Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00039410 | ||
| Relator: | JOSÉ FERRAZ | ||
| Descritores: | RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS FALÊNCIA | ||
| Nº do Documento: | RP200607130631637 | ||
| Data do Acordão: | 07/13/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE COM 1DEC VOT | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Indicações Eventuais: | LIVRO 679 - FLS. 165. | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I- Perante o novo regime das insolvências, introduzido pelo C.I.R.E. as medidas aprovadas no Plano de Insolvência, que constitui uma auto-regulação de interesses e visa exclusivamente a satisfação dos interesses dos credores, vinculam os credores privilegiados públicos, os créditos da Segurança Social (e outras entidades mencionadas no artigo 97º/1 do CIRE). II- Apesar da nulidade da cláusula que contempla a derrogação do DL 411/91, o plano, estabelecido no âmbito de um processo judicial de insolvência, não deixa de ser vinculativo para o ISS, nos termos previstos no Código. III- Nem a nulidade dessa cláusula vicia o plano homologado. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. No processo de insolvência (proc. …./04, do …º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santo Tirso) de B……., Lda, e declarada a insolvência, por sentença de 28/01/05, pelo Instituto da Segurança Social, I.P., foram reclamados, para verificação e graduação, os créditos: A – como créditos comuns: - € 106.830,22, de contribuições devidas à segurança social, referentes aos meses de Fevereiro a Junho de 1995, Janeiro de 1999, Março, Outubro e Novembro de 2000, Março, Junho a Setembro de 2001, Março a Dezembro de 2002, e Janeiro a Novembro de 2003; - € 36.674,46 de juros de mora e B – como créditos privilegiados: - € 92.609,97, de contribuições devidas pela insolvente à segurança social e relativos aos meses de Dezembro/2003 e Janeiro a Novembro de 2004 (doze meses anteriores ao início do processo de insolvência) e - € 9.702,31 de juros de mora, relativos a essas contribuições em dívida. Os créditos, como reclamados, foram reconhecidos e foram graduados a seguir ao créditos dos trabalhadores (ou seja, em 2º lugar) os reclamados “ao abrigo do disposto no artº 97º nº 1 do C.I.R.E.” (isto é, com privilégio) e os demais como créditos comuns (em 3º lugar) – conforme sentença com certidão a fls. 169/170 destes auto. Foi pelo Administrador da Insolvência apresentado o Plano de Insolvência que contempla, além de outras medidas, no que respeita aos créditos da Segurança Social, consta do Plano que foi aprovado “a dívida à Segurança Social (…) será paga em 72 prestações mensais sucessivas e iguais, não considerando juros vencidos e vincendos. A primeira prestação vencer-se-á seis meses após o trânsito em julgado da sentença homologatória” e “para garantia do bom pagamento das prestações referidas no ponto anterior deverá ser constituída hipoteca voluntária dos imóveis mencionados na al. a) até ao montante da dívida privilegiada” – prédios identificados a fls. 25 destes autos, sendo um rústico e outro urbano. Mais consta do plano de insolvência (conforme alteração em assembleia de credores), quanto aos “preceitos legais derrogados [(al. e) do nº 2 do artigo 195 do CIRE)]”, e no que respeita às “Dividas do Instituto da Segurança Social propõe que sejam derrogados os preceitos legais que regem a regularização das dívidas à segurança social, nomeadamente o Decreto-Lei 411/91 de 17 de Outubro”. O Plano foi aprovado por 70,39% dos créditos, tendo votado contra a aprovação do plano o IGF - Segurança Social e o Banco C……, pelo que foi homologado pelo tribunal, por decisão de 18 de Agosto de 2005. Na sequência da publicitação deliberação de aprovação do plano de insolvência, que sofreu alterações na assembleia, a ele não foi feita oposição. Não consta dos autos autorização de qualquer entidade que “superintende” na segurança social a autorizar a redução ou deferimento do pagamento dos créditos das Instituições de Segurança Social, ou a aprovar o Plano de Insolvência, nos termos em que foi apresentado pelo Administrador da Insolvência. II. Inconformado, recorre o Instituto da Segurança Social que, alegando, conclui: “1 – A deliberação que aprovou o pagamento da dívida à Segurança Social nos termos supra mencionados, estabeleceu uma redução e um deferimento de créditos públicos sem expressa autorização da entidade competente para o efeito, como inequivocamente exige o disposto no art. 2º do D.L. 411/91, de 17/10, diploma este que prevê as situações em que excepcionalmente se admite a regularização de dívidas às instituições de segurança social e, como bem decidiu o Acórdão do STJ, de 21/10/98 (in CJ – STJ, 1998, Tomo 3, pág. 259), “a vinculação proveniente da homologação afecta apenas os créditos comuns, ou seja, os créditos não privilegiados, e aqueles que, embora o fossem, renunciaram à garantia e deram a sua adesão à adopção das providências, o que bem se compreende, sob pena de o credor beneficiário perder, afinal, a eficácia da sua garantia” (no mesmo sentido, Carvalho Fernandes e J. Labareda, ob. cit.). 2 – Os art.s 195º e 197º do C.I.R.E. não permitem ao Sr. Administrador derrogar normas legais imperativas sobre créditos públicos, mormente neste caso quando a deliberação que aprova o pagamento da dívida à Segurança Social estabelece uma redução e um diferimento de créditos públicos, com prejuízo dos privilégios creditórios existentes e sem expressa autorização da entidade competente para o efeito, como inequivocamente exige o disposto no art. 2º do D.L. 411/91, de 17/10. 3 – Tal interpretação estaria frontalmente contra a intenção do legislador, numa perspectiva histórica e teológica, já que o CIRE manteve a existência de privilégios creditórios da Segurança Social no seu artº 97 sem qualquer ressalva ou excepção. 4 – Por outro lado, ainda que tal fosse possível, o que só por absurdo se admite, para que os direitos decorrentes de privilégios creditórios fossem afectados pelo plano de insolvência, não bastaria que no plano de insolvência se derrogassem os direitos decorrentes desses privilégios, seria também necessário que tal plano estatuísse expressamente algo em sentido diverso, indicando os preceitos legais derrogados, o âmbito dessa derrogação, o que não se verificou no presente caso, e nunca derrogando dessa forma genérica um diploma inteiro!... 5 – Mas mesmo com estatuição expressa em sentido diverso, a interpretação dada à al. e) do nº 2 do art. 195º do CIRE, nunca poderia ter essa abrangência, sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2º da Constituição da República, que princípio postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar. 6 – Assim, não resta outra alternativa, que seja a de se concluir pela inconstitucionalidade do Al. e) do nº 2 do art. 195º do CIRE quando interpretada no sentido de que é permitido derrogar diplomas legais ou normas imperativas. Termos em que V.s Ex.as, concedendo provimento ao recurso e alterando, em conformidade, a douta sentença recorrida, farão inteira Justiça.” Não foram apresentadas contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. III. Sendo pelas conclusões das alegações (arts. 684º/3 e 690º/1 do CPC) que se delimita o objecto do recurso, cabe encontrar solução par as questões – a) se é inadmissível, em processo de insolvência, que o plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores defina o conteúdo e prazos de pagamento de créditos de que sejam titulares as instituições de segurança social, nomeadamente pela redução dos créditos e diferimento de prazos de pagamento, que contra ele se manifestem, e b) se, na situação de admissibilidade da derrogação de normas imperativas, no que concerne aos privilégios que acompanham esses créditos, para tal suceder se tornaria indicar expressamente os preceitos derrogados e o âmbito da derrogação e c) se a interpretação dada à al. e) do nº 2 do art. 195º do CIRE, nunca poderia ter essa abrangência de derrogar as normas imperativas, no que concerne aos privilégios que acompanham os créditos das segurança social, sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2º da Constituição da República. IV. Em análise da primeira questão - Os factos a atender para a decisão são os que constam relatados no ponto I do relatório, a que aqui se atende para os pertinentes efeitos legais. V. Em análise da primeira questão - A) Em primeiro lugar, e porque o recorrente afirma que a decisão de homologação do Plano de Insolvência violou os arts. 10º e 11º do DL 103/80, de 9/5, normas que (apenas) atribuem aos créditos da segurança social – resultantes de contribuições e juros de mora – privilégios mobiliários e imobiliários gerais, deve afirmar-se que se não vislumbra qualquer violação dessas normas. Se, por um lado, nenhuma aplicação essas normas têm no caso, nem se vislumbra em que aspecto foram afectadas nem o Instituto recorrente o esclarece. Por outro, a perda do privilégio não resulta do Plano mas do artigo 97º do CIRE e apenas na medida aí prevista, do que o recorrente nem discorda porque, em atenção a essa norma, reclamou os seus créditos (como privilegiados e como comuns). Acresce que de nenhuma cláusula do Plano resulta afectação das garantias previstas nos citados artigos 10º e 11º, isto é, pelo Plano não são desaplicadas essas normas nem suprimidos ou reduzidos os “privilégios”. Os créditos que têm privilégio continuam a tê-lo. Questão diversa, e é essa que ressalta do Plano, é a da redução do crédito (perdão de juros vencidos e vincendos sobre os créditos vencidos) e diferimento de prazos de pagamentos (em 72 prestações mensais, quanto ao crédito de contribuições). Mais se adianta que, em contrário do afirmado pelo recorrente (ver conclusão 4), não foi derrogada qualquer norma (injuntiva ou não) que atribua privilégio aos créditos da segurança social ou “direitos decorrentes desses privilégios”, pelo que o plano não afecta privilégios ou direitos decorrentes de privilégios. B) - Importa ter presente as seguintes normas do CIRE: Artigo 97 (Extinção de privilégios creditórios e garantias reais) 1 - Extinguem-se, com a declaração de insolvência: a) Os privilégios creditórios gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência; b) Os privilégios creditórios especiais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social vencidos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência; (…). Artigo 195º (Conteúdo do plano) 1 - O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência. 2 - O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente: a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor; b) A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade; (…) e) A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação. Artigo 196.º (Providências com incidência no passivo) 1 - O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor: a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»; b)O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor; c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos; d) A constituição de garantias; e) A cessão de bens aos credores. 2 - O plano de insolvência não pode afectar as garantias reais e os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos detidos pelo Banco Central Europeu, por bancos centrais de um Estado membro da União Europeia e por participantes num sistema de pagamentos tal como definido pela alínea a) do artigo 2.º da Directiva n.º 98/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Maio, ou equiparável, em decorrência do funcionamento desse sistema. Artigo 197º (ausência de regulamentação expressa): Na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência: a) Os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios não são afectados pelo plano; (…) Acresce o que se preceitua no artigo 217º do CIRE: 1 – Com a sentença de homologação produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, independentemente de tais créditos terem sido ou não, reclamados ou verificados. (…). C) - Os créditos da segurança social, por contribuições que lhe sejam devidas e juros de mora, gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral (arts. 10º e 11º do DL nº 103/80, de 09 de Maio). O privilégio concede ao credor, em atenção à causa do crédito, o direito de ser pago com preferência aos demais credores, independentemente de registo (da garantia) – artigo 733º do CC. O privilégio creditório dá a certos credores a faculdade de serem pagos com preferência a outros, preferência justificada pela causa do crédito. Os privilégios creditórios nascem com a constituição do crédito de que são garantias, mas a sua eficácia depende da penhora ou apreensão (ou acto equivalente) dos bens sobre que incidem. Mas, com a declaração de insolvência do devedor, os privilégios da segurança social (e das outras entidades públicas mencionadas na norma do artigo 97º/1 do CIRE), constituídos há mais de doze meses (antes) à data da insolvência extinguem-se, passando os créditos que deles beneficiavam a créditos comuns e a serem tratados como tal, em igualdade com os demais créditos comuns. Nem a recorrente põe em causa a aplicabilidade da norma (ou que esta padeça de qualquer desconformidade constitucional), tanto que reclamou os seus créditos já referindo os que beneficiam do privilégio e os que são créditos comuns. Não questiona a extinção dos privilégios operada pela norma do artigo 97º (como já antes sucedia, em termos gerais, por via do artigo 152º do CPEREF) e só na medida desse dispositivo operou a extinção. Por outro lado, pelo Plano homologado não se verifica a derrogação de qualquer direito do recorrente que decorra dos privilégios de que beneficia, na medida a que ficaram limitados nos termos do artigo 97º do CIRE. E os salvaguardados por essa norma não são afectados pelo plano de insolvência, de que não resulta a afectação do privilégio (nomeadamente a extinção ou redução) mantido por essa norma. Tudo o que de resto, nesse âmbito, entenda o recorrente, é mera confusão sua. Aliás, nesse plano consta mesmo a previsão do reforço das garantias dos créditos da segurança social, na parte em que continuam privilegiados, com a constituição de uma hipoteca voluntária sobre imóveis aí identificados. Daí que a sua aversão ao Plano de Insolvência, tanto quanto nos é dado entender das alegações e conclusões formuladas, manifesta-se à redução dos créditos (o que apenas acontece com o “perdão” de juros) e ao diferimento dos prazos de vencimento dos créditos relativos às contribuições (ao menos neste aspecto, sem razão substantiva que a recorrente aclare - porque nenhuma razão oferece para a não adesão ao pagamento deferido e em contribuição para a recuperação da empresa -, quando em diversos instrumentos legais permissões houve de pagamento fraccionado, por um número de prestações bem superior à que consta do Plano de Insolvência censurado, mesmo como forma de recuperação dos créditos da segurança social). Na verdade foi aprovado (e homologado) «o pagamento das dívidas em 72 prestações mensais, sucessivas e iguais, não considerando vencidos e vincendos, com vencimento da primeira prestação seis meses após a homologação do plano». E nesse valor, nas 72 prestações mensais, não se encontram apenas os créditos privilegiados mas também os créditos comuns (e assim reclamados pelo ISS). No que se refere à vinculação do Plano, sem a adesão do recorrente e/ou sem autorização de qualquer entidade pública (que superintenda na Segurança Social) a deliberação dos credores que afecte os créditos públicos, irrelevante é o apelo do recorrente ao douto aresto do STJ, de 21 de Outubro de 1998 (como muitos outros no mesmo sentido), que constituía orientação praticamente unânime desse Alto Tribunal, no que concerne à não vinculação dos credores privilegiados ou com garantia real à medida de recuperação deliberada e homologada, se não lhe dessem adesão ou não renunciassem às garantias, pois foi proferido no âmbito de aplicação de legislação (artigo 62º do CPEREF) que não tem qualquer aplicação neste processo, que segue tão somente os termos previstos no CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/3, com as alterações introduzidas pelo DL nº 200/2004, de 18/8), sem norma paralela. E a norma que poderá ter alguma correspondência (artigo 197º/a) do CIRE) não exige a adesão do credor beneficiário da garantia ou a autorização de terceiro (nomeadamente do Ministro da tutela ou entidade delegada) para o Plano ser vinculativo (mesmo para esse credor), desde que haja estatuição expressa no plano sobre a redução ou alteração dos créditos e respectivas garantias. É perante as normas deste diploma que se há-de aferir se os créditos da segurança social podem ser afectados pelo Plano, mesmo sem a sua adesão voluntária ou a autorização de entidade que nela superintende. E este diploma não exige essa adesão ou autorização. Como se constata do preâmbulo do DL 53/2004, o objectivo do processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (públicos ou privados), pelo que importa dotá-los dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores e, sendo o património do devedor a garantia dos seus credores, é a estes que “cumpre decidir quanto á melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado” (§ 3). É o interesse dos credores que está em causa, pelo que deverão ser estes a escolher a melhor forma de o satisfazer. No que respeita à aprovação do plano, a dispensa da concordância do credor com garantia para que o plano o vincule, é um importante meio de facilitação da aprovação dos planos de insolvência [ver Carvalho Fernandes/João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, II, 55.], que, de outro modo, poderiam ser frequentemente bloqueados, mesmo por razões não ponderosas e egoístas. Por outro lado, não colhe considerável inconveniência para o credor afectado, a dispensa da sua concordância à redução do crédito ou da garantia, uma vez que não fica de todo dependente da actuação dos demais credores, que se concertem em seu prejuízo. As deliberações da assembleia de credores nem podem ser discricionárias – pois o plano deve obedecer ao princípio da igualdade dos credores da insolvência (artigo 194º/1) – nem dar um tratamento mais desfavorável a um credor (contra a sua vontade) que a outro em idêntica situação nem conceder vantagens especiais injustificadas a determinado credor ou espécie de credores. Por um lado, e como decorrer do artigo 212º/2 do CIRE, o credor afectado intervém para a formação do quórum deliberativo, de que ficam afastados os créditos que não sejam modificados pelo dispositivo do plano (artigo 212º/2 do CIRE) e, por outro, o credor afectado, e que se tenha manifestado contra o plano, tem a faculdade de, nos termos do artigo 216º/2. a), do CIRE, - como acontece no caso do recorrente -, solicitar ao juiz a não homologação do plano, alegando e demonstrando que a sua posição ao abrigo do “plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano”. Ora, se bem que o ISS (recorrente) se manifestou contra o plano em assembleia de credores, não usou da faculdade deste normativo, pelo que, na hipótese da ocorrência de lhe assistir um tal fundamento, não poderia agora dele aproveitar nem se encontram assentes os pressupostos factuais para se concluir pela existência de um tal desfavor. Importa, pois, se, perante o novo regime das insolvências, as medidas aprovadas no Plano de Insolvência, que constitui uma auto-regulação de interesses e visa exclusivamente a satisfação dos interesses dos credores, vinculam ou não, e em que medida, os credores privilegiados públicos, os créditos da Segurança Social (e outras entidades mencionadas no artigo 97º/1 do CIRE), referindo-se que, na espécie, a parte maior do crédito da Segurança Social é crédito comum. A norma do artigo 97º (na vertente aqui relevante) tem natureza substantiva enquanto extingue e/ou mantém os privilégios do Estado e outras entidades públicas (reporta-se à extinção de garantias, tem a ver com o conteúdo dos próprios direitos que se exercem no âmbito do processo de insolvência) e situa-se no mesmo plano hierárquico das normas do DL 411/91, pelo que, se algum das normas do CIRE permitir a afectação do crédito da segurança social, seja em termos de redução seja de deferimento do pagamento, por deliberação dos credores homologada, ter-se-á de concluir pela vinculação do recorrente ao plano. Não se trata de derrogação do DL 411/91, de 17710, como consta do plano, para que nem o administrador nem a assembleia têm competência e poderes. É evidente que estes não podem derrogar as normas desse diploma (nomeadamente, do que poderia relevar essencialmente neste processo, o seu artigo 1º que estabelece “não é permitido autorizar ou acordar extrajudicialmente o pagamento prestacional de contribuições em dívida à segurança social, nem isentar ou reduzir, extrajudicialmente, os respectivos juros vencidos ou a vencer, salvo o disposto no artigo seguinte”, norma claramente injuntiva, embora o preceito comporte várias excepções como decorre do artigo 2º). Tal cláusula seria nula, a “derrogação” desse diploma legal que consta do plano é ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos. Mas esta conclusão pela nulidade e ineficácia de uma tal cláusula não conduz à não vinculação do recorrente pelo plano de insolvência. Quanto no artigo 195º/2. e), se fala na indicação dos preceitos derrogados, deverá conjugar-se com o artigo 192º/1 que estabelece “o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência, podem ser regulados num plano de insolvência em derrogação das normas do presente Código”. Por isso, as normas que podem ser derrogadas (e nem se trata de derrogação) são as do CIRE que estatuem sobre as questões referidas nesse nº 1. É que, quanto a essas questões, o Código prevê um regime que se tem por supletivo e daí afastável por deliberação dos credores em auto-regulação dos seus interesses que presidem a todo o processo de insolvência (v. artigo 1º). Como escrevem Carvalho Fernandes/João Labareda [Ob. Cit., 39, quando escrevem “ao lançar mão de um plano de insolvência como meio de auto-regulação de interesses, nos termos permitidos pela própria lei, os credores exercem simplesmente, a faculdade que lhe é concedida de afastar, no caso concreto, o desencadeamento da solução supletiva legal, mas não abolem nem eliminam, ainda que parcialmente, nenhuma norma do Código, mantendo-se elas plenamente vigentes e aplicáveis em todas as demais situações em que não haja intervenção dos credores, diferentemente do que sucederia se se tratasse de um verdadeiro caso de derrogação”.], é manifesta a impropriedade do conceito de derrogação, pois que os credores “não abolem nem eliminam”, mesmo parcialmente, nenhuma norma do CIRE, apenas que usam da faculdade por ele conferida de regularem os seus interesses de modo diverso do previsto nesse código. Do que supra se escreveu, resulta já que, apesar da nulidade da cláusula que contempla a derrogação do DL 411/91, o plano, estabelecido no âmbito de um processo judicial de insolvência, não deixa de ser vinculativo para o ISS, nos termos previstos no Código. Nem a nulidade dessa cláusula vicia o plano homologado. O artigo 62º do CPEREF (na redacção do DL 315/98, de 20/10) estabelecia que “1 - As providências que envolvam a extinção ou modificação dos créditos sobre a empresa são apenas aplicáveis aos créditos comuns e aos créditos com garantia prestada por terceiro, devendo incidir proporcionalmente sobre todos eles, salvo acordo expresso dos credores afectados, e podem estender-se ainda aos créditos com garantia real sobre bens da empresa devedora, nos termos em que o credor beneficiário de garantia real vier a acordar. 2 - O Estado, os institutos públicos sem a natureza de empresas públicas e as instituições da segurança social, titulares de créditos privilegiados sobre a empresa, podem dar o seu acordo à adopção das providências referidas no número anterior, desde que o membro do Governo competente o autorize. (…). O CIRE não contém norma com esse teor. A norma paralela é a do artigo 197º, atrás reproduzida (na parte relevante), que não contém uma tal limitação (nº 2) e não impede, mas permite a afectação dos créditos do Estado e outras entidades públicas pelo plano, na medida em for aprovado e homologado (artigo 217º/1 do CIRE). Do plano de corre expressamente a afectação dos créditos da Segurança Social, no que respeita à redução (no que concerne aos juros) e ao diferimento dos prazos de vencimento (pagamento em 72 prestações mensais). Pelo que, nos termos dessa norma 197º/a do CIRE, os créditos do ISS ficam afectados (modificados) nos termos do plano aprovado e homologado. Verifica-se do artigo 196º/2 do CIRE (atrás reproduzido) que foram excepcionados da afectação pelo plano as garantias reais e os privilégios creditórios acessórios de créditos detidos pelo Banco Central Europeu e outras entidades nos termos aí expressos. Da excepção não consta a Segurança Social, bem sabendo o legislador da natureza e finalidade dos créditos dessas instituições e que, se pretendesse excepcionar os créditos detidos pelo Estado e pela Segurança Social, concerteza tê-lo-ia feito expressamente e em termos adequados (cfr. artigo 9º/3 do CC). No âmbito do processo de insolvência vincula o princípio da igualdade dos credores, de que em norma alguma são excepcionados os créditos detidos pela segurança social (cfr. arts. 192º/2 e 194º/1 do CIRE), sendo nulo qualquer acordo que confira vantagens a um credor que não se encontrem incluídas no plano. Entre as providência que podem ser aprovadas no âmbito de um plano de insolvência encontram-se “o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros” e “a modificação dos prazos de vencimento ou as taxas de juro dos créditos” (artigo 196º/1. a) e c) do CIRE), e sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados. As citadas normas não fazem excepção. Aprovado o plano, pelo “quórum” estabelecido no artigo 212º, improcedente pedido de não homologação (artigo 216º/1) por inverificação de desfavor ou prejuízo do credor afectado pelo plano, homologado este, vincula todos os credores garantidos, privilegiados e comuns. É que acontece com os créditos do ISS recorrente. Improcede a questão suscitada. VI – Da segunda questão - A decisão da questão antecedente prejudica o conhecimento desta, na medida em que, entendendo-se ineficaz a “derrogação” do DL 411/91, torna-se irrelevante se, para ser admissível, a deliberação exigia se expressassem (ou especificassem) os preceitos “derrogados” ou se bastava com a referência genérica ao diploma em causa. De qualquer modo, entende-se que a eficácia da derrogação não exige a expressa (discriminada) indicação dos preceitos afastados. Basta que seja inteligível, pelo conteúdo do plano, quais os preceitos legais afastados [Carvalho Fernandes/João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, II, 50. Escrevem estes autores que “é de crer que a circunstância de, por qualquer motivo, se omitir a indicação do que, em concreto é afastado, preterindo embora a determinação da al. e) do nº 2, não constitui vício susceptível de inquinar a validade da deliberação dos credores e, bem assim, de fundamentar a não homologação oficiosa por parte do tribunal”.]. In casu, a ser possível derrogar os preceitos do DL 411/91, facilmente se compreende, pelo conteúdo do plano de insolvência aprovado, que as normas afastadas são as contidas nos arts. 1º e 2º (quanto à redução dos créditos de juros e à necessidade de autorização do membro do governo competente para a modificação dos créditos da segurança social) desse DL. Daí que a falta de discriminação dos preceitos “derrogados” não inviabilizaria o afastamento da aplicação do seu regime, se permitida fosse essa “derrogação”. VII – Da terceira questão – Quanto á inconstitucionalidade do artigo 195º/2. e) do CIRE, quando interpretado no sentido de que é permitido derrogar diplomas legais e normas imperativas. Ponderou-se em V) que nem o artigo 192º/1 nem o artigo 195º/2. e), do CIRE permitem a derrogação de normas que não sejam as desse Código que regulam as questões mencionadas no nº 1 daquele preceito, bem como a nulidade da cláusula do plano (que não afecta a parte restante nem implica modificação alguma do plano) que “derroga” o DL 411/91. Desaplicada essa cláusula e dada a interpretação da citada al. e) – não permitir a derrogação de diplomas legais ou normas legais imperativas, com referência do DL 411/91, mas apenas as normas “supletivas” do CIRE que regulam as questões previstas no seu artigo 192º/1 - não haveria de conhecer da questão da inconstitucionalidade suscitada. A que acresce que a lesão do direito que o recorrente afirma, situa-a na supressão ou redução dos privilégios, o que não acontece, como se afirmou. Porém, decidindo-se que as normas dos arts. 196º e 197º mencionadas (como também 192º e 194º) permitem a modificação (mesmo em sentido desfavorável) dos créditos da Segurança Social pelo plano de insolvência, vejamos se uma tal interpretação ofende o princípio da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito que o artigo 2º da CRP salvaguarda. O princípio da protecção da confiança revela-se como que a face subjectiva do princípio da segurança jurídica, que permita aos cidadãos planificar e orientar a sua vida autonomamente, confiantes na estabilidade jurídica e na realização do direito. Como escreve J. Gomes Canotilho [Em Direito Constitucional, 7ª ed., 257] a segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos”. Não pode afirmar-se que a ordem jurídica, enquanto permite a modificação da situação dos créditos da segurança social, na nova regulamentação da insolvência, por via do plano de insolvência regularmente aprovado e homologado, defrauda a confiança dos cidadãos, ou dessas instituições, quanto a expectativas fundadas da permanência da regulamentação jurídica desses créditos e à não afectação pela nova estatuição jurídica. O princípio da protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, que implicam um mínimo de certeza e segurança nos seus direitos e nas expectativas que lhes são criadas, obsta apenas às afectações intoleráveis, arbitrárias e opressivas desses mínimos de certeza e segurança das pessoas, defraudando as legítimas expectativas criadas e com as quais (afectações) os cidadãos não podiam razoavelmente contar. O que não significa que “seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga” mesmo que dessas modificações possam resultar frustradas algumas das expectativas dos cidadãos, pois que o Estado legislador, no seu poder e dever de conformação normativa, não pode estar impedido de procurar “adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam ‘tocadas’ relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte”. O princípio da confiança apenas obsta a uma nova estatuição jurídica que implique, nas relações jurídicas já constituídas, “uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico, que regia a constituição daquelas relações e situações”. Nesse caso, a lei violaria o mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, do qual se exige que organize a ‘protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação da vida’. Na aferição da inadmissibilidade da afectação das expectativas dos cidadãos legitimamente fundadas, deve ponderar os “critérios: a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não podiam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes” [Ac. TC 302/2006, no DR, II Série, de 12/06/06]. Não faz grande sentido que as Instituições de Segurança Social, a quem são cometidas relevantes funções do Estado (artigo 63º da CRP) pretendam que este mantenha determinado status dos seus créditos (ou da sua normação) ou vejam frustradas expectativas na manutenção dessa situação para obstar a alterações na ordem jurídica, operadas pelo Estado, apelando ao princípio da confiança. Essa confiança, na manutenção da ordenação jurídica dos seus créditos (nomeadamente na manutenção dos privilégios acessórios) não se tem por fundada, pois nem decorre das normas que sobre eles estatuíam e são frequentes as iniciativas do legislador modificativas das relações creditícias da segurança social, nomeadamente quando ao deferimento dos prazos de vencimentos (pagamento em prestações), redução dos juros de mora (e quanto à dimensão dos créditos privilegiados – veja-se o artigo 97º do CIRE, no âmbito do processo de insolvência). Não há frustração de expectativas legitimamente fundadas. Nem as modificações são excessivas, onerosas, arbitrárias e injustificadas, pois nem importam maior onerosidade que a que afecta os demais credores afectados pelo plano de insolvência, e ainda que titulares de créditos com garantia, nem criam discriminação alguma em relação a estes. Justifica-se a sujeição dos créditos das entidades públicas, no domínio do processo de insolvência, em situação de igualdade com os demais credores, às normas instituídas pelo CIRE, com sujeição às deliberações legítimas e legais – em que se respeitem o princípio da igualdade dos credores, não se discriminem os credores nem concedam a certo credor tratamento mais desfavorável não justificado objectivamente – que aprovem o plano de insolvência, que constitui uma auto-reulação dos interesses dos credores concorrentes na insolvência, em que se incluem essas entidades. Não é criada para os créditos da segurança social uma modificação desfavorável, de tal modo excessiva e arbitrária, que afronte o invocado princípio da protecção da confiança, decorrência do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa. Pelo que a interpretação das citadas normas do CIRE, no sentido da admissibilidade da modificação dos créditos da segurança social pelo plano de insolvência, mesmo que com a sua oposição, não afronta o dito princípio da protecção da confiança. VIII - Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em negar provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. Porto, 13 de Julho de 2006 José Manuel Carvalho Ferraz Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves António do Amaral Ferreira (Votei em conformidade revendo, no que respeita à primeira questão, a posição assumida na apelação nº 5648.05) |