Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0130480
Nº Convencional: JTRP00028751
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO POPULAR
DEFESA DO AMBIENTE
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: RP200104260130480
Data do Acordão: 04/26/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CIV V N GAIA
Processo no Tribunal Recorrido: 78-B/00
Data Dec. Recorrida: 12/11/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional: CONST97 ART211 N1.
LOTJ99 ART18 N1.
L 11/87 DE 1987/04/07 ART42 ART45.
L 83/95 DE 1995/08/31 ART12 ART52.
Sumário: I - A questão da competência material afere-se pelo pedido formulado.
II - Para a acção popular civil, em que se pede que uma empresa seja condenada a tomar uma série de medidas tendentes a evitar que a actividade da sua unidade fabril continue a provocar danos à saúde, bem estar e ambiente dos habitantes de uma freguesia, é competente o tribunal judicial ou tribunal comum
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

ANTÓNIO .........., MARIA ..........., ALEXANDRA ..........., MIGUEL ............ e RUI ........... intentaram, nas Varas Mistas de ............., nos termos da Lei n.º 83/95 de 31/8, acção popular, em representação dos cidadãos residentes na freguesia de ..........., com processo comum ordinário contra R........, LDA, pedindo que esta seja condenada a:
a) Fazer cessar, na unidade fabril em causa, a emissão de fumos negros e fuligem resultante de desajustamentos no funcionamento da caldeira, que vêm obrigando a queima incompleta de nafta, com a consequente emissão de fumos negros, implementando um sistema de tratamento dos mesmos completamente eficaz do ponto de vista técnico, fixado por peritagem;
b) Implementar processos/meios de redução das emissões fugitivas de compostos orgânicos voláteis que ocorrem, essencialmente, durante o abastecimento à fábrica de asfalto transportados em camiões cisterna;
c) Eliminar, ou pelo menos resguardar e proteger os desperdícios industriais;
d) Retirar o tanque de combustível situado na parte exterior das instalações fabris e praticamente junto da casa onde habitam bem como de outras casas de habitação daquela artéria.
e) Abster-se de fazer com que os camiões cisterna se abasteçam naquele local, designadamente à noite, mais precisamente de madrugada;
f) Adoptar procedimentos técnicos, hábeis para eliminar o ruído agora existente;
g) Afectar à realização das medidas decretadas, pelo menos, a quantia que a requerida destinou à eliminação da poluição, no valor de 29 759 contos.
Alegam, em suma, que Ré tem as suas instalações fabris próximas de um denso conjunto populacional e se dedica a preparar e produzir papel alcatroado ou asfaltado, utilizando como matéria prima betumes, polyesteres, fibra de vidro, polipropilenos e borrachas sintéticas. Alegam ainda que o seu modo de funcionamento está a provocar danos na saúde e qualidade de vida das pessoas bem como no meio ambiente.
A R. contestou , arguindo a incompetência em razão da matéria, sustentando ser o competente o Tribunal Administrativo e ainda ser impróprio o meio processual utilizado.
Para tanto, alega, em suma, que se encontra devidamente licenciada pelas autoridades públicas competentes que atestam que cumpriu a legislação especial aplicável ao funcionamento e exploração da unidade industrial em causa. Por isso, a eficácia desses actos administrativos só pode ser suspensa pelas entidades competentes ou pelos Tribunais Administrativos.
Defende ainda que a acção para a defesa de interesses próprios protegidos por lei no domínio do ambiente se encontra regulada no artigo 52º nº2 al. a) do Cod. Procedimento Administrativo.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a arguida excepção da incompetência material.
A Ré agravou, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ 1ª - Foi utilizado meio processual impróprio.
2ª - O Tribunal é incompetente em razão da matéria.
3ª - O douto despacho recorrido violou, por erro de interpretação o disposto nos artigos 150 n.º 2 do Cód. de Procedimento Administrativo, artigo 42º da Lei n.º 11/87 de 11/4, Lei de Bases do Ambiente, artigos 2º, 22º e 66º da Constituição da República Portuguesa, artigos 53º n.º 2 al.a ) do Cód. Proc. Administrativo e artigos 288º al. a) e 494 al. a) do C.P.C..
4ª - Devendo ser revogado e substituído por outro que julgue no sentido antes exposto.”
Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do despacho recorrido.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão essencial a decidir é a de saber se o tribunal comum é materialmente incompetente para decidir a presente acção.
Sobre a questão da competência em razão da matéria vários preceitos legais estabelecem a competência residual dos tribunais judicias no confronto com as restantes ordens de tribunais.
Assim, o artigo 211º n.º 1 da Constituição da República estipula: “Os tribunais judicias são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por outro lado, o artigo 66º do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo D-L 329-A/95 de 12/12, dispõe: “ São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Preceito idêntico consta do artigo 18º n.º1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ( Lei n.º 3/99 de 13/1).
Temos, assim, como indiscutível que só no caso de haver lei que submeta a questão à jurisdição do foro administrativo deixará o tribunal judicial (comum) de ter competência para dela conhecer.
Importa também ter presente que a competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.
Assim, como é entendimento uniforme na jurisprudência e doutrina, como qualquer outro pressuposto processual, a competência afere-se pelo pedido formulado (cfr., Miguel Teixeira de Sousa, “Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, pág. 36 e, para além dos aí citados, os acórdãos do S.T.J. de 3.2.97 e de 2.7.96, respectivamente no BMJ n.º 364/591 e n.º 459/444).
Ora, no caso em apreço, os pedidos formulados não incidem sobre qualquer acto administrativo ou acto de gestão pública.
Os autores não pedem a suspensão da eficácia de acto administrativo de licenciamento industrial nem sequer que a Ré suspenda a laboração da sua unidade fabril. O que pedem é que a Ré seja condenada a tomar uma série de medidas tendentes a evitar que a actividade da sua unidade fabril continue a provocar danos à saúde bem estar e ambiente sadio dos habitantes da freguesia de ........
Perante os pedidos formulados constata-se que o litígio existente é entre os AA (e demais habitantes da freguesia de .........) e a Ré. Ora, a competência dos tribunais administrativos pressupõe, em regra, a existência de um conflito entre particulares e a Administração Pública e, por isso, em princípio, a competência para conhecer a presente acção é dos tribunais comuns.
O fundamento invocado pela Ré de se encontrar devidamente licenciada e estar a cumprir pontualmente todas as obrigações legais impostas para o funcionamento da sua unidade fabril terá eventualmente relevância para a procedência ou improcedência da acção, nada tendo a ver com a competência que, como atrás se referiu, é mero pressuposto processual.
De referir que a possibilidade dos AA. ou mesmo da Ré, caso viesse a ser condenada, demandarem o Estado com base no artigo 22º da Constituição, por ter legislado deficientemente ou de forma insuficiente, é absolutamente irrelevante para a questão em apreço.
A Ré/ agravante sustenta, contudo, que há disposições legais que submetem o objecto da presente acção ao foro administrativo.
Começa por invocar o artigo 42º da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril ( Lei de Bases do Ambiente) que estipula: “Aqueles que se julguem ofendidos nos seus direitos a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado poderão requerer que seja mandada suspender imediatamente a actividade causadora do dano, seguindo-se, para tal efeito, o processo de embargo administrativo”.
Em primeiro lugar, importa recordar que os AA. não pedem que a Ré suspenda a sua actividade industrial.
Por outro lado, o facto do citado artigo 42º se referir a “processo de embargo administrativo”, ao contrário do que poderia dar a entender pela terminologia utilizada, é irrelevante para a determinação do foro competente.
Assim, o artigo 45º da citada Lei n.º 11/87, expressamente estipula: “O conhecimento das acções a que se referem os artigos 66º n.º 3 da Constituição e 41º e 42º da presente lei é da competência dos tribunais comuns.”
Temos, pois, de concluir que o citado artigo 42º não atribui aos tribunais administrativos a competência para conhecer das acções que tenham como causa de pedir violação do direito a um ambiente (cfr., neste sentido, João Pereira Reis, “Lei de Bases do Ambiente – Anotada e Comentada”, pág. 91 a 93 e 95).
Invoca também a Ré os artigos 53º n.º 2 al. a) e 150 n.º2 do Código de Procedimento Administrativo.
O artigo citado 52º que estabelece a legitimidade para o procedimento administrativo estipula, no seu n.º2 : “Consideram-se, ainda, dotados de legitimidade para a protecção de interesses difusos:
a) Os cidadãos a quem a actuação administrativa provoque ou possa previsivelmente provocar prejuízos relevantes em bens fundamentais como a saúde pública, a habitação, a educação, o património cultural, o ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida.”
O artigo 150 n.º2, dispõe: “A eficácia dos actos administrativos pode ser suspensa pelos órgãos competentes para a sua revogação e pelos órgãos tutelares a quem a lei conceda esse poder, bem como pelos tribunais administrativos nos termos da legislação do contencioso administrativo”.
No entanto, é claro que estes artigos não atribuem aos tribunais administrativos competência para conhecer da presente acção pois, como atrás se referiu, os AA. não pedem a suspensa da eficácia de nenhum acto administrativo.
Aliás, o diploma que fixa a competência dos tribunais administrativos é o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e não o Código Procedimento Administrativo.
Sustenta ainda a agravante que a acção para a defesa de interesses próprios protegidos por lei no domínio do ambiente (artigo 66º da C.R.P.), entendido no sentido da protecção subjectiva desse direito, se encontra regulada no citado artigo 53º n.º2 al. a) do Código de Procedimento Administrativo.
O citado artigo 66º n.º1 da Constituição reconhece a todos o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado.
O dever de garantir esse direito recai sobre o Estado e também sobre todos os cidadãos.
O n.º 2 do citado artigo 66º, nas suas várias alíneas, enumera as medidas e acções que o Estado, por meio dos seus organismos e com o envolvimento e participação dos cidadãos, tem de promover e adoptar para assegurar o direito ao ambiente.
No entanto, dele não resulta de forma alguma que a defesa da qualidade ambiental só possa ser efectuada pelo Estado através das delegações regionais do ministério da tutela e pelos cidadãos através de procedimento administrativo.
É indiscutível que o citado artigo 53º n.º2 al.a) alarga a legitimidade para o procedimento administrativo a cidadãos ainda que apenas previsivelmente afectados com a actuação da administração em bens fundamentais como a saúde pública e o ambiente. Mas daí apenas resulta que eles passaram a ter a possibilidade legal de recorrer ao contencioso administrativo, designadamente, para impugnar acto administrativo que vai permitir a violação de direito fundamentais.
Ao contrário da interpretação da agravante, esta possibilidade não retira aos cidadãos lesados nos seus direitos fundamentais pela actividade de terceiros, ainda que com autorização dos organismos competentes do Estado, a possibilidade de os demandar nos tribunais comuns.
De notar que a Lei n.º 83/95 de 31/8, que veio regulamentar o direito de acção popular constitucionalmente consagrado no artigo 52º o qual tem por finalidade, designadamente, “promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural “(n.º 3 al.a), expressamente estabelece, no seu artigo 12º, que o exercício da acção popular pode revestir duas formas: a acção popular administrativa e a acção popular civil.
Por outro lado, o n.º 2 do citado artigo12º estabelece que a acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.
Resumindo e concluindo: Atento os pedidos formulados pelos AA. na presente acção popular civil, pelos quais se afere a competência e a forma de processo, o tribunal materialmente competente é o judicial ( comum) e a forma de processo adequada é a comum ordinária ( cfr. neste sentido, quanto a ser competente o tribunal comum, os acórdãos do STJ de 21..93, C.J. (STJ) ano I, tomo III, pág. 26 e de 2.7.96, BMJ n.º 495, pág. 444).
DECISÃO:
Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e confirma-se o despacho recorrido.
Custas pela Agravante.
Porto, 26 de Maio de 2001
Leonel Gentil Marado Serôdio
Norberto Inácio Brandão
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho