Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0434471
Nº Convencional: JTRP00037221
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
MORA
Nº do Documento: RP200410070434471
Data do Acordão: 10/07/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - A mora da entidade expropriante é o atraso culposo no pagamento da indemnização.
II - A mora da expropriante só se inicia decorridos dez dias sobre a notificação prevista no artigo 71 n.1 do Código das Expropriações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.

Nestes autos de expropriação por utilidade pública, em que é expropriante o Instituto de Estradas de Portugal e expropriados B............. e outros, foi proferida sentença, em 4.1.2001, que fixou o valor da indemnização devida pela expropriação em 35.500.000$00, a actualizar nos termos legais desde 27.12.1989.
Essa decisão foi confirmada por acórdão proferido nesta Relação em 9.7.2002, transitado em 24.9.2002.

Após baixa do processo à 1ª instância, foi junto requerimento, que havia sido apresentado a 17.7.2002, para habilitação dos herdeiros da expropriada B............., falecida em 19.11.1997, seguindo-se os termos normais do respectivo incidente, que veio a findar com a sentença que julgou procedente a habilitação, proferida a 18.11.2002, passando a figurar como expropriadas C............ e D............... .
Foi igualmente admitida a substituição da Junta Autónoma de Estradas pelo Instituto de Estradas de Portugal, face à extinção daquela entidade – decisão proferida a 27.1.2003.

Após sucessivos requerimentos das partes, foi, em 3.3.2003, elaborado pela secretaria do Tribunal o cálculo da actualização da indemnização, tendo sido fixado o montante de € 181.454,55, incluindo juros de mora vencidos desde 24.9.2002 até àquela data.
As partes foram notificadas do cálculo efectuado, tendo as expropriadas manifestado concordância com o mesmo; a expropriante discordou, tendo requerido esclarecimentos.
Porém, antes de ser proferido qualquer despacho, veio, a 4.4.2003, apresentar o cálculo da actualização do valor indemnizatório elaborado pelo INE, que fixou o montante de € 226.953,03, entendendo que deveria depositar apenas o montante de € 158.144,00, por já se encontrar depositada a quantia de € 68.809,03.
Notificadas, as expropriadas reafirmaram a sua concordância com o cálculo efectuado pelo Tribunal.

Foi depois proferido despacho (em 8.9.2003) em que se concluiu ser aplicável ao caso o disposto no art. 71º do CExp99, dando-se sem efeito o cálculo efectuado pelo Tribunal e ordenando-se a notificação da expropriante para proceder ao depósito do montante liquidado no cálculo por si apresentado, isto é, € 158.144,00.
Não se conformando com esta decisão, as expropriadas vieram pedir esclarecimentos sobre o início da mora da expropriante e impugnar o cálculo apresentado por esta.
Pronunciando-se sobre esse requerimento, a expropriante considerou-o anómalo, pedindo o seu desentranhamento; subsidiariamente, concluiu pelo seu indeferimento.

Foi então proferido despacho em que:
- se considerou admissível o requerimento das expropriadas;
- se reconheceu que, exceptuada a decisão proferida a fls. 394 (decisão acima referida de 8.3.2003), o Tribunal não ordenou a notificação da expropriante para proceder ao depósito de qualquer montante;
- se julgou improcedente a impugnação do cálculo apresentado pela expropriante;
- se considerou existir mora da expropriante desde o trânsito em julgado da decisão que fixou definitivamente o valor da indemnização.
Pelo que, complementando-se a decisão de fls. 394, foi ordenada a notificação da expropriante para proceder ao depósito do montante devido a título de juros de mora.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso a expropriante, de agravo, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:

1. Apesar de não estarem reunidos os pressupostos de aplicação/funcionamento da aplicação de juros de mora, o tribunal a quo optou por deferir o pedido formulado pelas expropriadas da sua aplicação.
2. E isto apesar da entidade expropriada não ter sido condenada na sentença que fixou a indemnização devida à parcela objecto dos autos de expropriação à margem referenciados a depositar tais juros (na hipótese de os mesmos se vencerem...),
3. Nem de as expropriadas terem demonstrado nos autos os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana.
4. E, sobretudo, apesar da entidade expropriante não ter sido notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 71º, nº 1 do Cód. Exp., como reconhece expressamente a própria decisão recorrida, formalidade esta que se reputa essencial para o desencadear da contagem de juros de mora para quem entenda que os mesmo são devidos ainda que não figurem na respectiva sentença condenatória.
5. Assim, o douto despacho recorrido ao deferir a pretensão formulada pelas expropriadas de ver aplicado ao caso o instituto da sanção pecuniária compulsória, violou, os artigos 70º e 71º Cód. Exp., por erro de interpretação.
Face ao exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida no sentido antes exposto, ou seja, que indefira o pedido de aplicação de juros moratórios, nos termos supra descritos.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O Sr. Juiz sustentou a sua decisão.
Cumpre decidir.

II.

A questão que se discute no recurso é tão só a de saber se são devidos juros de mora pela entidade expropriante nos termos fixados no despacho recorrido.

III.

Para além dos factos que constam da primeira parte do relatório precedente, importa considerar que a entidade expropriante foi notificada em 16.9.2003 do despacho (de 8.9.2003) que ordenou a realização do depósito, vindo a fazê-lo em 3.11.2003.

IV.

A Recorrente sustenta que, na situação descrita, não são devidos juros de mora.
No essencial, alinha duas razões:
- a sentença proferida não a condenou no pagamento de juros de mora;
- (subsidiariamente) a expropriante não foi notificada nos termos do art. 71º nº 1 do CExp..
Vejamos.

O despacho recorrido assenta no disposto no art. 70º nº 1 do CExp99, que é do seguinte teor:
Os expropriados e demais interessados têm o direito de ser indemnizados pelos atrasos imputáveis à entidade expropriante no andamento do procedimento ou do processo expropriativo ou na realização de qualquer depósito no processo litigioso.
No caso, tendo em conta a declaração de utilidade pública – muito anterior a 1999 – a aplicação deste preceito suscita reservas, já que, como parece evidente, o mesmo não tem natureza adjectiva.
Esta questão não tem, porém, interesse prático, uma vez que a responsabilidade imputada à entidade expropriante na decisão recorrida assenta apenas no segmento final da norma – (atraso) na realização de qualquer depósito no processo litigioso – sempre se tendo entendido, uniformemente, como adiante se verá, que nessa situação (de atraso) são devidos juros de mora.

Dispõe o art. 71º nº 1 do CExp – e de modo semelhante os preceitos que o antecederam (arts. 100º nº 1 do CExp76 e 68º nº 1 do CExp91 [Vale pois aqui, quanto à aplicação do art. 71º nº 1, em parte, o que acaba de se referir – cfr. Ac. do STJ de 24.10.2002, CJ STJ X, 3, 102]) – que, transitada em julgado a decisão que fixar o valor da indemnização, o juiz da 1ª instância ordena a notificação da entidade expropriante para, no prazo de 10 dias, depositar os montantes em dívida (...).
Por outro lado, importa ter presente que, nos termos do art. 804º nº 2 do CC, o devedor se considera constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
Em regra, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (art. 805º nº 1). Porém, há mora, independentemente de interpelação se a obrigação tiver prazo certo – art. 805º nº 1 a).
A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor – art. 804º nº 1; o art. 806º nº 1 faz corresponder a medida da indemnização aos juros a contar da constituição em mora; esses juros são os legais (nº 2 do mesmo preceito).

Como se afirma no Ac. do T. Constitucional de 5.3.1998 [BMJ 475-140 e segs.], a mora da entidade expropriante é o atraso culposo no pagamento da indemnização. A entidade expropriante incorre em mora quando, por causa que lhe seja imputável, não deposita no Banco X.......... o valor da indemnização, no termo do prazo referido no art. 100º nº 1 do CExp76 (idêntico, como se referiu, aos correspondentes normativos dos dois códigos posteriores).
À mora da entidade expropriante são aplicáveis, com as necessárias adaptações, os artigos 804º, 805º e 806º do CC. Para que haja mora, além da culpa da entidade expropriante, é necessário, tal como sucede na mora do devedor em direito civil, que a indemnização por expropriação seja ou se tenha tornado certa exigível e líquida.
A constituição em mora da entidade expropriante ocorre quando se completar o prazo de 10 dias referido no citado art. 100º nº 1. Estamos aqui perante uma obrigação da entidade expropriante de prazo certo, pelo que esta incorre automaticamente em mora com o decurso daquele prazo. A consequência principal da mora da expropriante é a obrigação de reparação dos danos moratórios, nos termos do art. 804º nº 1 do CC.

Carece, pois, de fundamento, como se salienta no Ac. desta Relação de 10.10.2000 [CJ XXV, 4, 205], a afirmação de que não são devidos juros se a sentença que fixou a indemnização não condenar no pagamento desses juros. Os juros em causa são os moratórios, sancionadores da mora do devedor.
Porém, como decorre do que se expôs, essa mora só se inicia decorridos dez dias sobre a notificação prevista no art. 71º nº 1 do CExp [Neste sentido, os Acs. do STJ de 30.5.95, BMJ 447-470, de 8.1.2000, CJ STJ VIII, 3, 118 e de 24.10.2002, acima citado, e desta Relação de 21.2.2000, CJ XXV, 2, 177 e, bem assim, de 30.5.2000, 8.6.2000, 21.5.2002, 17.6.2002, 24.4.2003 e 12.2.2004 (este em texto integral) em http://www.dgsi.pt - nºs conv. JTRP00026053, JTRP00026788, JTRP00033998, JTRP00034201, JTRP00036527 e JTRP00036206, respectivamente].

No caso, a entidade expropriante foi notificada nos termos do art. 71º nº 1 do CExp por carta remetida em 16.9.2003; presume-se que essa notificação foi efectuada em 19.9.2003.
O conhecimento que a mesma teve anteriormente do montante fixado a título de indemnização não releva, por si; nem o retardado cumprimento do citado art. 71º nº 1 lhe é imputável (cfr. relatório deste acórdão).
A obrigação tinha prazo certo que se completou 10 dias depois da referida notificação.
Assim, a mora só se iniciou em 30.9.2003 (inclusive).

Procedem, deste modo, as conclusões do recurso.

V.

Em face do exposto, decide-se dar provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, na parte em que ordenou a notificação da entidade expropriante para proceder ao depósito do montante devido a título de juros de mora desde o trânsito da decisão que fixou a indemnização devida pela expropriação.
Custas pelas expropriadas.

Porto, 7 de Outubro de 2004
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo