Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0151912
Nº Convencional: JTRP00034063
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: LIQUIDATÁRIO
RETRIBUIÇÃO
Nº do Documento: RP200202180151912
Data do Acordão: 02/18/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 V CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 1312-C/95-1S
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC ESP.
Legislação Nacional: CPEREF98 ART34 ART133.
DL 254/93 DE 1993/07/15 ART5.
Sumário: O despacho que atribuiu ao liquidatário a remuneração de 70.000$00 mensais, acrescida de IVA, não distinguindo nos seus termos qualquer prazo limite de validade e tendo em consideração que o regime legal adstrito a esta situação não proíbe o conteúdo da decisão assim tomada, tem de entender-se que se destina a vigorar até que cessem as suas funções.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

Da decisão proferida no processo de falência nº ......... da .... Vara Cível do Porto/....... Secção, em que é requerente “P......-............., L.da”, que julgou já fixada ao Ex.mo Liquidatário a remuneração de 70.000$00 mensais, acrescida de IVA, recorreu o Ministério Público que alegou e concluiu do modo seguinte:
1- Nos autos, o Ministério Público, ora recorrente, discorda do valor de retribuição arbitrada ao Liquidatário e da falta de critério que a ela presidiu,
2- discorda ainda da decisão que entendeu reconhecer que a soma dos montantes recebidos pelo liquidatário já constituía a sua retribuição, pelo que haveria desnecessidade de despacho a fixar-lhe uma remuneração global.
3- Os montantes inicialmente pagos pelo Cofre Geral dos Tribunais constituem e constituíam mero adiantamento por conta de uma remuneração a fixar a final,
4- que pode, então, ser igual, superior ou mesmo inferior à soma dos montantes adiantados, tudo dependendo da concreta actividade do Liquidatário, numa concreta liquidação.
5- O douto despacho recorrido viola, quanto a nós, os artºs 34º, 133º, 134º, 138º, 180º nº 2, 219º, 220º, 222º e 223º, todos do CPEREF.
6- Mostra-se, também, monetariamente desadequado, até pela carência de metodologia em que se baseou.
7- Com efeito, a M.ma Juiz não atendeu a critérios objectivos que, quanto a nós, têm que presidir à fixação da remuneração quanto à actividade do Liquidatário, critérios esses que tem de atender, quanto à mesma remuneração,
8- à globalidade do serviço, que só deve ser aferida a final,
9- devendo ter em conta a complexidade logística, material, jurídica e burocrática da liquidação,
10- tendo, ainda, de atender às dificuldades maiores ou menores, da administração;
11- no sentido de uma visão do Liquidatário como um prestador de serviços e não como um trabalhador por conta de outrem, com retribuição certa e líquida mensal.
12- Tem, pois, de se ter em conta que não se podem usar os mesmos critérios que presidem à remuneração do gestor para a remuneração do Liquidatário,
13- mas sem prejuízo de haver um estímulo à actividade do mesmo, até para o mesmo não cair no risco de soçobrar às mãos de quem tem capital ou fundo de maneio e exterior à massa falida e Tribunal, com as negativas consequências aí potencialmente previsíveis.
14- Porém, tal remuneração constituiria um mero adiantamento - pelo que não poderia ser de montante elevado - e seria passível sempre de reequação ou reajustamento, conforme houvesse muita, pouca ou nenhuma actividade do Liquidatário, facto que seria passível de decisão de 6 em 6 meses, se tal se mostrasse pertinente e se a liquidação se prolongasse para além do prazo ordenador dos 6 meses a que se refere o disposto no art. 180º, nº 2, do CPEREF.
15- A final, seria fixada a remuneração global, a que haveria de descontar o já recebido, ou eventualmente, e caso que nos parecerá raro, e em caso da remuneração ser inferior ao já recebido, haveria de pedir ao Liquidatário a reposição, o que entendemos ser o caso dos autos.
Concretamente,
16- No caso dos autos, a actividade do Ex.mo Liquidatário foi simples, sofrível e muito arrastada, chegando a ser completamente omissa a partir de dada altura.
17- Mesmo assim e sem recurso a qualquer critério, decidiu-se recompensá-lo com uma quantia muito próxima dos 4.000 contos,
18- absorvendo o parco saldo da liquidação e obrigando o Estado Português a suportar o restante em falta!...
19- Tal montante mostra-se absurdo, exagerado, não consentâneo com a efectiva actividade do Liquidatário e até injusto para quem foi substituído pela sua inactividade e foi sujeito mesmo a procedimento criminal.
20- Foi o montante encontrado sem critério e que se limitou a cobrir as quantias já recebidas pelo Liquidatário, algumas delas, quanto a nós, abusivamente, e fruto de um despacho que, salvo o devido respeito, confundiu adiantamentos com montante global final.
21- Há, assim, que revogar tal douto despacho, o qual violou o disposto nos art.ºs supra citados e, em sua substituição, ser proferido novo despacho onde seja fixada uma remuneração global e final,
22- a qual, tendo em conta a efectiva prestação funcional do Liquidatário, lhe atribua o máximo remuneratório de 600 mil escudos.
Não foram apresentadas contra-alegações e a Ex.ma Juíza manteve a decisão recorrida.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Com interesse para a decisão do recurso, seguindo de perto a descrição feita pelo Magistrado recorrente, estão assentes os factos seguintes:
1. Em 20/5/96 foi judicialmente decretada a falência da “P... - .................., L.da” e foi nomeado Liquidatário Judicial o Ex.mo Dr. J........... que, como primeira medida, diligenciou por publicar os anúncios;
2. Em 21/11/96 o Ex.mo Liquidatário Judicial solicitou a fixação de honorários mensais de 70.000$00, acrescidos de IVA, pretensão que lhe foi deferida por despacho datado de 11/11/97, ao mesmo tempo que foi notificado para cumprir o disposto nos art.ºs 175º, 176º e 177º do CPEREF, ou informar sobre a inexistência de bens, nos termos do art. 186º do CPEREF (cfr. fls. 297);
3. Invocando doença, só em 18 de Março de 1998 veio a responder, apresentando relatório onde refere as diligências por si empreendidas para a busca de bens e direitos e onde também faz referência a dois processos onde eventualmente a falida teria créditos ou dinheiro depositado, juntando, para tanto, cópia da pertinente documentação
4. Em Julho de 1998 o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu que a remuneração fixada (70.000$00 mensais) deveria ser, quando muito, considerada já como remuneração global e pela soma das quantias até então percebidas, já que a concreta actividade do Ex.mo Liquidatário estaria já suficientemente paga de acordo com tal quantitativo o qual, atento o tempo decorrido - 24 meses desde a falência, férias judiciais incluídas - daria um total de 1680 contos.
5. Em Novembro de 1998, a Ex.ma Juíza decidiu que a retribuição a pagar seria a correspondente à devida desde a data da notificação da nomeação do Sr. Liquidatário até à data supra indicada, 18/11/98 (cfr. fls. 406 dos autos), tendo-lhe, então, sido paga a quantia de 2.830.288$00, IVA incluído e despesas de 45.688$00, também incluídas, em 18/3/99.
6. Depois de tal data, o Sr. Liquidatário veio informar o Tribunal da impossibilidade de apreender bens, porque dois bens que lhe tinham sido referenciados, não teriam qualquer valor.
7. Entretanto, em Maio de 1999, a Secretaria pagou-lhe a quantia de 163.800$00, IVA incluído, em Junho de 1999 a quantia de 81.900$00, em Julho de 1999 a quantia de 81.900$00 e em Fevereiro de 2000 a quantia de 573.300$00, referente a 7 meses, desde Julho anterior, o que incluía remuneração em férias judiciais,
8. Em Junho de 2000, face aos sucessivos incumprimentos injustificados, o Liquidatário Dr. J........ foi substituído pelo Dr. H........ e notificado para apresentar contas sob pena de procedimento criminal, o qual, afinal, veio a ser instaurado já que o Sr. Liquidatário não cumpriu o ordenado.
9. Louvando o despacho que removeu de funções o Liquidatário Dr. J......., inconformado com o processamento da remuneração de 2.380 contos referentes a 34 meses que lhe foi abonada a fls. 409 apesar da sua inactividade e reagindo contra o despacho datado de 11/11/97 (cfr. fls. 297) - que fixou a retribuição do Liquidatário em 70.000$00 mensais, acrescidos de IVA - o Digno Agente do Ministério Público, alegando que daquele despacho nada se extrapola que essa remuneração seria para o futuro, antes tudo levando a crer que só o seria para o passado, sugeriu que o novo Liquidatário fosse remunerado com a quantia global de 50.000$00 e promoveu se fixasse em 600.000$00 a remuneração global ao Ex.mo Liquidatário cessante Dr. J........, devendo devolver o montante em excesso recebido.
10. Apreciando esta promoção, o Ex.mo Juiz proferiu a seguinte decisão: - Quanto à remuneração a fixar ao Sr. Dr. H.........., aguarde o termo do prazo para a Comissão de Credores se pronunciar. Saliento, no entanto, que apenas a remuneração do novo Liquidatário está em causa, nada havendo a ordenar quanto à remuneração já fixada e paga ao Liquidatário cessante.
11. É desta decisão, última parte, de que se recorre.
Passemos agora à análise das censuras feitas à decisão recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C.P.C.).
A questão posta no recurso é a de saber se à remuneração inicialmente atribuída ao Liquidatário da Falência terá de se lhe seguir despacho a fixar-lhe uma remuneração global, constituindo os montantes inicialmente pagos pelo Cofre Geral dos Tribunais mero adiantamento por conta de uma remuneração a fixar a final.
I- O liquidatário judicial é nomeado pelo Juiz, tendo em conta para o efeito os elementos recolhidos nos termos do artº 24º, bem como as propostas que tenham sido feitas pelos credores e as indicações da própria empresa (artº 132º do CPEREF). Também é o Juiz que fixa a remuneração do liquidatário judicial, nos termos previstos neste mesmo diploma legal para a fixação da remuneração do gestor judicial e é suportada pelo Cofre Geral dos Tribunais (artº 5º do Dec.Lei nº 254/93, de 15/07), ou seja, atender-se-á ao parecer dos credores, à prática de remunerações seguida na empresa e à dificuldade das funções compreendidas na sua atribuição de liquidatário, ex vi do artº 34º da CPEREF.
Foi neste enquadramento jurídico-processual que foi proferido o despacho datado de 11/11/97 e que nos termos do disposto nos artigos 34º, 133º da CPEREF e 5º do Dec.Lei nº 254/93, de 15/07 atribuiu ao Ex.mo liquidatário a remuneração de 70.000$00 mensais, acrescidos de IVA e a retribuição da despesa de 45.688$00 que adiantou (cfr. fls. 297).
Tem este despacho natureza meramente transitória, havendo necessidade de uma ulterior decisão a fixar ao liquidatário uma remuneração global?
- Pensamos que não é este o sentido que dele irrompe. Senão, vejamos.
II- A decisão judicial, constituindo um acto jurídico, há-de interpretar-se segundo os princípios legalmente impostos e acomodados para os negócios jurídicos (artº 195º do C.Civil).
“A sentença de simples declaração e a de condenação, nada mais fazem do que declarar a vontade da lei no caso concreto. A diferença está, não no acto do Juiz, mas na diversidade da relação jurídica sobre que incide” (Ac. do S.T.J. de 28.05.1991; B.M.J.; 407º; pág. 448).
Neste contexto terá o intérprete de indagar qual a vontade do julgador expressa na sua decisão, de tal modo que, encontrada esta, todas as circunstâncias envolventes do processo se clarificam e tomam um sentido definitivamente exacto – “as decisões, como os contratos, como as leis, como, afinal, todos os textos, têm de ser interpretados e não lidos. Ler não é o fim; é o princípio da interpretação” (Ac. do S.T.J. de 28.07.1994; C.J.; II; Tomo 2 – 1994; pág. 166).
Assim, todas as dúvidas que eventualmente surjam na determinação do conteúdo e alcance do despacho que atribui a remuneração de 70.000$00 mensais ao Ex.mo liquidatário, terão de ser esclarecidas com o recurso aos critérios legais de interpretação referentes aos negócios jurídicos, adiantados pelo disposto no artigo 236º, nº 1, do Cód. Civil, que consagra a denominada teoria da impressão do destinatário - para que tal sentido possa valer é preciso que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este possa razoavelmente contar com ele (artº 236º, nº 1, in fine, do C.C.).
Em cumprimento desta imposição legal tem de se ter em conta que a declaração vertida nessa decisão deve valer com o sentido que um comum intérprete, isto é, normalmente conhecedor e esclarecido, lhe atribuiria; e esta normalidade que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da sentença, mas também na diligência para recolher todos os elementos que ajudem na revelação da efectiva vontade do Juiz posta nessa decisão.
III- Tomando este postulado, com naturalidade e sem esforçar a mente neste raciocínio, com facilidade podemos concluir que o despacho que ora abordamos não tem o intuito de regular uma situação passageira e protelar para momento ulterior a fixação definitiva da retribuição a conceder ao liquidatário judicial.
É o Juiz que fixa a remuneração do liquidatário judicial; e foi aplicando este normativo que se concretizou a função jurisdicional adequada ao caso através daquele despacho de 11/11/97. A remuneração, tendo de ser fixada, não impõe a lei que compreenda dois momentos, um no início da sua actividade e outro, rectificativo, no final das suas diligências.
Ora, havendo um único despacho a servir este objectivo e dos seus termos se depreendendo que o seu âmbito tem carácter duradoiro - é mensal a remuneração e na sua descrição se não distingue algum prazo da sua validade - dele apreende o habitual e bem informado intérprete que a validade da remuneração assim conferida ao liquidatário se estende até à cessão das suas atribuições.
E foi assim que sempre foi entendido quando a situação da remuneração do liquidatário foi abordada no processo. Lembremos que, com o enfado do Magistrado recorrente manifestado no seu requerimento de 02.03.01 (fls. 468), já a fls. 409 foi processada ao liquidatário a remuneração de 2.380.000$00 (referentes a 34 meses).
Esta situação nunca mais tendo sofrido alteração, porque não impugnada, nenhum motivo se antevê capaz de a modificar para diferente sentido daquele que sempre lhe foi atribuído.
Concluindo: - o despacho, datado de 11/11/97, que atribuiu ao liquidatário a remuneração de 70.000$00 mensais, acrescidos de IVA, não distinguindo nos seus termos qualquer prazo limite de validade e tendo em consideração que o regime legal adstrito a esta situação não proíbe o conteúdo da decisão assim tomada, tem de entender-se que se destina a vigorar até que cessem as suas funções.
Pelo exposto, negando-se provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida.
Sem custas – artº 2º, al. b), do C.C. Judiciais.
Porto, 18 de Fevereiro de 2002.
António da Silva Gonçalves
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa