excepcionalmente a modificação substancial da pena, seja quando haja motivos excepcionais relacionados com a situação pessoal e a evolução da personalidade do recluso que justifiquem a concessão de semelhante benefício ao arguido pelo tribunal de execução das penas.
III – Por isso, em princípio, não deve ser concedida a liberdade condicional quando a mesma implica um encurtamento da pena em mais de três anos de prisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2085/10.2TXPRT-J-P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,
I.
1. Por decisão, proferida, em 2012/02/22, no processo gracioso de liberdade condicional n.º 2085/10.2TXPRT-A, foi decidido não conceder a liberdade condicional ao condenado B…, com os demais sinais dos autos.
Mais se consignou, na decisão em referência, que, para efeitos de renovação da instância, se deve atender à data de 2012/05/29 (2/3 da pena).
2. Inconformado com a decisão referida, dela recorreu o arguido condenado.
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«A)- Tornou-se patente, que na determinação do despacho/decisão, o tribunal "a quo" não considerou, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, bastando-se pela invocação abstracta dessa personalidade, e nem quanto a esta mesma personalidade, fundamentou os motivos que levaram à decisão, tudo o que não permite a sindicância da sua legalidade e coerência, inequivocamente padecendo nessa medida do vício da nulidade, violado que foi disposto nos artigos 374.º n.º 2, 379.º n.º 1 alínea a), 97.º n.º 5 e 485.º, todos do Código de Processo Penal Português.
«B)- O Tribunal "a quo", também não fez a melhor Justiça na aplicação do Direito, ao ter optado na decisão proferida, por não ter colocado o arguido/condenado em Liberdade Condicional
Terminou a pedir o provimento do recurso nos termos que defendeu.
4. Notificado do recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
5. O recurso foi admitido e pelo Ex.mo Juiz que proferiu a decisão recorrida foi proferido despacho a sustentá-la.
5. Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-geral-adjunta deu parecer em que se pronunciou por que o recurso não merece provimento.
6. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
7. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, as questões postas no recurso são as seguintes:
– Da nulidade da decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 374.º n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a), 97.º, n.º 5, e 485.º, todos do CPP.
– Da decisão de denegação da concessão da liberdade condicional ao recorrente.
* * *
2. É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:
«2 – Factos com relevo para a decisão a proferir, tidos como provados.
«A. O condenado encontra-se a cumprir, pela prática dos indicados crimes, a pena de:
« a) NUIPC PCC 52/99.4TBCRZ (ex. 22/97) – – TJ Carrazeda de Ansiães (cúmulo jurídico, englobando os PCC 12/97 e PCS 2/97)
«- 1 crime de dano (212.° CP) (210D de multa) (PCS 2/97)
«- 1 crime de homicídio qualificado na forma tentada (131.° e 132.°, n.°s 1 e 2 c) do CP) (7A de prisão) (PCC 12/97)
«– 1 crime de homicídio qualificado (131.° e 132.°, n.°s 1 e 2 f) do CP) (20A de prisão) (PCC 22/97)
***
«(PCS 2/97) – factos de 11jan1996
«(PCC 12/97) – factos de 12fev1996 (vítima C…; actuação mediante emboscada; uso de arma de fogo, disparos sucessivos, mesmo já com a vítima caída no chão)
«(PCC 22/97) – factos de 29mai1996 (vítima C…; após ter sido ouvido em sede de inquérito quanto aos factos do PCC12/97 no dia antecedente; actuação mediante emboscada; uso de arma de fogo)
***
«Pena única de 24A de prisão e 210D de multa
«B. Iniciou o cumprimento da pena (à ordem da globalidade dos autos considerados no cúmulo jurídico de penas) em 29mai1996, com termo previsto para 29mai2020, o IA para 29mai2008, os 2/3 para 29mai2012 e os 5/6 para 29mai2016.
«C. Procedeu ao pagamento da pena de multa em 12ju12001.
«D. Não tem outros antecedentes criminais.
«E. É a 1.ª reclusão.
«F. Em 30mai2008 (pelo IA da pena) viu ser-lhe apreciada e negada a liberdade condicional.
«G. Em 29jun2010 (pela RI – art. 180.° do CEP – com reporte a 1A após apreciação do IA da pena) viu ser-lhe apreciada e negada a liberdade condicional.
«H. Recorreu desta decisão, vindo o TRP, por Ac. de 15set2010 confirmar aquela decisão, frisando em especial que "nesta fase do cumprimento da pena (o arguido ainda não cumpriu dois terços da pena), a liberdade condicional frustrava o sentimento geral de vigência das normas punitivas que o recorrente violou com a prática dos crimes por que foi condenado."
«I. Referências constantes do SIPR (ficha biográfica – situação jurídico penal – do condenado):
«1 – processos pendentes:
«a) nada consta.
«2 – outras penas autónomas a cumprir:
«a) nada consta.
«3 – medidas de flexibilização de pena:
«a) RAI – desde 23nov2000;
«b) LSJ - 17 a última a 29ago2011;
«c) LCD – 9 a última a 20dez2009.
«J. Os elementos do Conselho Técnico emitiram parecer unânime favorável à concessão da liberdade condicional.
«Ouvido o condenado, declarou o mesmo consentir na liberdade condicional.
«O Ministério Público emitiu parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
«M. Dos relatórios da DGSP e DGRS, e da audição do condenado, em conclusão, extrai-se que:
«1 – comportamento prisional /registo cadastral:
«O condenado tem mantido comportamento prisional estável, sem incidentes disciplinares.
«2 – situação económico-social e familiar:
«O condenado é solteiro, contando com as habilitações literárias de 4.ª classe, agricultor de profissão; tem apoio familiar por parte da mãe (pessoa idosa – 76A, viúva, reformada); pretende viver em … (concelho limítrofe do dos factos), numa habitação inserida em meio rural, com condições de habitabilidade razoáveis, pertencente à prometida entidade patronal; operam latentes sentimentos de rejeição social no seio da área de prática do crime, mormente por parte dos familiares da vítima, com quem o condenado tem tentado evitar contactos, mormente através da mudança de residência.
«3 – perspectiva laboral/educativa:
«O condenado, que tem experiência laborai no sector agrícola, pretende reiniciar actividade nessa área, com concreta e documentada promessa.
«4 – caracterização pessoal:
«O condenado apresenta um discurso com enraizamento de ambivalência; se por um lado assume a autoria dos crimes, reconhecendo a necessidade de cumprir pena, por outro lado mantém justificação da sua actuação reiterada e persistente de acção homicida em quezílias com a vítima, face a desavenças relacionadas com um caminho, imputando-lhe ameaças as quais deram azo a queixas; mantém atitude de desacordo com a pena, a qual tem como excessiva; mantém, assim, elementares dificuldades ao nível da necessária e efectiva consciência crítica quanto aos factos, tal qual revela carências ao nível de interiorização da finalidade da pena; não procedeu ao pagamento da indemnização aos lesados, ainda que manifeste e verbaliza intenção de o fazer; no EP está impedido na pocilga desde 2002, sendo que antes (desde abr1998) esteve impedido na sapataria; denota hábitos de trabalho; frequentou curso de formação profissional de sapateiro/conserteiro.
«3 – Factos com relevo para a decisão a proferir, tidos como não provados:
«1. Inexistem.
«Tudo o que em contrário com o dado como com relevo para a decisão a proferir se assuma, ou se trate de matéria de direito, instrumental ou conclusiva e, como tal, insusceptível de ser chamada à colação nesta sede.
«4 – Motivação dos factos com relevo para a decisão a proferir
«O dever constitucional de fundamentação dos despachos judiciais basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito em que assenta a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, exigindo, pois, a indicação dos meios de prova que serviram para formar tal convicção, como, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se forme em determinado sentido ou se valorem de determinada forma os diversos meios de prova apresentados nos autos. Assim, o Tribunal formou a sua convicção com base, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também por declarações e depoimentos, constantes do quanto é o somatório factual inerente aos relatórios juntos aos autos e declarações do condenado em sede de audição, tudo em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que, porventura, transpareçam das mesmas declarações e depoimentos. No que concerne directamente aos relatórios da DGRS e DGSP juntos aos autos, desde já se refira que a valoração feita dos mesmos o foi no sentido do seu alcance concreto. Tal não se confunde com vinculação. De facto, muito embora sejam relevantes meios de obtenção de prova sobre as condições pessoais e prisionais do recluso, os mesmos não são vinculativos, não constituem prova pericial e, como tal, não alcançam o patamar de subtracção de livre apreciação de prova do julgador. Foram, assim apreciados como informação auxiliar à formação de convicção nos limites legais do art. 127.° do CPP1.
«Valorou-se, em particular:
«A) certidão da(s) decisão(ões) condenatória(s);
«B) certidão da(s) liquidação(ões) de pena(s);
«C) CRC (ou referência em sede de decisão(ões) condenatória(s)) do condenado;
«D) print do SIP do condenado;
«E) relatório da DGRS – assinado pelo mesmo técnico do anterior, com conclusão diferenciada, na qual são ponderadas de forma mínima, quase encapotada, as necessidades de prevenção geral, apesar de em fase de exigência da mesma, e são apenas ponderados os factores positivos que influem nas necessidades de prevenção especial, sem que se relate a razão concreta de menor relevância, ou até de omissão, dos factores negativos que influem nas necessidades de prevenção especial, acrescendo que no sopesar global não se evidencia a concreta diferenciação de factos fundamento nem uma evolução concreta positiva entre os dois momentos;
«F) relatório da DGSP – assinado por técnico diferente do anterior, com conclusão diferenciada, na qual não são ponderadas as necessidades de prevenção geral, apesar de em fase de exigência da mesma, tudo não obstante não se notar uma concreta diferenciação de factos fundamento nem uma evolução concreta positiva entre os dois momentos;
«G) acta de realização de conselho técnico e de audição do condenado;
«H) parecer do Ministério Público;
«I) documento comprovativo de promessa de trabalho;
«J) teor do Ac. do TRP de 15set2010.»
3. As questões postas:
3.1 A nulidade da decisão recorrida por violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a), 97.º, n.º 5, e 485.º, todos do CPP.
O recorrente pretende que o vício que aponta à decisão é por violação, simultaneamente, do disposto no art.º 97.º, n.º 5, do CPP, que dispõe que 5. Os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – violação essa que, a verificar-se, atento disposto no art.º 118.º, n.º 1, do CPP, determinaria que se estivesse perante uma mera irregularidade do processo –, e do disposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP, o que, por sua vez, a ser verdade, constituiria uma nulidade da previsão do art.º 379.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.
Assim, ou há uma confusão dos conceitos por parte do recorrente ou ele pretendeu arguir o vício da irregularidade subsidiariamente ao da nulidade. Se assim foi depara-se, a arguição de irregularidade, com o obstáculo de ter sido arguida posteriormente ao termo do curso do prazo legal para tal, nos termos do disposto no art.º 123.º, do CPP.
Cremos porém, que não é esse o caso, até porque, basta conferir a decisão para se concluir, sem margem para hesitações, que ela se encontra fundamentada quer de facto, quer de direito. Pretender que assim não é corresponderia a uma pura ficção, pelo que tal hipótese não deve ser considerada.
Ficamos, portanto, reduzidos à apreciação da invocada nulidade do art.º 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.
Dispõe tal artigo:
Artigo 379.º
(Nulidade da sentença)
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º -A e 391.º -F;
Por seu turno, o art.º 374.º, n.º 2, do CPP, dispõe o seguinte:
Artigo 374.º
(Requisitos da sentença)
1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
(…)
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
(…)
A invocada nulidade consistiria, portanto, na fundamentação da decisão ou de parte dela, uma vez que esta se pode decompor em enumeração dos factos provados e não provados, motivação de facto, com indicação e exame crítico das provas e fundamentação de direito.
Mas não tem razão. Tal como oportunamente se refere no despacho de sustentação da decisão recorrida, a fls. 205 e s. dos autos, esta, por se tratar de um despacho não está sujeita à disciplina dos art.os 374.º e 379.º do CPP.
Como se destaca no mesmo despacho de sustentação, no referido sentido foi decidido no acórdão da relação do Porto de 2010/09/29, proferido no recurso n.º 456/08.0TXPRT-A.P1, subscrito pelos mesmos juízes que ora proferem o presente acórdão.
Justifica-se, porém, que enfatizar, dadas a sensível proximidade deste despacho com uma sentença – com outra estrutura de processo a decisão equivalente poderia corresponder a forma de sentença – e a importância do seu objecto – ao versar sobre a concessão da liberdade – há uma evidente exigência de particularização da fundamentação, em de todos os aspectos que relevam para a decisão, quer de facto, quer de direito.
Não se pode é forçar o enquadramento da omissão de fundamentação deste despacho, na nulidade do art.º 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, agora em referência – uma patente falta de fundamentação terá, a nosso ver, que ser corrigida mediante o recurso ao disposto no art.º 123.º, n.º 2, do CPP – nem se pode pretender que o dever de fundamentação corresponde, no seu conteúdo, ao que está contemplado no art.º 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
O tipo de matéria que o Juiz tem de apreciar para a concessão ou não da liberdade condicional é, em tudo, muito diferente daquela sobre que ele tem de pronunciar-se num processo que verse sobre a prática de crimes e se destine a julgar a responsabilidade penal dos seus autores. Num processo para a concessão de liberdade condicional, uma parte muito substancial dos factos encontra-se previamente estabilizada na sentença ou sentenças condenatórias que originaram a pena ou penas em vias de execução. Trata-se, primacialmente, de intervir em penas que se encontram em fase se execução.
A outra parte dos factos que relevam sedimentam-se ao longo da execução da pena e vão sendo depurados pelo filtro das várias instituições que, no espaço/ tempo desse cumprimento, concorrem para que a pena vá sendo cumprida.
Por isso, o Juiz, no Conselho Técnico que prepara a decisão não ouve testemunhas, que depõe sobre os factos do seu próprio conhecimento, mas sim pessoas que representam as instituições referidas – pode dizer-se que ele ouve vozes institucionais – que se pronunciam sobre a convicção que a forma como se desenvolveu cumprimento da pena criou nelas.
Por isso mesmo – queremos dizer, pela sua natureza institucional –, tais convicções assumem no processo a forma documental de pareceres; aqui já não se trata de depoimentos, nem o juiz averigua junto de cada técnico se a opinião que reporta é fruto da sua experiência pessoal ou do trabalho da equipa que representa, presumindo-se que se trata da segunda hipótese – sem prejuízo de poder haver justaposição entre uma coisa e outra.
Sem esquecer que todo este processo aquisitivo culmina com uma conversa – porque de uma verdadeira conversa se trata – entre o juiz e o candidato à liberdade condicional, em que, inclusivamente, podem ser abordados aspectos pessoalíssimos da vida interior deste e cuja impressão, pela riqueza e subjectividade de que pode revestir-se – e muitas vezes se reveste –, só muito dificilmente poderá fazer-se corresponder a uma análise crítica enquadrada nos, tanto quanto possível, completos e concisos; motivos de facto que fundamentam a decisão.
Por tudo isto, que torna a prova, se de prova se trata, essencialmente diferente da de um processo crime, é que não se pode falar de uma análise crítica da prova, como se de uma convencional prova do facto delituoso se tratasse.
Estabelecidas estas distâncias, que entendemos necessárias, temos que a decisão recorrida, aqui em análise, apresenta uma fundamentação completa de todos os aspectos que concorreram para a decisão proferida, quer no enunciado dos factos relevantes, quer na referência às fontes de onde promanam, quer, finalmente, no modo como influíram na própria de cisão.
Não existe, como tal, qualquer falta de fundamentação da decisão, nem por maioria de razão, a invocada nulidade.
3.2 – Da decisão de denegação da concessão da liberdade condicional ao recorrente.
Na sua motivação o recorrente argumenta com os motivos pelos quais, em seu entender, deveria ter sido concedida a liberdade condicional ao recorrente, e conclui pela ilegalidade da decisão de lha não conceder.
Mas, embora afirmando que se trata de uma incorrecta aplicação do direito, não faz radicar a pretensa ilegalidade de qualquer norma concreta. Limita-se a afirmar, na motivação do recurso, que, nos termos do art.º 61.º, n.º 2. als. a) e b) e n.º 5, do CPP deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que conceda a liberdade condicional ao recorrente.
Ou seja, a questão de a liberdade condicional ser ou não conferida, configura-se, no presente recurso, como uma questão de melhor aplicação do direito – à decisão proferida corresponderia a pior aplicação do direito – mas sem uma expressa indicação da concreta ilegalidade que importaria a revogação da decisão e a substituição desta por outra que correspondesse aos seus anseios e repusesse a legalidade.
O que, objectivamente, transpõe a questão para o campo da opinião, da sensibilidade ou, como alguns dizem, do bom senso.
Mas, como a jurisprudência tem vindo recorrentemente a referir, os recursos não visam proferir melhores decisões, senão remediar decisões ilegais por concreta violação do direito aplicável.
Queixa-se muito o recorrente por a decisão recorrida não ter levado em conta os relatórios e pareceres das várias entidades envolvidas no cumprimento da pena e quase todas – é verdade – concordantes – a única excepção é do Ministério Público (MP) – no sentido da concessão da liberdade condicional ao arguido.
Mas estes relatórios e pareceres – ainda com excepção do parecer do MP – traduzem opiniões centradas, sobremaneira, na pessoa do arguido, no seu percurso prisional, na evolução da sua personalidade em ambiente de privação de liberdade e no prognóstico positivo sobe o que virá a ser o seu comportamento em meio livre.
As entidades responsáveis pelos referidos relatórios e pareceres têm a sua visão, parcelar, da realidade sobre que opinam e, embora algumas delas estejam representadas por juristas (outros poderão ser professores, psicólogos e profissionais da carreira dos guardas prisionais), a natureza dos relatórios e pareceres não é eminentemente jurídica, mas muito mais de ordem sociológica, psicológica e, porque não, antropológica. Referem-se ao homem e à sua relação com a sociedade, mas privilegiando aquele indivíduo concreto: o condenado recluso.
Assim, as origens, causas e objectivos, mais gerais e profundos, das normas em aplicação não têm a expressão mais importante nos relatórios e pareceres em causa. A motivação jurídica desses pareceres não é a que neles mais pesa, o que faz com que os mesmos, por sua vez, não pesem decisivamente na decisão, ou seja, não sejam suficientes para, só por si, determinar o seu sentido.
O que, diga-se, não implica qualquer crítica às peças em referência. Tais relatórios e pareceres são o que devem ser, o que não significa que tenham que ser seguidos nas suas conclusões. O que têm, sempre, é de ser seriamente ponderados!
Se assim não fosse nenhum interesse teria que a decisão fosse confiada a um juiz e da exclusiva responsabilidade deste.
No caso, a decisão recorrida nem expressa qualquer tipo de discordância com os pareceres referidos, nem os põe, por qualquer forma, em causa.
Vejamos.
Dispõe o art.º 61.º do CP:
Artigo 61.º
(Pressupostos e duração)
1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;
e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
Numa apreciação breve do teor do artigo acabado de transcrever temos que na al. a) do n.º 2 do art.º 61.º do CP se prevê um requisito de ordem de prevenção especial positiva ou de socialização, ao passo que na al. b) se estabelece um outro, de prevenção geral de integração. Relativamente a esta alínea, damos por certo que a defesa da ordem e da paz social tem, aqui, muito mais a ver com a estabilidade da expectativa comunitária no efeito contrafáctico das normas penais, do que em concretas, pontuais, alterações ocasionadas pela posta em liberdade condicional do recluso. Aliás, uma vez que se encontrassem cumpridas as exigências da al. a), quaisquer eventuais alterações da paz e da ordem pública suscitadas por tal libertação só poderiam ter origem na reacção da comunidade ou de parte dela, pelo que, basicamente, seria sempre a incompreensão perante a forma de cumprimento da pena a causá-la. Parece-nos evidente que no espírito da norma não se compreendem reacções por motivos individualizados, como seja, v.g., a frustração sentida pelas vítimas do crime a que a pena em causa se refira.
Assim, sendo os dois requisitos – de prevenção geral e de prevenção especial – cumulativos, é necessário que ambos se mostrem satisfeitos, tanto para a concessão da liberdade condicional a metade do cumprimento da pena, como numa das revisões que ocorram entre o meio e os dois terços do mesmo cumprimento. Só aos dois terços do cumprimento em questão e a partir daí é que, por intervenção do disposto no n.º 3 do artigo em análise, passam a importar exclusivamente razões de prevenção especial, ou seja, apenas a figura do recluso determina que lhe seja ou não conferida a liberdade condicional.
Já isto basta para se concluir que a avaliação que foi feita na decisão recorrida transcende, em muito, quer as motivações dos relatórios e pareceres produzidos no âmbito da realização do Conselho Técnico, quer as próprias razões invocadas na motivação do recurso, que, uns e outras, se centram eminentemente na pessoa do recluso, deixando na sombra as repercussões sociais dos crimes e os efeitos da pena na recomposição da confiança comunitária no Direito, como factor de estabilidade e bem-estar, por tais crimes abalada.
Ora, a decisão recorrida destaca as razões de prevenção geral como sendo a componente que acaba por determinar a não concessão da liberdade condicional ao recorrente, ainda nesta fase.
Na mesma escreveu-se:
De facto, a prevenção geral — aquela que para o juiz e, também, um exercício de análise e ponderação sobre os factores, níveis e exteriorizações do pulsar de coração social, do sentir colectivo e do querer comum da sociedade em cada momento, gerando, deste modo, uma necessidade de constante actualização sobre esses expressares bem como uma continua e sólida visão do sentido de regra de experiência de vida — não está assegurada nas suas exigências no presente momento em termos de neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, da dissuasão e do fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma violada, considerando a natureza e gravidade do crime praticado.
As respectivas exigências, muito fortes no caso em apreço, sempre impedem a libertação antecipada neste momento.
Estas razões de prevenção geral, não apenas tinham de ser ponderadas como são prevalecentes sobre os motivos que se referem à prevenção especial.
Mas, a nosso ver, existe ainda outro motivo pelo qual, neste caso concreto, a concessão de liberdade condicional antes dos dois terços do cumprimento da pena seria imprudente.
O recorrente cumpre uma pena de vinte e quatro anos de prisão. Levava cumpridos, à data da decisão, 15 anos, 8 meses e 21 dias de prisão.
Considerando o disposto no n.º 5 do art.º 61.º, do CP que dispõe que em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena, se a liberdade condicional lhe tivesse sido conferida na referida data e admitindo, como é natural, que a mesma não lhe viesse a ser revogada até ao termo dos cinco anos do seu curso máximo, isso implicaria um encurtamento da pena de mais de três anos de prisão; mais exactamente, 3 anos, 9 meses e 9 dias. O termo da pena ocorreria aos 20 anos, 8 meses e 21 dias do seu cumprimento, nestes incluídos os cinco anos de liberdade condicional.
Quanto a este tema do encurtamento das penas aplicadas por efeito da aplicação da liberdade condicional, vejam-se as oportunas notas de Paulo Pinto de Albuquerque [1]:
18. A Lei n.° 59/2007 esclareceu também uma questão: a liberdade condicional só pode durar o máximo de cinco anos, considerando-se extinto o excedente da pena no caso de penas de prisão superiores a 10 anos. Esta extinção constitui, bem vistas as coisas, uma modificação substancial da condenação, o que contraria a natureza da liberdade condicional no sistema penal Português (aliás, esta solução já tinha sido apresentada por JOSÉ OSÓRIO e contrariada por EDUARDO CORREIA e, por fim, expressamente rejeitada na comissão de revisão do CP de 1963-1964, in ACTAS CP/EDUARDO CORREIA, 1963 b: 19 e 20; acresce que foi precisamente por isso que a revisão do CP de 1995 revogou a faculdade do tribunal reduzir o resto do tempo de prisão a cumprir no caso de revogação da liberdade condicional).
19. Por exemplo, se o arguido for condenado na pena de 12 anos e for libertado condicionalmente ao meio da pena (6 anos), será definitivamente libertado quando completar o 11.º ano da pena (6 anos + 5 anos), sendo portanto a pena de 12 anos reduzida para 11 anos.
Por isso, a norma do artigo 61.0, n.° 5, deve ser interpretada no sentido de só permitir excepcionalmente a dita modificação substancial da pena. Isto é, se a liberdade condicional implicar a extinção de um remanescente da pena superior ao período de liberdade condicional de 5 anos, ela só deve ser concedida quando haja motivos excepcionais relacionados com a situação pessoal e a evolução da personalidade do recluso que justifiquem a concessão de semelhante benefício ao arguido pelo tribunal de execução das penas.

Tanto basta para se concluir que a decisão não merece censura e deve ser confirmada.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente no pagamento de 3 UC de taxa de justiça.

Porto, 2012/06/20
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
_______________
[1] Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, notas 18 e 19 ao art.º 61.º, p. 213.