Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4179/07.2TBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP00043503
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: DOAÇÃO
ASCENDENTE
DESCENDENTE
COLAÇÃO
Nº do Documento: RP201002024179/07.2TBPRD.P1
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 351 - FLS 83.
Área Temática: .
Sumário: I - Não se mostra viciada a doação feita por ascendentes a descendente ou a alguns deles sem autorização dos demais, sendo que por ela se transmite a propriedade dos bens doados como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde a data em que o mesmo teve lugar, cfr. art.°s 940.° n.° 1, 947,° n.º 1 e 954.° al. a), todos do C. Civil.
II - Mas tal transmissão não evita que o(s) donatário(s)-descendente(s) do doador deva(m) restituir à massa da herança daquele, para igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão do ascendente, cfr. art.°s 2104° n.° 1, 2105.°, 2106.° e 2113.° todos do C. Civil, é o que se designa por colação.
III - Tal instituto do direito sucessório tem por fundamento o significado social que é atribuído às doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador, considerando-as como meras antecipações da herança. Ou seja, a lei faz assim presumir que qualquer doação feita em vida pelos pais apenas a um ou a alguns dos seus filhos não visa afectar ou lesar os demais filhos, prejudicando-os em relação aos beneficiados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 4179/07.2 TBPRD.P1
Tribunal Judicial de Paredes - ..º juízo cível
Recorrente – B……….
Recorridos – C………. e mulher
Relator – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Sílvia Pires
Desemb. Henrique Antunes


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – C………. e mulher, D………., intentaram no Tribunal Judicial de Paredes a presente acção declarativa de condenação, com processo comum sumário, contra E………. e mulher, B………., pedindo se condenasse os réus a:
a) Reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre os prédios identificados nos arts. 1°, 2°, 3° e 4° da petição inicial;
b) Absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou obstruam o livre exercício do direito de propriedade dos autores sobre tais prédios;
c) Procederem à entrega dos mesmos prédios aos autores, livres de pessoas e bens.
Alegaram para tanto que são proprietários dos prédios identificados nos art.ºs 1.º e 2.º e nos art.ºs 3.° e 4.° da p. inicial, por os terem adquirido por compra, estando essa mesma aquisição registada a seu favor na respectiva Conservatória do Registo Predial. Tais prédios encontram-se ocupados pelos réus que se recusam a entregá-los aos autores, no entanto não dispõem os réus de título que legitime tal ocupação, sendo que a referida recusa de entrega está a causar prejuízos aos autores.
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O réu marido não deduziu qualquer oposição e a ré mulher veio impugnar os factos alegados pelos autores, dizendo que celebrou um contrato de arrendamento verbal com a sua avó, a quem pagava renda, e ainda que a doação efectuada a F………., por falta de autorização dos restantes filhos dos doadores, é anulável.
A ré mulher deduziu ainda pedido reconvencional, pedindo a condenação dos autores a pagarem-lhe a quantia de € 10.000,00, a título de danos morais sofridos pela conduta daqueles.
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Julgou-se ser inadmissível a reconvenção deduzida pela ré mulher e absolveram-se os autores da respectiva instância.
Proferiu-se despacho saneador, seleccionou-se a matéria de facto e elaborou-se a base instrutória de que se não reclamou.
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Realizou-se o julgamento da matéria de facto com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados. Após proferiu-se a respectiva decisão de que se não reclamou.
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Encerrada a audiência de discussão e julgamento veio a ré, ao abrigo do disposto no art.º 524.º n.º 2 do C.P.Civil, requerer a junção aos autos dos documentos que constituem fls. 311 a 318, que segundo alegou estavam em posse de terceiros e para comprovar que “Pois se o Réu pagava a luz do poço, esse não existia à época”.
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Os autores opuseram-se à admissão da junção de tais documentos aos autos.
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Proferiu-se despacho a não admitir a junção aos autos de tais documentos, consignando-se:
“(…) No caso em apreço, o réu não concretizou no seu requerimento quais os factos que se propõe provar com tais documentos, não se podendo, por isso, aferir se tais factos são ou não posteriores aos articulados.
Por outro lado, não se alega qualquer ocorrência posterior aos articulados que justifique a junção de tais documentos.
Para além disso, analisada a base instrutória não se vislumbra qualquer interesse nos documentos agora apresentados.
Acresce que, analisados os documentos cuja junção o réu pretende verificamos que os mesmos forma emitidos por entidades públicas.
Na verdade, o réu requereu a junção de uma “carta” emitida pela Administração Regional de Saúde do Porto dirigido à Câmara Municipal ………., uma declaração emitida pela Sub-Região de Saúde do Porto e vários documentos emitidos pela Câmara Municipal ………. .
Ora tais documentos poderiam ter sido solicitados pelo réu a essas entidades, sendo certo que os mesmos foram emitidos em datas anteriores aos articulados.
Por todas as razões expostas não se admite a junção aos autos dos documentos apresentados pelo réu. (…)”.
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Inconformada com tal decisão dela veio recorrer, de agravo, a ré mulher, pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que ordene a admissão de tais documentos.
A agravante juntou aos autos as suas alegações que terminam com o que designa por “conclusões” mas que mais não sã do que a exacta reprodução das alegações:
1) A Apelante recorreu do douto despacho, por entender que nos termos 542.º, n.º 2 do, do Código de Processo Civil, a junção de um documento era perfeitamente legal e admissível e entende igualmente que o referido documento é importante que na altura não podia pagar a luz do poço porque este não existia fisicamente e portanto estava a pagar renda sobre o objecto do presente litígio.
2) Fundamentalmente pelo facto que o documento apresentado pela Apelante que só nessa altura teve conhecimento se encontrava na posse de terceiros isto é, na posse da Município de ………. . Assim sendo encontra-se preenchido os pressupostos do artigo 542.º, n.º 2 do, Código de Processo Civil.
3) A Apelante diz claramente que o documento se destinava quando a afirma que se o Réu pagava a luz do poço, esse não existia a época. Como tal o Réu pretendia provar que pagava renda, isto é provar o facto 3.º da base instrutória e não como diz o Autor no artigo 13.º da Douta Petição Inicial que ajudavam a pagar nos gastos de água e luz.
4) Fundamentalmente esse documento tem muito interesse para a justa resolução do processo sobre judice. Pois demonstra claramente nos termos do artigo 280.º do Código Civil que nulo o negócio jurídico seja fisicamente impossível, no caso concreto como podia o Réu ajudar a pagar a água se não existia poço com água nem tão pouco da companhia da água, assim sendo é nulo o contrato de ajudar a pagar a água e a luz.
5) O contrato de ajudar a pagar a água e a luz é nulo e o contrato de arrendamento verbal é perfeitamente legal e real.
6) Como se pode ver do documento junto que poço é apresentado na planta como zona a construir, como é possível uma pessoa pagar por uma coisa que não existe, neste caso água e a luz, portanto é um facto verdadeiro e real que o Réu pagava a renda.
7) Por sua vez o Tribunal recorrido ao não aceitar o documento junto pelo Autor com este seu acto não permite que seja a descoberta a verdade material do processo, isto é, a existência de um contrato de arrendamento como o réu invoca e a inexistência de um contrato de ajuda a pagar a água e luz que não existiam.
8) É neste aspecto que o Tribunal recorrido devia prestar mais atenção para que faça justiça material e não formal.
9) Para que não prevaleça um facto invocados pelos Apelados de um contrato de ajuda no pagamento da água e luz que não existiam como prova sem qualquer dúvida o documento.
10) O Tribunal recorrido deve sempre procurar a verdade material e não só com a verdade processual, mesmo em termos processuais a Apelante podia apresentar esse documento nos termos do artigo 524.º, n.º2 do Código de Processo Civil.
11) O que referimos no 10) é defendido pelo Professor José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, na página 426, quando diz o seguinte: «Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida ou só posteriormente ter conhecimento da existência do documento».
12) A Relação de Lisboa diz o seguinte: «Mesmo que um documento não tenha qualquer influência para a decisão da causa ele não pode ser desentranhado quando a sua junção satisfaça o condicionalismo descrito no art. 524.º, n.º2, do Cód. Proc. Civil (Ac. RL., de 14-12-1977, 5.º - 1403).
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Os agravados juntaram aos autos as suas contra-alegações pugnado pela confirmação do despacho recorrido.
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Por fim proferiu-se sentença onde se julgou a acção procedente e, em consequência:
- Condenara-se os réus a reconhecerem que os autores são os proprietários dos prédios identificados nos pontos 1. e 2. da matéria de facto e a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou obstruam o exercício de tal direito por parte dos autores;
- Condenaram-se os réus a entregar aos autores, livres de pessoas e bens, os prédios identificados nos pontos 1. e 2. da matéria de facto.
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Inconformada com tal decisão dela veio recorrer, de apelação, a ré mulher, pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que julgue provado o contrato de arrendamento e que declare a anulabilidade da doação celebrada do dia 14 de Abril 1981.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com o que denomina de “conclusões” mas que são também a reprodução das alegações:
1. A Meritíssima Doutora Juíza de Direito do Tribunal recorrido na resposta ao quesitos viola o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República na valoração da prova quando diz o seguinte: «-no que concerne aos factos dos pontos 3.º e 4.º, não se fez a prova que se mostrasse segura, certa e isenta de duvidas sobre os mesmos, na medida em que apenas as testemunhas G………., irmão da Ré e cunhado do R.., e H………., mãe do R. e sogra da Ré, se referiram a esses factos, mas o seu conhecimento, para além de se mostrar afectado pelo subjectivismo da maior ligação afectiva e familiar aos RR», quando da parte dos Autores a maior parte das testemunhas são familiares que depõem e uma delas interessada no contrato de doação, não valora de igual forma a Meritíssima Juíza de Direito do Tribunal recorrido.
2. O Professor Doutor Jorge Miranda diz o seguinte: III - Mais rico e exigente vem a ser o sentido positivo:
a) Tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações iguais).». (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pag.121).
3. Para os Autores vale sem qualquer problema o depoimento de familiares para os Réus já não vale pois existe um subjectivismo da maior ligação afectiva e familiar mas para os familiares dos Autores já não existe esse aspecto, nem que uma das testemunhas seja familiar que celebrou o contrato de doação.
4. Quando a Meritíssima Doutora Juíza de Direito do Tribunal recorrido afirma na sua Douta Sentença afirma: «Aliás, o concreto vício que a Ré mulher nem sequer está legalmente previsto - alegou esta doação foi feita sem autorização dos restantes filhos dos doadores, ora, não existe, na disciplina jurídica do contrato de doação (regulado nos arts. 940.º a 979.º do Código civil) qualquer norma restritivas da doação a filhos ....». Esquece que existe uma lacuna na Lei como diversos Autores defendem e o próprio Supremo Tribunal de Justiça defende em vários acórdãos.
5. O artigo 877.º do Código Civil é uma norma excepcional como tal não comporta a analogia, mas sim interpretação extensiva.
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Os apelados juntaram aos autos as suas contra-alegações onde pugnam pela confirmação da decisão recorrida.

II – Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da 1ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1) A aquisição, por compra, do prédio misto, composto de moradas de casas, com a área coberta de 75 m2, com duas hortas de 200 m2, sendo uma das hortas separada por um caminho de servidão, sito em ………., freguesia de ………., inscrito na matriz predial rústica sob o art. 2006 e urbana sob o art. 438, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes, sob o nº 00161/240887 da freguesia de ………., encontra-se registada a favor de C………., casado com D………., em comunhão de adquiridos, através da cota G-2, pela Ap. 08/240887. [alínea A) dos factos assentes e certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 11 a 16];
2) A aquisição, por compra, do prédio rústico, denominado I………., com a área de 1.000m2, sito em ………., freguesia de ………., inscrito na matriz predial rústica sob o art. 2005, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes, sob o nº 00162/240887, da freguesia de ………., encontra-se registada a favor de C………., casado com D………., em comunhão de adquiridos, através da cota G-2, pela Ap. 08/240887. [alínea B) dos factos assentes e certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 11 a 16];
3) No dia 14 de Abril de 1981, no Cartório Notarial de Paredes, foi outorgada uma escritura de doação, cuja certidão se encontra junta de fls. 162 a 165, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual ficou a constar designadamente que, por J………. e mulher, K………., foi dito que, com dispensa de colação, doam a sua filha F………., os seguintes imóveis, sitos no ……….:
a) Uma morada de casas com duas hortas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número 17.593, a fls. 147 do Livro B-45, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 438, e
b) I………., descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número 11.624, a fls. 120 do Livro B-30, e inscrito na matriz rústica sob o artigo 2361.
E que eles doadores reservam para si e por inteiro até à morte do último, o usufruto dos prédios doados. [alínea D) dos factos assentes];
4] No dia 26 de Agosto de 1986, no Cartório Notarial de Paredes, foi outorgada uma escritura pública de compra e venda, na qual foram outorgantes F………. e C………., cuja certidão se encontra junta de fls. 16 a 20, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual ficou a constar designadamente que:
“pela primeira outorgante foi dito que pelo preço global de duzentos contos, que já recebeu do segundo outorgante, a este vende os seguintes prédios, sitos na referida freguesia de ……….:
a) Por cem contos a raiz ou nua propriedade do prédio misto, composto de uma morada de casas, com a área coberta de setenta e cinco metros quadrados, com duas hortas, com duzentos metros quadrados, sendo uma das hortas separada por caminho de servidão, no ………. (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o número dezassete mil quinhentos e noventa e três (...) e inscrito na matriz predial sob os artigos quatrocentos e trinta e oito urbano e dois mil e seis rústico (...); e
b) Por cem contos a raiz ou nua propriedade do prédio denominado I………., no ………. (...), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número onze mil seiscentos e vinte e quatro (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo dois mil e cinco (...);
Pelo segundo outorgante foi dito que aceita esta venda, nos termos exarados.” [alínea C) dos factos assentes];
5) J………. faleceu em 29 de Janeiro de 1999 e K………. faleceu em 1 de Junho de 2001. [alíneas E) e F) dos factos assentes];
6) Os RR. ocupam os prédios referidos nos pontos 1 e 2 há cerca de 25 anos. [alínea G) dos factos assentes];
7) Os RR. pagavam 500$00 mensais à usufrutuária K………. . [alínea H) dos factos assentes];
8) Os AA., após a escritura referida no ponto 4, não colocaram qualquer entrave a que os RR. ocupassem os prédios referidos nos pontos 1 e 2. [alínea I) dos factos assentes];
9) Depois da morte da usufrutuária K………. referida no ponto 5, os AA., em conversa com os RR., permitiram que estes continuassem a ocupar os imóveis referidos nos pontos 1 e 2, sem pagar qualquer contrapartida monetária, tendo os RR. se comprometido a cuidar da casa. [alínea J) dos factos assentes e resposta ao ponto 6.º da b. inst.];
10) Os AA. pretendem demolir a casa de habitação em que os RR. Residem. [alínea L) dos factos assentes];
11) Os RR. recusam entregar os prédios referidos nos pontos 1 e 2 aos AA. [alínea M) dos factos assentes].

III - Como é sabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões das alegações, não podendo o tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que se trate de questões de conhecimento oficioso, cfr. art.ºs 684.º n.º 3 e 690.º n.ºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil, sendo certo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, é o seu objecto delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Vendo as alegações dos recursos dos autos, cumpre decidir no agravo:
- Saber se devem ser admitidos nos autos os documentos que constituem fls. 311 a 318?
Na apelação, são questões a decidir:
1.ª – Saber se a decisão proferida em 1.ª instância relativa aos factos 3.º e 4.º da base instrutória viola o princípio constitucional da igualdade, devendo, por isso, ser alterada?
2.ª – Saber se a doação referida nos autos é anulável?
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Ao presente recurso não é aplicável o regime processual estabelecido pelo DL 303/2007, de 24.08, por respeitar a acção instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008, cfr. n.º 1 do art.º 11.º do citado DL.
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Por força do disposto no art.º 710.º do C.P.Civil a apelação e o agravo que com ela subiu serão julgados pela ordem da sua interposição.
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Vendo o alegado pelos autores na sua p. inicial e os pedidos que aí formulam, dúvidas não nos restam, de que estamos perante uma típica acção de reivindicação, cfr. art.º 1311.º do C.Civil, isto é, os autores arrogando-se proprietários de um prédio rústico e de um prédio misto dizem que os réus ocupam os mesmos sem título que legitime tal ocupação, e consequentemente pedem seja reconhecido esse seu direito de propriedade e que os réus sejam compelidos a proceder à entrega desses prédios aos autores.
Dispõe o art.º 1311.º do Código Civil:
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
A acção de reivindicação é também designada por acção petitória que «tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela», cfr. Profs. Pires Lima e A. Varela in “Código Civil Anotado” vol. III, pág.112.
E daí dizer-se que são dois os pedidos que integram e caracterizam a acção de reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro.
Todavia, tem-se entendido que se trata de uma cumulação aparente, dado que o pedido de entrega já contém, implícito, o pedido do reconhecimento do direito de propriedade, cfr. Prof. Alberto dos Reis, in “Comentário ao C.P.Civil”, vol. III., pág. 148 e, entre muitos, Ac. do STJ de 14.05.81, in BMJ 307 – 325.
Para a procedência desse tipo de acção torna-se necessário a comprovação, por um lado, de um requisito subjectivo, que consiste em ser o autor o proprietário da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objectivo, ou seja, a identidade entre a coisa reivindicada e a possuída pelos réus, cujo ónus de prova incumbe ao autor, por serem factos constitutivos do seu direito, cfr. art.º 342.º n.º 1 do C.Civil.
Daí que nesse tipo de acções a causa de pedir é complexa, compreendendo tanto os actos ou os factos jurídicos de que deriva o direito de propriedade invocado pelo autor, como também a própria ocupação abusiva feita (pelos réus) do prédio reclamado ou reivindicado.
Pelo que para que tal acção possa ter êxito deverá, desde logo, o autor que alegar os factos correspondentes que permitam levar à prova do invocado direito de propriedade sobre a coisa, ou seja, terá que alegar factos que permitam demonstrar a aquisição desse direito real de propriedade.
Como regra, é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada (v.g. contrato de compra e venda, doação, etc.), por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas somente translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, o que nem sempre é fácil e possível, e daí a conhecida designação da “probatio diabolica”.
A prova do direito deve ser feita pelo autor, não bastando justificar a própria aquisição, sendo também necessário provar o “dominium auctoris” ou usucapião, como forma de aquisição originária. Por isso, o reivindicante terá de alegar factos dos quais resulte depois a prova da aquisição originária da dominialidade por parte de si ou da pessoa que lha transmitiu. Só assim não será quando o autor beneficie da presunção legal de propriedade, como a resultante do registo predial, cfr. art.º 7.º do C.Registo Predial, ou seja, o “registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
No entanto, vem sendo entendimento Jurisprudencial pacífico que a presunção “juris tantum” inserta no referido preceito legal não abrange os elementos de identificação do prédio constantes da descrição, sempre que exista uma desconformidade entre esta (no que concerne a algum daqueles elementos) e a realidade material do imóvel, designadamente quanto aos limites, estremas, áreas e confrontações
Finalmente, como é sabido, e resulta do já acima consignado, a usucapião é uma das formas de aquisição originária dos direitos (reais de gozo, e nomeadamente do direito propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, art.ºs 1251.º e segs. 1256.º e segs. 1287º e 1294º e segs, todos do C.Civil), sendo que, nos termos do art.º 1297.º do C.Civil, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde cessação da violência ou desde que a posse se torne pública.
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No caso dos autos os autores alegaram e provaram a aquisição derivada dos imóveis reivindicados, ou seja, que os adquiriram por compra, devidamente formalizada, que da respectiva nua propriedade fizeram a F………., e que entretanto faleceram os seus usufrutuários, tendo-se extinguido o usufruto (art.º 1476.° n.º 1 al. a) do C.Civil), consolidando-se com a nua propriedade que já lhes pertencia, passando a ser proprietários plenos da totalidade dos imóveis em causa. Mais alegaram e provaram os autores a presunção decorrente do registo dessa aquisição a seu favor na respectiva Conservatória do Registo Predial, (cfr. art.º 7.º do C.R.Predial) a qual não foi ilidida pelos réus, mediante a prova de factos demonstrativos que a titularidade desse direito de propriedade não corresponde à última aquisição inscrita no registo predial.
E tendo os autores demonstrado o seu direito de propriedade os réus só podiam evitar a restituição dos imóveis desde que demonstrassem que têm sobre eles outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que os detêm por virtude de direito pessoal bastante, cfr. art.º 1311.º n.º 2 do C.Civil, e como resulta dos autos, os réus não lograram fazer semelhante prova.
Na verdade alegou a ré que ela e seu marido tinham celebrado, verbalmente, com a antiga proprietária/doadora e usufrutuária dos imóveis, sua avó, K………., um contrato de arrendamento, o que não logrou provar.
E, por seu turno, os autores alegaram e provaram que depois de terem feito a compra dos ditos imóveis não colocaram qualquer entrave a que os réus continuassem a ocupar os prédios, o que estes já fazem há cerca de 25 anos. Ou seja, provaram os autores a existência de um contrato de comodato, cfr. art.ºs 1129.° a 1141.º do C.Civil, não estando provada qualquer situação prevista no n.º 1 do art.º 1137.º do C.Civil, por força do n.º 2 de tal preceito legal, os réus estão obrigados à restituição dos imóveis logo que a sua entrega lhe fosse exigida pelos autores.
Depois destas considerações genéricas, vejamos as questões a decidir nos autos.
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Começamos pela questão colocada no agravo – junção de documentos
Como vimos após o encerramento da audiência de discussão e julgamento veio a ré requerer a junção aos autos dos documentos que constituem fls. 311 a 318, retirando-se do respectivo requerimento que com ele pretendem provar/pôr em causa a existência de um poço e o alegado pagamento da luz desse poço pelo réu.
A junção desses documentos foi indeferida por se ter entendido que não se estava perante uma das situações previstas no art.º 524.º n.º 4 do C.P.Civil.
Nas suas alegações veio agora a ré dizer que só após o encerramento da audiência de julgamento teve conhecimento de que tais documentos estavam de posse do Município de ……….; que como decorre do que já tinha alegado tal documento destinava-se a provar que o réu pagava renda e não “ajudava a pagar os gastos de água e de luz”.
Os documentos cuja junção aos autos foi requerida pela ré são: - um ofício da Administração Regional de Saúde do Porto – Centro de Saúde de ………., de 6.02.1995, enviado ao Presidente da Câmara Municipal de …………. a dar conta que o projecto de construção de edifício para habitação unifamiliar apresentado por C……….., ora autor, mereceu da Autoridade Sanitária a apreciação de “Satisfaz”; uma guia de pagamento em estampilhas fiscais pelo autor à Administração Regional de Saúde do Porto – Sub-Região de Saúde do Porto, referente ao processo de licenciamento municipal, datada de 20.03.1995; Guia de pagamento de um Alvará de Licença de Obras emitida em nome do autor e datada de 20.05.1995; Alvará de licença de Construção emitido em nome do autor, datado de 27.04.2001; a capa e duas fls. do Livro de Obras Particulares, datado de 20.03.1995 referente a Alvará de Licença de Construção em nome do autor; finalmente, planta de localização de obra e desenho de moradia, datados de Agosto de 1994.
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Desde já se deixa consignado que o despacho recorrido, a nosso ver, decidiu acertadamente a questão em apreço, com correcta e adequada fundamentação, pelo que concordamos com a não admissão da junção aos autos dos documentos em causa, sendo este um dos casos em que bem poderia este Tribunal limitar-se a negar procedência ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada, cfr. art.º 713.º n.º 5 do C.P.Civil.
Todavia sempre se dirá que, como se sabe, os documentos enquanto meios de prova que são têm por objectivo a demonstração da realidade dos factos alegados, cfr. art.º 341.º do C.Civil e 523.º n.º 1 do C.P.Civil.
Por regra, os documentos devem ser apresentados com o articulado onde se aleguem os factos correspondentes, cfr. art.º 523.º n.º 1 do C.P.Civil, ou seja, com a petição inicial, caso visem fazer prova dos fundamentos da acção, ou com a contestação, se o respectivo escopo for provar os fundamentos da defesa. Contudo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, cfr. art.º 523.º n.º 2 do C.P.Civil, ou, verificado o respectivo condicionalismo, na fase de recurso, cfr. art.º 524.º n.º 1 do C.P.Civil, podendo ainda serem apresentados em qualquer estado do processo se destinados aprovar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior.
Segundo o que percebemos pela junção dos referidos documentos aos autos pretende a ré provar que afinal pagava uma quantia mensal (500$00), a título de renda, à sua avó, em virtude de um contrato de arrendamento verbal realizado com a mesma e que deixaram de pagar aquando da morte da avó, por terem acordado tal com os autores. Tal foi alegado pela ré nos art.ºs 5.º e 6.º da sua contestação e não como os autores haviam alegado sob os art.ºs 12.º e 13.º da p. inicial que os réus haviam pedido à usufrutuária dos imóveis – K………. (avó da ré) para aí residirem, ao que esta acedeu. Mediante o pagamento mensal da quantia simbólica de 500$00 para ajuda nos gastos de água e luz, o que deixaram de fazer após a morte daquela usufrutuária.
Resulta da alínea H) dos factos assentes que ficou assente nos autos que os réus pagavam 500$00 mensais à antiga proprietária/doadora/usufrutuária dos imóveis, (K………) tendo sido levado à base instrutória, sob os quesitos 3.º e 4.º o saber-se se havia sido a ré e marido haviam celebrado com a sua avó um contrato de arrendamento verbal e se aquele valor correspondia à renda acordada.
Resulta dos autos que esses dois quesitos foram julgados não provados.
Com a junção dos referidos documentos pretende, sem dúvidas, a ré provar aqueles mesmos factos, através da prova de que nos prédios inexistia qualquer poço, pelo que a quantia mensal que pagava à sua avó não se podia destinar a ajudar nos gastos de água e de luz, antes era a renda mensal acordada.
Manifestamente pretende a ré provar factos articulados nos autos e insertos na base instrutória e que não logrou fazer no momento oportuno, com as provas então oferecidas. Pelo que a requerida junção não é subsumível à situação excepcional prevista no n.º 2 do art.º 524.º do C.P.Civil.
Por outro lado, vistos os documentos em causa, não vemos como é que a sua junção não foi possível em momento anterior já que se encontravam disponíveis na entidade pública onde agora foram solicitados, sendo que se não foram apresentados nos autos em data anterior foi apenas por manifesta falta de diligência da parte na elaboração da sua defesa, pelo que “sibi imputet”. Logo a requerida junção de documentos também não se enquadra na situação excepcional prevista no n.º 1 do art.º 524.º do C.P.Civil.
Improcedem as conclusões da agravante, confirmando-se o despacho recorrido.
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1.ªquestão da apelação – da decisão de facto
Alega a apelante que a 1.ª instância ao decidir como “não provados” os quesitos 3.º e 4.º da base instrutória fê-lo em violação do princípio constitucional da igualdade, previsto no art.º 13.º da C.R.Portuguesa. E isto porque, a Mm.ª juíza “a quo” afirmou que os depoimentos das testemunhas que sobre eles foram inquiridas (irmão e sogra da ré) não se mostraram isentos e seguros e por isso não fundaram a sua convicção no sentido da realidade dos mesmos, todavia, o mesmo julgador julgou credíveis os depoimentos prestados, no que respeita à doação em apreço nos autos, por familiares dos autores.
Sob os quesitos 3.º e 4.º da base instrutória questiona-se:
3.º -“A Ré havia celebrado um contrato de arrendamento verbal tendo por objecto os imóveis referidos em A) e B) com K……….?”
4.º - “O valor referido em H) correspondia à renda acordada nesse contrato de arrendamento?”
A 1.ª instância decidiu julgar tais quesitos - “não provados” e fundamentou tal decisão, escrevendo: - “no que concerne aos factos dos pontos 3º e 4º, não se fez prova que se mostrasse segura, certa e isenta de dúvidas sobre os mesmos, na medida em que apenas as testemunhas G………., irmão da Ré e cunhado do R., e H………., mãe do R. e sogra da Ré, se referiram a esses factos, mas o seu conhecimento, para além de se mostrar afectado pelo subjectivismo da maior ligação afectiva e familiar aos RR., nomeadamente no caso da testemunha H………., decorria unicamente daquilo que lhes tinha sido transmitido pelos próprios RR., mesmo a testemunha G………., que referiu ter presenciado a entrega de dinheiro por parte da irmã à avó, apenas aduzindo que chegou a ouvir a irmã dizer "está aqui o dinheiro da renda", enquanto, por outro lado, as testemunhas C………. e F………., irmãos da A. já aludidos, negaram a realidade de tais factos, referindo que tal nunca lhes foi transmitido pela mãe e que, ao contrário, esta sempre lhes disse que era por favor (por ter pena) que deixava os RR. habitar no local e que estes apenas lhe entregavam a quantia de 500$00 para ajudar às despesas da luz - daí que, sendo esta a situação, o simples facto referido pela testemunha G………. do que teria ouvido à irmã, só por si, é manifestamente insuficiente para concluir pela realidade dos factos dos pontos 3º e 4º. Ademais, veja-se que o próprio R., no seu depoimento de parte admitiu que não pagava qualquer renda desde o ano de 1999, aduzindo que tal se devia ao facto de se encontrar a olhar pelo pai dos AA e de estar a tomar conta das obras que estes faziam na casa, decorrendo igualmente do depoimento da testemunha K………., que os RR. actualmente moram consigo e não no local em causa, havendo apenas dias em que p R. "vai lá abrir a porta”.;
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Da alegada violação do princípio constitucional da igualdade.
Segundo o que julgamos ser a alegação da apelante, diz esta que o juiz de 1.ª instância ao decidir julgar não provados os quesitos 3.º e 4.º da base instrutória, violou o princípio constitucional da igualdade, pois que essa decisão, tal como resulta da respectiva fundamentação, decorreu de não terem sido considerados suficientemente credíveis os depoimentos produzidos pelo irmão da ré e pela mãe do réu marido, que, além do mais, se mostraram afectados pelo subjectivismos da ligação afectiva e familiar aos réus, enquanto esse mesmo julgador não valou de igual forma os depoimentos produzidos pelas testemunhas dos autores, também familiares destes.
Em suma, segundo a apelante, o juiz ou julgava credíveis todos os depoimentos produzidos por testemunhas que fossem familiares das partes relativamente aos factos que cada uma deveria provar, ou, pelo contrário, desconsideraria todos esses depoimentos, e decidiria em conformidade.
Como é Jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, cfr. entre muitos outros, Acs n.ºs 78/99 e 232/2003, in www.tribunalconstitucional.pt, o princípio constitucional da igualdade afirmado no art.º 13.º da C.R.Portuguesa exige que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente. Ou seja, a diferenciação de tratamento, por si, não implica necessariamente violação do princípio, pois a igualdade relevante não é a meramente formal mas também a material, impedindo-se, assim, a discriminação arbitrária e irrazoável, sem justificação nem fundamento material bastante.
Ou, como resulta do Ac. n.º 1007/96 daquele mesmo tribunal, in Diário da República, 2ª série, de 12.12.96, para haver violação do princípio constitucional da igualdade, torna-se necessário verificar, preliminarmente, se existe uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação. A esta luz, proíbem-se diferenciações de tratamento fundadas em razões meramente subjectivas – com as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do art.º 13.º da C.R. Portuguesa, ou as que criem um tratamento desigual materialmente infundamentado ou sem justificação objectiva e racional.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, pág. 336 e segs, o princípio da igualdade abrange, assim, a proibição de arbítrio, a proibição de discriminações e a obrigação de diferenciação. A proibição de arbítrio como “um limite externo da liberdade de conformação da decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes", mas tal proibição "ao valer como princípio objectivo de controlo, não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjectivo público a igual tratamento (...)”.
E dizem ainda os mesmos autores: - “(...) A proibição de discriminações (n.º 2) não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento.
(...) O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando: (a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no nº. 2; (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo.
A obrigação de diferenciação para se compensar a desigualdade de oportunidades significa que o princípio da igualdade tem uma função social, o que pressupõe o dever de eliminação ou atenuação, pelos poderes públicos, das desigualdades sociais, económicas e culturais, a fim de se assegurar uma igualdade jurídico-material. É neste sentido que se devem interpretar algumas normas da Constituição que estabelecem “discriminações positivas””.
Dúvidas não restam de que também os tribunais estão vinculados ao princípio da igualdade, o que se manifesta fundamentalmente em três dimensões: - igualdade de acesso dos cidadãos à jurisdição (art.º 20.º n.º 1 da C.R.P.); - igualdade dos cidadãos perante os tribunais e igualdade de aplicação do direito aos cidadãos através dos tribunais. Sendo que na segunda das indicadas dimensões se inclui, além do mais, a proibição de discriminação das partes no processo, albergando esta terceira dimensão, além do mais, a obrigação de utilização de um critério de igualdade na apreciação e valoração dos depoimentos produzidos pelas testemunhas arroladas pelas partes.
À luz destas considerações sobre o sentido e alcance do princípio da igualdade não se vislumbra qualquer violação do princípio da igualdade, “in casu” na apreciação e valoração dos depoimentos produzidos pelas testemunhas familiares dos autores e dos réus, relativamente aos factos cuja prova interessava a cada uma das partes.
E isto porque, tal como resulta expresso da fundamentação da decisão de facto dos autos, a Mm.ª juíza em 1.ª instância perante o teor dos depoimentos produzidos pelas testemunhas G………. e H………., não formou a sua convicção no sentido da realidade dos factos constantes dos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória, tendo ficado com dúvidas sobre essas realidades, porque, segundo afirmou, por um lado, tais depoimentos revelaram-se afectados pelo subjectivismo, explicado pela ligação familiar e afectiva aos réus, já que tais testemunhas eram irmão e mãe do réu marido, por outro lado, o conhecimento de tais factos por parte da testemunha H………. decorria unicamente do que lhe havia sido transmitido pelos réus, e finalmente porque o afirmado pela testemunha G………. tinha sido absolutamente contrariado pelo teor dos depoimentos de duas testemunhas, irmãos da autora.
Também não tem qualquer razão a apelante quando alega que o tribunal recorrido terá considerado credíveis os depoimentos prestados pelas testemunhas dos autores, a maior parte delas seus familiares, pois que vista a decisão da matéria de facto proferida nos autos verificamos que todos os quesitos da base instrutória forma julgados não provados, fundamentalmente porque, segundo o Mm.º julgador, ou não foi feita prova da realidade de tais factos, ou porque, pela prova produzida, ficou com fundadas dúvidas sobre a realidade dos mesmos.
Finalmente, não podemos esquecer, nos termos do artº 655.º n.º 1 do C.P.Civil, “O tribunal colectivo (ou o juiz singular) aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas, são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Tal como refere Abrantes Geraldes in “Temas da reforma do Processo Civil”, vol.II, pág.208 “A prova testemunhal é aquela que mais dúvidas suscita quanto à respectiva valoração por parte do tribunal. Compreende-se porquê. Os depoimentos são prestados por pessoas que não deixam de espelhar neles toda a complexidade inerente aos seus comportamentos, valores, interpretações”.
E mais adiante continua este autor dizendo que “Os depoimentos não são bacteriologicamente puros, resultando de um conjunto de circunstâncias objectivas ou subjectivas capazes de influenciar, de modo consciente ou inconsciente, a retenção dos factos por parte das testemunhas e de provocar na pessoa do julgador a convicção acerca da sua veracidade, ou da sua inverosimilhança”.
E ainda mais adiante afirma “À ponderação do valor probatório dos depoimentos interessa, pois, em primeira linha, averiguar qual a relação existente entre a testemunha e as partes, de modo a apurar se existe ou não um determinado vínculo que, apesar de não acarretar imediatamente a sua inabilidade, nem constituir fundamento suficiente para a impugnação da admissibilidade do depoimento (arts. 616º a 618º e 636º), sirva de elemento coadjuvante para credibilizar ou desacreditar o teor das suas declarações”.
Em conclusão não se vislumbra que a Mm.ª juíza recorrida tenha, por qualquer forma, ao apreciar e valorar a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, violado o princípio constitucional da igualdade, limitando-se no caso apontado pela apelante, a fundamentar, em parte, a razão pela qual julgou a prova produzida insuficiente para afastar a dúvida razoável sobre a veracidade de tais factos, chamando para tanto à colação a razão de ciência das referidas testemunhas.
Improcedem, por isso, as respectivas conclusões da apelante.
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Todavia, das conclusões da apelante pode entender-se que a mesma, no fundo, impugna a decisão proferida em 1.ª instância relativamente aos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória, pois que pede que os mesmos, contrariamente ao ali decidido, sejam agora julgados provados.
Ora, no que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1ª instância, dispõe no art.º 712.º do C.P.Civil que:
“1. A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) (…)
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2.ª ed., 2001, pág. 127, resulta de tal preceito que «... o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação ...», ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, «... satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão». Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no artº 712.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do C.P.Civil, o tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed. pág. 657], a propósito do “Princípio da Imediação”, «...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...».
Está assim hoje legalmente consagrada a possibilidade deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, podendo, ainda, por força do disposto no art.º 712.º n.º 2 do C.P.Civil, “oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”, formará a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa (não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção), o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cf. Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1ª Secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
Como já acima referimos não pode esquecer-se que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção, cfr. art.º 655.º n.º 1 do C.P.Civil, e que quanto à força probatória, os depoimentos das testemunhas, são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Por fim dispõe ainda o art.º 690.º-A, n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, observar as seguintes formalidades:
1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C.
Sendo, por isso, manifesto que não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto. Sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que cumpra os ónus de especificação impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 690.º-A do C.P.Civil, isto é, que especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; que indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; que desenvolva uma análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.
No caso em apreço, verificamos que a ré/apelante cumpriu de forma muito deficiente tais ónus de alegação, e que até em rigor, se deveria rejeitar, nesta parte, o seu recurso.
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Todavia, admitindo que a apelante entende, tão só, que foram incorrectamente valorados os depoimentos produzidos pelas testemunhas – G………., (irmão da ré mulher) e H………. (mãe do réu marido) - à matéria dos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória, ouviu-se, cuidadosamente, a gravação de todos os depoimentos prestados em audiência, e não só aqueles acima referidos, e, além do mais, intuindo da espontaneidade das respostas, dos silêncios, das frases incompletas, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, concluímos que não se encontram razões que permitam concluir que a decisão sobre a matéria de facto, supra mencionada, enferme de erro e, menos ainda, de erro manifesto ou grosseiro.
Concretizando.
Ouvido o depoimento prestado pela testemunha H………., mãe do réu e sogra da ré, verificamos que a mesma começou por afirmar que o seu filho vivia na casa em apreço nos autos (anexos) desde que casou e que pagava renda por isso, afirmando, a certa ocasião do seu curto depoimento “eu só sei que ele pagava renda á avó, não sei mais nada …”. Todavia a pergunta da Mm.ª juíza afirmou tal testemunha que “sabia que o filho pagava renda” porque ele próprio lhe tinha dito isso.
Também a testemunha G………., irmão da ré afirmou que a irmã tinha ido, ainda solteira, viver para casa da avó (K……….) e ainda que, ainda quando ele próprio era solteiro viu a irmã a pagar a renda à avó, dizendo “está aqui o dinheiro da renda”, e mais adiante a pergunta da Mm.ª juíza respondeu que a avó, ou os avó, nunca lhe disseram que tinham arrendado a casa à irmão.
Todavia, a testemunha F………., tia materna da ré, afirmou que a sua mãe acolheu a ré em sua casa porque teve pena dela quando a mãe a pôs na rua, depois quando aquela casou, a mãe continuou a ter pena deles e, por isso, deixava-os lá viver; que nunca viu a ré a pagar renda, mas sabia, porque a mãe lhe dizia, que recebia “500 reis” para ajuda da luz e da água.
Finalmente, a testemunha L………., irmão da autora e tio materno da ré mulher, disse que a ré “foi viver para a beira da avó e de lá casou”. Mais afirmou tal testemunha que nunca soube que a mãe tivesse feito qualquer contrato de arrendamento com os réus, ou que estes pagassem qualquer renda e apenas sabia que eles davam “qualquer coisita” para ajudar a pagar a luz.
Considerando o teor de tais depoimentos, valorando-os designadamente tendo em atenção a razão de ciência de cada testemunha, tal como sucedeu em 1.ª instância julgamos que os réus não lograram fazer, (sobre quem recaía o ónus de prova dos factos constantes dos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória, cfr. art.º342.º n.º 2 do C.Civil) prova segura, ou seja, isenta de razoáveis dúvidas sobre a realidade ou veracidade dos mesmos. E assim, de harmonia com o disposto no art. 516.º do C.P.Civil, tem o tribunal de decidir contra a parte a quem aqueles factos aproveitam, no caso, contra os réus, ou seja, respondendo, tal como se fez em 1.ª instância, não provado.
E assim, por tudo o que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação de facto e o teor dos depoimentos prestados em julgamento, não se vislumbra que a decisão proferida em 1.ª instância, relativa aos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória, enferme de erro, não merecendo qualquer censura, devendo manter-se inalterada.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante.
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No que concerne à 2.ª questão da apelação – anulabilidade da doação
O direito de propriedade dos autores sobre os imóveis reivindicados nos autos adveio-lhes por compra que fizeram dos mesmos a F………., (irmã da autora) por escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Paredes no dia 26 de Agosto de 1986, doc. de fls. 16 a 20 dos autos.
Por sua vez, por escritura de doação outorgada no Cartório Notarial de Paredes no dia 14 de Abril de 1981, J………. e mulher, K………. haviam declarado doar à F………., sua filha, com dispensa de colação, a raiz ou nua propriedade daqueles mesmos prédios, reservando para si e por inteiro até à morte do último, o usufruto dos prédios doados. Tendo esses usufrutuários falecido a 29 de Janeiro de 1999 e a 1 de Junho de 2001.
A ré, B………., neta de J………. e de K………. (também sobrinha dos autores e da doadora F……….) e, segundo ela, porque os doadores não tiveram autorização dos demais filhos para realizarem aquela doação, ela é nos termos do art.º 877.º do C.Civil anulável, o que pretendem que seja aqui declarado.
Na decisão recorrida a propósito desta pretensão da ré escreveu-se: - “Aliás, o concreto vício que a Ré mulher nem sequer está legalmente previsto - alegou esta doação foi feita sem autorização dos restantes filhos dos doadores, ora, não existe, na disciplina jurídica do contrato de doação (regulado nos arts. 940.º a 979.º do Código civil) qualquer norma restritivas da doação a filhos ...».
Nas suas alegações defende a apelante que “existe uma lacuna na Lei como diversos Autores defendem e o próprio Supremo Tribunal de Justiça defende em vários acórdãos, e assim o artigo 877.º do Código Civil é uma norma excepcional como tal não comporta a analogia, mas sim interpretação extensiva”.
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Vejamos.
O preceituado no art.º 877.º do C.Civil estipula a proibição de os pais venderem a filhos sem autorização dos demais filhos. E assim dispõe-se no seu n.º 1: “(o)s pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda”; e o n.º 2 acrescenta que “(a) venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável”, podendo a anulação “ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes”.
A razão de ser da proibição foi, desde sempre, referida como visando obstar à prática de vendas simuladas, cuja prova é por regra muito difícil, em prejuízo das legítimas dos descendentes, ou seja, de evitar que, através de doações encobertas, se lesassem essas legítimas, quando fossem partilhados os bens dos simuladores alienantes, ou seja, pretende-se assegurar a intangibilidade das legítimas dos descendentes que o legislador tem em mente com a proibição.
Tal proibição tem subjacente a presunção “juris et de jure” de que tais vendas seriam simuladas e, portanto, anuláveis, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág.165.
Ora, com a realização de doação por parte dos pais a um ou alguns dos filhos, sem qualquer autorização dos demais, não se fere, de modo algum, a intangibilidade das legítimas dos descendentes.
Na verdade, segundo a lei entende-se por legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, cfr. art.º 2156.º do C.Civil. Trata-se de uma reserva hereditária, designada por quota legítima ou legitimaria, que a lei estabelece a favor dos herdeiros legitimários, por isso, fora do poder de disposição do autor da herança, variável em função do vínculo dos herdeiros em relação a ele, do seu número e da respectiva posição jurídica, cfr. art.º 2027.º do C.Civil, sendo que a legítima do cônjuge e dos filhos, em caso de concurso, é de dois terços da herança, e, não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos é de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais, cfr. art.º 2159.º do C.Civil.
No cálculo da legítima (e da quota disponível) deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, (os chamados de relicta ou relictum) ao valor dos bens doados (os donata), às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança, cfr. artº 2162.º do C.Civil. Desta forma, a herança para efeitos do cálculo da legítima compreende, além do mais que aqui não releva, os bens existentes no património do “de cujus” à data do seu decesso e os que daquele foram distraídos em vida do autor da sucessão por via de doação.
Assim não se mostra viciada a doação feita por ascendentes a descendente ou a alguns deles sem autorização dos demais, sendo que por ela se transmite a propriedade dos bens doados como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde a data em que o mesmo teve lugar, cfr. art.ºs 940.º n.º 1, 947,º n,. 1 e 954.º al. a), todos do C. Civil. Mas tal transmissão não evita que o(s) donatário(s)-descendente(s) do doador deva(m) restituir à massa da herança daquele, para igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão do ascendente, cfr. art.ºs 2104º n.º 1, 2105.º, 2106.º e 2113.º todos do C. Civil, é o que se designa por colação, instituto do direito sucessório que tem por fundamento o significado social que é atribuído às doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador, considerando-as como meras antecipações da herança. Ou seja, a lei faz assim presumir que qualquer doação feita em vida pelos pais apenas a um ou a alguns dos seus filhos não visa afectar ou lesar os demais filhos, prejudicando-os em relação aos beneficiados com essa doação, mas que apenas se procurou socorrer esses filhos em momento difícil das suas vidas, como que fazendo-lhes uma espécie de adiantamento por conta do que deveriam vir a herdar no futuro, sem prejuízo do dever de igualdade a observar nessa partilha vindoura.
Essa conferência (ou dever de restituição) faz-se pela imputação do valor da doação na quota hereditária (sendo esse valor aquele que os bens doados tiverem à data da abertura da sucessão), o que é a regra, ou pela restituição dos próprios bens doados, se para tanto houver acordo de todos os herdeiros, cfr. art.ºs 2108.º n.º 1 e 2109.º n.º 1, do C. Civil e pode dar lugar à redução da doação por inoficiosidade.
Por tudo o exposto e sem necessidade de outros considerandos afirma-se que não impede que os pais disponham validamente, ainda em vida ou por testamento, de bens próprios, desde que não afecte a quota legitimária, ou seja, a quota-parte de bens de que o inventariado não pode dispor a seu belo prazer chama-se, cfr. art.ºs 2156.º a 2161.º do C. Civil, sob pena de se considerar inoficiosa essa disposição.
Pelo que, contrariamente ao que defende a apelante, inexiste na lei qualquer lacuna que implique a aplicação por analogia ou por interpretação extensiva do disposto no art.º 877.º do C.Civil ao caso de doação de pais a filhos, sem a autorização dos demais filhos, pois a lei acautela devidamente, à ocasião da partilha, através dos mecanismos legais que acima referimos, os interesses dos filhos não donatários.
No caso dos autos, é manifesto que a doação realizada por escritura pública outorgada a 14 de Abril de 1981, no Cartório Notarial de Paredes, por J………. e mulher, K………., em benefício da sua filha F………., com dispensa de colação e reservando para si o respectivo usufruto, da raiz ou nua propriedade dos imóveis, sem a autorização dos demais filhos,
e que a donatária posteriormente veio a vender aos réus, não está ferida de qualquer vício que determine a sua anulabilidade.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar não provido o agravo dos autos e em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando quer o despacho quer a decisão recorrida.
Custas pela apelante, atento que beneficia de apoio judiciário.
São devidos à Patrona da apelante honorários nos termos da respectiva tabela, a pagar em 1.ª instância.

Porto, 2010.02.02
Anabela Dias da Silva
Sílvia Maria Pereira Pires
Henrique Ataíde Rosa Antunes